NEBULOSAS
POESIAS
DE
NARCISA AMÁLIA
NATURAL DE S. JOÃO DA BARRA
PROVINCIA DO RIO DE JANEIRO
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RIO DE JANEIRO
B. L. GARNIER
LIVREIRO-EDITOR DO INSTITUTO
69, Rua do Ouvidor, 69
ÍNDICE
I
Jura dicturi estis.
T. L.
Dictareis a lei.
É uma lição digna de se imitar, embora perdida no vasto recinto da ignorância, a publicação de um livro.
Um dos nossos folhetinistas já liquidou a causa do marasmo literário, qualificando de indiferença esse torpor que envelhece uma nova sociedade. — Artes e Letras — Reforma de 1870.
Denuncia essa peste o nosso primeiro escritor, J. de Alencar.
Somos de ontem, ainda não temos a nossa história antiga, e vivemos sob o império do desânimo.
Quando, em uma nação, as artes, as letras, as ciências cumprem o inglório destino da planta que nasce, vive e morre nos abismos de um subterrâneo, ou o do mendigo na festa do opulento, e representam o papel humilde de uma nave arruinada, de um campanário sumido nas heras, entre os suntuosos palácios da cidade vaidosa, essa nação tem chegado ao seu último grau de decadência. Nessa hora triunfam os analfabetos, os mercadores de escândalos, os demolidores de tudo quanto é nobre e principalmente do que constitui o orgulho de um país — a sua glória literária.
Profundando o coração do povo, Addisson, Balzac, La Bruyère, Larochefoucauld e outros quiseram explicar a ingratidão do público, esse equívoco soberano de todas as idades, o qual, nem Buffon, nem os modernos naturalistas e escritores políticos classificaram e definiram.
O público de hoje, como o de todos os tempos, sevandija a virtude e ajoelha ao vício; proscreve o crime e deifica a probidade.
O público! é uma torre de ventos.
— Vemos os bons descaídos
E os maus mui levantados,
Virtuosos desvalidos,
Os sem virtudes cabidos
Por meios falsificados.
— Vemos honrar lisonjeiros
E folgar com murmurar,
E caber mexeriqueiros,
Os mentirosos medrar
Desmedrar os verdadeiros.
Garcia de Resende.
Assim foi, começou com o mundo, não o podemos reformar.
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II
O desenvolvimento intelectual da humanidade, os períodos de harmonia entre as raças e as descobertas do espírito humano, todos esses autênticos monumentos das vítimas pacíficas do talento, falam e atestam a influência da literatura sobre a forma poética e política.
Quer se investigue a fenomenologia da consciência, quer os atos da inteligência, quer as formas abstratas e subjetivas do pensamento nas suas periódicas revoluções do mundo ontológico, acharemos a poesia exercendo a sua legítima influência.
Percorrendo-se a idade de oposição, de variedade; analisando-se as épocas da formação dos caracteres escritos, da linguagem e a nova união de coisas, da moral social, da felicidade doméstica, da harmonia com as ciências, com as artes, com a religião, nós reconhecemos que a poesia tem uma ação eficaz, refletida, que preside a todo o constitutivo orgânico das épocas e do povo, noção esta que nos está ensinando a filosofia da história e o Direito Natural.
Confessemos: — Um livro de versos é uma lição. Ariosto, Dante, Tasso, Cervantes, Lope de Vega, Martinez, Racine, Béranger e Hugo, Optitz, Wesland, Goethe, Pope, Dryden, Shakespeare, Byron, Camões, Ferreira, Bocage, Basílio da Gama, Gregório de Mattos, Magalhães, formam o concílio ecumênico da poesia, donde vieram até nós, não os dogmas, não as contradições e ultrajes à razão, mas os aforismos que constituem o código da humanidade.
O livro de versos tem sido lição aos reis; a palavra de ordem dos povos civilizados, órbita ao redor da qual o mundo gira.
A poesia pode dizer:
— Eu ilumino a história!
— O que ela oculta, eu denuncio!
— Eu levanto do túmulo os heróis; vingo os mártires; puno os traidores.
— Eu sou a glória — o sol dos mortos!
Que o diga a eternidade, e que conteste
O tempo, — a terra, a humanidade inteira.
A minha rival, a arte, poderia dizer:
— Sou uma cidadã dos séculos futuros!
— Eu a antecedi; eu a hei de exceder.
— Fui o gênio de todos os cultos, de todas as seitas.
— Servi ao ódio, à inveja; servi mais à caridade, ao entusiasmo, ao direito, à verdade, à justiça.
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A China
“O murado redil, a terra impérvia,
Retraída dos povos pelo orgulho
Do bonzo mercenário, avesso à cruz,”
foi o meu feudo.
— “Ásia! que encerras da natura os dotes
E do mundo moral a — ‘prisca origem,
Desde a plaga da luz, mãe da palmeira,
Té a noite polar, que alenta o pinho,
Soe o teu nome para glória eterna!” —
Em teu seio vivi, deixei-te opressa,
Punida no castigo de teus sonhos.
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III
Presentemente a poesia que ideia social aduz ou combate?
Que lei moral ataca ou defende?
Vivemos, como outros povos, de uma poesia emérita?
Há ganhadores, assalariados, mercenários venais como esses que se alugam à política, imbecis que fingem ignorar que sempre se depende da mão que paga?
Não sabem que o seu apostolado é um charlatanismo criminoso, um roubo organizado que exercem contra a dignidade dos escritores honestos, dos literatos, dos homens de letras, únicos sacrificados neste país?!
Pregando a vilania dos sentimentos, negam aos outros o que não possuem, embora se lhes grite:
— O que se aluga vende-se!
IV
Creio nos esforços da literatura contemporânea.
Cada povo tem faculdades primitivas e necessidades particulares. As ideias arraigadas nos hábitos desse povo não cedem seu império senão depois de combates porfiados e lutas sanguinolentas. É por isso que, ante as conveniências da política e as necessidades da indústria, a poesia não se justifica.
Eu sei que a rotina, economicamente falando, tem a sua justificação; portanto, anistiemos desta batalha a Indústria e digamos por que é oposta à política.
Tem o seu fundamento histórico sem ter o racional, a demonstração.
A política tem sido e continuará a ser, em muitos casos e em muitos países, a arte e a ciência dos nulos e perversos.
Luís XI, apesar dos seus oficiosos biógrafos, é um cínico; Voltaire, Montaigne e Montesquieu, por orgulho político, quiseram explicar os dogmas e os segredos das instituições. Tudo confundiram. Talleyrand foi mais célebre pela hipocrisia que pelo seu gênio. Ele, outros e muitos — e nesse número alguns dos nossos pretensos estadistas que fazem praça de muito sagazes — são desdenhados. Voltaire político é um intrigante inepto; mas o poeta da solidão de Ferney era um castigo dos déspotas.
Rousseau é admirado unicamente naquelas obras em que o filósofo ou o político é vencido pelo poeta.
Entremos ou penetremos a nossa lareira.
Atados à galé da política, vemos Pedro Luís e Bittencourt Sampaio, náufragos, mar em fora, ludibriados pelas mesmas ondas que dali os arrancaram.
Como a imagem da Esperança nas lendas pagãs, José de Alencar tem um braço no céu e outro na terra.
Teimam e insistem, lutam e sustentam um dia artificial em plena escuridão: Joaquim Serra, Celso Magalhães, Salvador, Menezes, C. Ferreira e F. Távora.
Agora vem Narcisa Amália.
Contra estes vejo uns fabricantes de autômatos, arreados de lodo, cheios de ignorância, que nos detestam e nos perseguem.
Sim; eu creio nos esforços da literatura, nos resultados eficazes da poesia.
O lirismo, que tem sido a feição predominante da infância de todos os povos, não batizou o nosso berço de nação livre, mas nos acompanhou nos jubilosos dias da conquista da nossa autonomia nacional.
A poesia lírica brasileira teve entre nós bons e poucos representantes. Ocupou o primeiro lugar Gonçalves Dias, o poeta cosmopolita; é seu continuador, com muita inferioridade, Teixeira e Souza, a quem devemos muito como romancista; pouco, como poeta lírico.
Já levantou uma estátua a Gonçalves Dias a sua província natal; deve, a do Rio Grande, ao cantor do Colombo, e a do Rio de Janeiro, ao cantor dos Tamoios.
Se ainda este povo for suscetível de raciocínio, tenho fé que o José Basílio merecerá qualquer memória de pedra ou um poema de bronze.
O assunto do poeta no Poema é a guerra que a Espanha e Portugal tiveram de sustentar contra os índios de Missões, porque, por um tratado celebrado a 10 de janeiro de 1750 entre as duas nações, ficavam pertencendo a Portugal as terras que os jesuítas possuíam na parte oriental do Uruguai. Estes incitam os índios a resistir. Espanha e Portugal mandam suas tropas combatê-los; Gomes Freire de Andrade comanda o exército português.
Outros trabalhos de José Basílio, que ainda valem hoje prêmios que ele não teve, o recomendam à gratidão nacional, porque ele nos traçou a figura do jesuíta daquela e desta época, e feriu o despotismo até donde a sua imaginação lhe ofereceu armas.
Teixeira e Souza, já por mim quase esquecido neste momento, todo esquecido da pátria que o deixou por muito tempo mendigar, ensaiou a épica no seu poema A Independência do Brasil. Magalhães é o épico dramático, o formador ou criador da nossa literatura.
Não venham, amanhã, os alcaides das letras perguntar-me se Joaquim Manuel de Macedo, Alencar e outros não são literatos, não fazem literatura. Há tanta ignorância, que, nem por estar pesado e medido pelo Dr. Moreira de Azevedo o nosso período literário, tenho visto inverter-se o que os meninos já decoraram nas aulas.
Magalhães criou a literatura; Porto Alegre a desenvolveu, Macedo a propagou, Alencar corrigiu-os, fazendo a crítica e formando a mais completa literatura, dando os últimos toques nas grandes telas daqueles mestres e apagando os borrões.
Falava dos poetas líricos.
Mais enérgico nas imagens e muitas vezes de mais elevação, foi Casimiro de Abreu.
Álvares de Azevedo foi o cantor da morte; foi um gênio.
Bernardo Guimarães, bucólico, elegíaco, lírico, decidiu-se por uma forma, uma escola mais preferida entre todos os literatos.
A poesia épica tem tido poucos representantes. Conheço alguns ensaios, e boa promessa considero o Riachuelo, de S. Pereira, outro de Zeferino, e alguns fragmentos, os quais não são a Epopeia da Guerra.
A poesia dramática tem poucos cultivadores. O criador do teatro moderno queimou as de um anjo; Pinheiro Guimarães discute sobre eleições, e preleciona na cadeira de medicina; Varejão não é mais o Aquiles; Machado de Assis casou-se; França Júnior é um cofre; Joaquim Serra não foi mais a Roma; Sizenando Nabuco está envolto na sua túnica; Joaquim Pires não faz mais Demônios; Menezes adormeceu à sombra da mancenilha; Salvador espera outro Bobo e José Tito faz Charadas Políticas.
— Como as vozes do mar num canto d’Ossian
Poucas vezes os ouço — passam longe.
Não precisamos de imaginações sonhadoras e místicas como os poetas do Oriente para enriquecer o teatro; há assuntos na nossa história para os dramas marítimos, militares, políticos.
Por que é que a Idade Média tem um caráter de originalidade cuja lembrança exalta ainda hoje, depois de tantos séculos, a imaginação dos romancistas e dos poetas? É porque os trovadores vulgarizaram a história dos amores, das vitórias políticas, dos combates guerreiros, os sentimentos de patriotismo.
Eu ainda ignoro para que fim destina o Sr. ministro o seu Conservatório.
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Erige-te!
Narcisa Amália será a impulsora e o ornamento de uma época literária mais auspiciosa que a presente. Há de redigir os aforismos poéticos, como Aristóteles escreveu os da natureza.
Na história da nossa literatura, o seu entusiasmo moral, que é um culto do seu talento, terá uma consagração nos Anais do futuro desta legião de inteligências que está celebrando as glórias do presente.
Não a conheço, mas eu imagino que em seu rosto a tristeza ocupa o lugar da alegria.
— “A funda melancolia
Não seguiu-a desde a infância,
Deus não fê-la triste assim...
Houve na sorte inconstância,
E se perdeu a alegria,
É de homens obra ruim.”
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A extremosa pureza dos seus pensamentos, o pudor da sua imaginação, bem inculcam que os seus pais lhe anteciparam um tesouro no abençoado curso da sua educação, no santo respeito da família e amor da pátria.
Eu penso que o eco das suas palavras é um concerto de pesares. Ela aborrece a canalha subalterna das letras, porque há uma canalha ilustre que é mais fidalga que a nobreza de decreto; essa, ela estima e aplaude.
Narcisa Amália não é um tipo; é uma heroína.
Senio acaba de pedir que não elogiem os seus livros de prosa.
Eu peço que julguem o livro de N. Amália, livro que ilumina a grande noite da poesia brasileira.
Quando houver um Conselho de Estado ou um Senado Literário, Narcisa Amália terá as honras de Princesa das letras.
Este livro há de produzir tristezas e alegrias. É a primeira brasileira dos nossos dias; a mais ilustrada que nós conhecemos; é a primeira poetisa desta nação.
Delfina da Cunha, Floresta Brasileira, Ermelinda da Cunha Mattos, Maria de Carvalho, Beatriz Brandão, Maria Silvana, Violante, são bonitos talentos. Narcisa Amália é um talento feio, horrível, cruel, porque mata àqueles. Foram as suas antecessoras auroras efêmeras; ela é um astro com órbita determinada.
Eu não critico nem analiso o livro, porque vejo, todos os dias, passar o lirismo, o amor, a fantasia, a heroicidade, a glória literária e artística, como os vultos fatais nas tragédias antigas; vejo sempre, em prolongado silêncio, abafados, como aqueles comprimidos gemidos do Tiradentes, quando tomou posse do seu Pedestal.
V
Posteris tradant.
Cantaste a Família, a Pátria e a Humanidade.
A família — pilar da pátria, a pátria — cruz dos tolos, a humanidade — loucura de Deus.
A escolha de um assunto, a do ponto de vista, em que tanto se distinguem Bossuet e Monseigneur Alverne, na eloquência sagrada; a escolha do momento e da extensão, que no romancista é mais desenvolvida que no historiador, vós a conheceis e praticais como nos prescrevem as regras.
A escolha das circunstâncias e dos contrastes, da topografia e seus acidentes, — vejo fundidas como relevo dum escudo na descrição do —, onde vos admiro igual a Virgílio, quando ele descreve o repouso no meio da noite para fazer contraste com a agitação da rainha de Cartago.
Um acadêmico de São Paulo, — João Cardozo de Menezes, hoje condestável da política, — já esteve muito perto da vossa imaginação quando descreveu a serra do Paranapiacaba.
ITA-TIAYA
Ante o gigante brasileiro,
Ante a sublime grandeza
Da tropical natureza,
Das erguidas cordilheiras,
Ai, quanto me sinto tímida!
Quanto me abala o desejo
De descrever num harpejo
Essas cristas sobranceiras!
Vejo aquém os vales pávidos
Que se desdobram relvosos;
Profundos, vertiginosos,
Cavam-se abismos medonhos!
Quanto precipício indômito,
Quanto mistério assombroso,
Nesse seio pedregoso,
Nessa origem de mil sonhos!
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Ondulam ao longe murmúrios
Aos pés de esguios palmares,
As florestas seculares
Cingidas pela espessura;
A liana forma dédalos
Na grimpa das caneleiras,
Do cedro as vastas cimeiras
Formam dóceis de verdura.
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As diferentes espécies de descrição poética enchem o seu livro em vários empregos.
A topografia, em que Buffon foi um dos mais completos prosadores, tem em Narcisa Amália a melhor intérprete, na poesia.
A hipotipose impera nesta estrofe:
— “Salve! Montanha granítica!
Salve! Brasileiro Himalaia!
Salve! Ingente Ita-Tiaya,
Que escalas a imensidade!
Distingo-te a fronte válida,
Vejo-te às plantas, rendido,
O meteoro incendido,
A soberba tempestade!”
Nestes e em todos os seus versos, as figuras de palavras andam a granel, em contínuo atropelo com as do pensamento.
A acumulação, figura que desenvolve e torna mais clara e mais sensível a ideia principal; as hipérboles, que levam, às vezes, o espírito a extravagâncias, de que se ressentem Milton, Klopstock, Ossian — o rei da apóstrofe — e muitos dos nossos poetas, ocupam, em tempo apropriado, o seu lugar.
Exemplos de antíteses e epifonemas vai a sutil inteligência do leitor colhendo à medida que termina um hino, ou idílio.
Ela decora os seus pensamentos, como um carola enfeita um altar do santo de sua devoção.
As figuras de ornamento, as aposiopeses, as gradações, as alusões, e as figuras de movimento e paixão se apostam e se disputam, em rivais competências, para exigir da crítica a confissão de que elas oferecem batalha.
Nesta poesia há uma admirável exuberância de tropos, e a optação — raríssima figura em nossos livros de maior nome — tem ali a sua majestade.
Os pleonasmos e as silepses andam em todo o livro tão obedientes, como o porta-ordens dum Estado-Maior.
Este volume de poesias é um Templo; — quem o penetrar há de ver — dentro — um altar construído de lágrimas!!
A poesia 25 de Março é um anátema, é uma ameaça. Não conheço muitas que estejam naquela altura.
Resende, — é a monografia daquele sempre lutuoso edifício que se levanta no exílio, — a saudade.
Releve-me a distinta literata não ir cotejando aqui uma por uma as suas poesias.
Eu as comparo aos hinos da alvorada; um tem a afinação dos outros, o mesmo encanto, a mesma sedução; nos inebriam e nos elevam a querer compreender o sublime, tudo quanto ao céu se ergue.
Começou a poesia lírica com o homem.
É tão velha como a humanidade; entretanto, é sempre nova!
Primeiro cantou Deus; depois o herói, os reis, santos.
Os hinos, as odes sacras, os cânticos, os Salmos, o Magnificat da Santa Virgem, esse grito do crente no meio do terror, o Cantemus Domino, o Benedictus do Profeta, o cântico dos Anjos, o Te Deum, essa inspiração de Santo Ambrósio, são os brasões da poesia lírica, e nenhuma outra goza dessas prerrogativas.
Os Dois Troféus, que é um poema, tomou a forma de uma ode heroica, gênero mais difícil na composição lírica.
Se há um governo capaz de compreender as alusões e ironias da poetisa; se há, então as passadas injustiças serão vingadas, aquele patrimônio de brios conculcados será resgatado.
Como exemplo de ode heroica eu só conheço capaz de se aproximar a essa de Narcisa Amália, não na elevação de pensamentos, mas na rigorosa obediência ao gênero, aquela ode de Lebrun, cantando a ruína de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755.
Quando neste país a República Política galardoar os beneméritos da República Literária, Narcisa Amália exercerá a sua ditadura.
Tem ela cantado o amor da virtude, da glória, e da pátria.
Não é descrente por moda, como foram os imitadores de Musset; não é cética como os de Goethe, é republicana como Schiller, como Félix da Cunha, e Landulpho: é intransigente como a fatalidade.
Gonçalves Crespo e Campos Carvalho, acadêmicos brasileiros em Coimbra, ao receberem este livro hão de se possuir de entusiasmo.
Coimbra!... a mágica cidade
Dos infortúnios de Inês,
Podia ser o trono do talento de Narcisa Amália, porque ela compreende por que angústias passou aquela mártir e pode fazer os comentários da desgraça do príncipe e da rainha depois de morta.
Deve a autora das Nebulosas escrever um Poema Didático, e, se vierem açoita-la os ventos da inveja e os mil desdéns da ignorância atrevida, deve escrever — um Poema Épico. É a tendência de sua índole literária.
Estreou-se emancipada da poesia-piegas, do verso-capadócio, da literatura-artesã, que ali vivem estucando e destilando biliosas sujidades e obscenas audácias.
Há de vir a época em que o sentimento de patriotismo reivindicará os nomes desses talentos extraordinários.
Seu estilo vigoroso, fluente, acadêmico; a riqueza das rimas, tão eufônicas, tão reclamadas e necessárias ao verso lírico, suas convicções falando à alma e à imaginação, justificam a sua já precoce celebridade, confirmam a sua surpreendente e rápida aparição, precedida do respeitoso coro da crítica sincera e grave.
Há uma nota dominante em seu espírito que põe em aflitivo conchego a dor sem consolo no lar da tristeza. Quando a sua grande alma quer-se divorciar do seu grande coração — ambos se petrificam.
Não sabe fingir, nem falsificar.
Em seus versos se conhece que ela é indiferente aos nossos capitais, às nossas fortunas e riquezas, e lhe causa tédio tudo quanto a rodeia.
A fé — que aplanou os abismos; crença que aplanou as montanhas, vivem em seu espírito. Fé nas conquistas do talento; crença em seus esforços para encaminhar a sua timidez até a hora de a transformar num poder.
Tem o seu livro imagens novas, figuras pomposas que pedem nova retórica e que se invente nova Poética.
Do estudo rápido que fiz notei que não quis aprender a dourar a trivialidade com grandes palavras e banalidades grandes, o que tem valido a muita gente uma falsa reputação de sábia.
Em sua prosa poética, em alguns artigos que li no Eho Americano, na Revista Artes, de Lisboa, se mostra que a sua inteligência não está ao serviço da frivolidade.
Se ela governasse, nem os papas, nem os reis teriam horas certas para o descanso.
Há em todas as suas composições poéticas um ponto de fixidez imaginativa que anda ao par da vivacidade de emoções, e a expressão do sentimento é sempre forte e concisa.
A sua individualidade literária acusa um caráter leal e capaz de todos os sacrifícios pelas grandes causas.
Sabe ajustar o estilo ao assunto; é elegante nas descrições mais breves; tem graça e doçura a sua linguagem quando descreve a vaidade das outras mulheres. O baile é um modelo de sátira, de sarcasmo, de ironia discreta.
Os literatos brasileiros dirão o que eu não sei narrar, nem conhecer para expor.
VI
Teófilo Braga, Luciano Cordeiro, César Machado, Adolfo Coelho, Bulhão Pato, Gomes Leal, E. Coelho, Silva Túlio, A. de Castilho, Silva Bento e Teixeira de Vasconcelos, meus amigos, hão de deferir o seguinte requerimento:
“Peço um lugar de honra no auditório das vossas glórias literárias para a autora das Nebulosas.”
Por uma vicissitude já vivemos como o povo hebreu; encerrado nos limites da obediência, confiscado, regendo-nos com as leis do vizinho senhor. Reunimo-nos do cativeiro. Queremos, hoje, celebrar as festas da inteligência em todos os altares onde a glória arquitetou-os. A isso se propõe este livro — que não envereda pela abóbada oca dos clássicos.
Pessanha Póvoa.
On donne le nom de Nébuleuses à des taches blanchâtres que l'on voit çà et là, dans toutes les parties du ciel.
Delaunav
No seio magestoso do infinito,
— Alvos cysnes do mar da immensidade, —
Fluctuam tenues sombras fugitivas
Que a multidão suppõe densas caligens,
E a sciencia reduz a grupos validos;
Vêjo-as surgir á noite, entre os planetas,
Como vizões gentis á flux dos sonhos;
E as espheras que curvam-se trementes
Sobre ellas desfolhando flores d’oiro,
Koubam-me instantes ao soíTrer recondito 1
Costumei-me a sondar-lhes os mysterios
Desde que um dia a flamula da idéa
Livre, ao sopro do genio, abriu-me o templo
Em que fulgura a inspiração em ondas;
A seguir-lhes no espaço as longas clamydes
Orladas de incendidos meteoros ;
E quando da procella o tredo archanjo
Desdobra n’amplidão as negras azas,
Meu ser pelo theisn o desvairado
Da loucura debruça-se no pélago !
Sim! São elas a mais gentil feitura
Que das mãos do Senhor há resvalado!
Sim! De seus seios na doirada urna,
A piedosa lágrima dos anjos,
Ligeira se converte em astro esplendido!
No momento em que o mártir do Calvário
A cabeça pendeu no infame lenho,
A voz do Criador, em santo arrojo,
No macio frouxel de seus fulgores
Ao céu arrebatou-lhe o calmo espírito!
Mesmo o sol que nas orlas do Oriente
Livre campeia e sobre nós desata
A chuva de mil raios luminosos,
Nos lírios siderais de seu regaço
Repousa a fronte e despe a rubra túnica!
No constante volver dos vagos eixos,
Os orbes em parábolas se encurvam
Bebendo alento no seu manso brilho!
E o tapete movediço do universo
Mais belo ondeia com seus prantos fúlgidos!
E quantos infelizes não olvidam
O hóscopo fatal de horrenda sorte,
Se no correr das auras vespertinas
Seus seres vão pousar-lhes sobre a coma,
Que as madeixas enastram do crepúsculo!
Quanta rosa de amor não abre o cálice
Ao bafejo inefável das quimeras
No coração temente da donzela,
Que, da lua ao clarão dourado as cisnas,
Lhes segue os rastros na cerúlea abóbada!...
Um dia no meu peito o desalento
Cravou sangrenta garra; trevas densas
Nublaram-me o horizonte, onde brilhava
A matutina estrela do futuro.
Da descrença senti os frios ósculos;
Mas no horror do abandono, alçando os olhos
Com tímida oração ao céu piedoso,
Eu vi que elas, do chão do firmamento,
Brotavam em lucíferos corimbos,
Enlaçando-me o busto em raios mórbidos!
Oh! Amei-as então! Sobre a corrente
De seus brandos, noctívagos lampejos,
Audaz liberei-me nas azuis esferas;
Inclinei-me, de chamas circundada,
Sobre o abismo do mundo tórvio e lúgubre!
Ergui-me ainda mais: da poesia
Desvendei as lagunas encantadas,
E prelibei delícias indizíveis
Do sentimento nas cadeias sagradas,
Ao clarão divinal do sol da glória!
Quando desci mais tarde, deslumbrada
De tanta luz e inspiração, ao vale
Que pelo espaço abandonei sorrindo,
E senti calcinar-me as débeis plantas
Do deserto, as areias ardentíssimas;
Ao fugir dos sinais que estende a noite
Sobre o leito da terra adormecida,
Fitei chorando a aurora que surgia!
E — ave de amor — a solidão dos ermos
Povoei de gorjeios melancólicos!...
Assim nasceram os meus tristes versos,
Que do mundo falaz fogem às pompas!
Não dormem eles sob os áureos tetos
Das terrenas potestades, que falecem
De morbidez nos fláccidos triclínios!
Cortando as brumas gélidas do inverno,
Adejam nas estâncias consteladas
Onde elas pairam; e à luz da liberdade,
Devassando os mistérios do infinito,
Vão no sólio de Deus rolar exânimes!...
À MINHA MÃE
Ide ao menos de amor meus pobres cantos
No dia festival em que ela chora,
Com ela suspirar nos doces prantos!
Álvares de Azevedo.
A viração que brinca docemente
No leque das palmeiras,
Traga à tua alma inspirações sagradas,
Delícias feiticeiras.
A flor grácil que expande-se contente
Na gleba matizada,
Inveje-te a tranquila e leda vida,
Dos filhos sempre amada.
Só teus olhos roreje doce pranto
De mística ternura;
Como sílfides de luz cerquem-te gozos,
Enlace-te a ventura!
Os filhos todos, submissos, junquem
De rosas tua estrada;
E curvem-se os espinhos sob os passos
Da mãe idolatrada!
Tais são as orações que aos céus envia
A tua pobre filha;
E Deus acolhe o incenso, embora emane
Da branca maravilha!
Meus funerários gemidos
Vão legando à imensidade
Um vasto arcano — a tristeza.
Um canto eterno — a saudade!...
Carlos Ferreira.
Tenho saudades dos formosos lares
Onde passei minha feliz infância;
Dos vales de dulcíssima fragrância;
Da fresca sombra dos gentis palmares.
Minha plaga querida! Inda me lembro
Quando através das névoas do ocidente
O sol nos acenava adeus languente
Nas balsâmicas tardes de Setembro;
Lançava-me correndo na avenida
Que a laranjeira enchia de perfumes!
Como escutava trêmula os queixumes
Das auras na lagoa adormecida!
Eu era de meu pai, pobre poeta,
O astro que o porvir lhe iluminava;
De minha mãe, que louca me adorava,
Era na vida a rosa predileta!...
Mas...
... tudo se acabou. A trilha olente
Não mais percorrerei desses caminhos...
Não mais verei os míseros anjinhos
Que aqueciam na minha a mão algente!
Correi, ó minhas lágrimas sentidas,
Do passado no rútilo sudário;
Bem longe está o cimo do Calvário
E já as plantas sinto tão feridas!...
Ai ! que seria do mortal aflito
Que tomba exangue à provação cruenta,
Se no marco da estrada poeirenta
Não divisasse os gozos do Infinito ?!...
Abrem-me n’alma as dores da saudade
Um sulco de profundas agonias...
Morreram-me pra sempre as alegrias...
Só me resta um consolo... a eternidade!
Her beauty raineth own flamelets of fire,
Animate with a noble, gracious spirit,
Which is creator of each virtous thought.
Mary Rosetti.
Vem, tímida criança,
Rosada, loura e mansa
Qual chama matutina
De tíbio resplendor;
Vem, quero a tez rubente
Da face transparente,
E a boca peregrina,
Beijar-te com fervor!
Teus mádidos cabelos,
Undosos, finos, belos,
Em áurea e doce teia
Enlaçam-me o olhar;
Da primavera os lumes
Em lúcidos cardumes,
No anel que solto ondeia
Vão ternos cintilar!
Teu colo alvinitente
Se encurva levemente,
Qual pende na ribeira
O lótus de cetim;
Se a lua além se inflama
De vaga e breve flama,
Resvalas mais ligeira
Na relva do jardim!
Escuta: à beira-d’água
A flor vinga entre a frágua,
E a tela delicada
Se tinge à luz do sol;
O mágico perfume
Que o cálice resume,
A pétala nacarada,
Inveja-lhe o arrebol.
Mas vem da treda enchente
A férvida torrente
Em turbilhão raivoso
Ao longe a rouquejar,
E a rubra flor da margem —
Pendida na voragem,
No pego tenebroso
Fanada vai rolar!
Ai! zela a rosa pura
De tua formosura
Que o lábio mercenário
Do mundo, não manchou;
Sê como a sensitiva
Que se retrai esquiva
Se o vento louco e vário
As folhas lhe osculou.
Porém, essa beleza
Que deu-te a natureza,
Desmaiará um dia
Aos gelos hibernais;
E uma vez perdida
Nos vendavais da vida,
À flux da fantasia
Não surgirá jamais!
Oh! zela mais ainda
A flor celeste e linda
De tua alma de virgem,
— Teu primitivo amor!
Da divinal bondade
A meiga potestade,
Se acolhe da vertigem
Nas mãos do Criador!
Atende: a mão mimosa
Dirige pressurosa
Ao pobre, agonizante,
À sombra do hospital!
Ao mesto encarcerado
Do olhar do sol privado,
Abranda um só instante,
O agror da lei fatal!
Prosegue, etérea lira,
Nas cordas de safira
As harmonias cérulas
Dos risos infantis!
E ao desgraçado em prantos
Dá mil colares santos,
Não de mundanas pérolas,
De lágrimas gentis!...
A J.
Per lui solo affido sull ali dei venti
Il suon lusinghiero dei garruli accenti!
Deh riedi, deh riedi!... mi stringe al tuo cor’
E giorni beati — vivremo d'amor!
Il Guarany.
Desde a hora fatal em que partiste,
Turbou-se para mim o azul do céu!
Velei-me na mantilha da tristeza,
Como Safo na espuma do escarcéu!
Até então o arcanjo da procela
Não enlutar o lago das quimeras,
Onde minh’alma, garça languorosa,
Brincava à luz de etéreas primaveras.
Mas um dia, atraindo ao vasto peito
Minha pálida fronte de criança,
Murmuraste, tremendo: — “Parto em breve;
Mas não te aflijas, volta, rei, descansa!”
Ai! Que epopeia túrgida de lágrimas
Na comoção daquela despedida!
Eu soluçava envolta em véu de prantos:
“Quando voltares, já serei sem vida!”
Desde então, comprimindo ásperas angústias,
Vou te esperar à beira do caminho;
Voltam cantando ao sol as andorinhas,
Só tu não volves ao deserto ninho!...
Quando a tribo inquieta das falenas
Liba filtros nas delícias da campina,
Busco da redenção o augusto símbolo,
E faleço de amor como Corina!
Pois bem! Se enfim voltares desse exílio,
Ave errante, fugindo à quadra hiberna,
Vem à sombra do vale: sob os ciprestes
Comigo fruirás ventura eterna!
A UMA MENINA
Folga e ri no começo da existência
Borboleta gentil!
Gonçalves Dias
Os lampejos azuis de teus olhos
Fazem n’alma brotar a esperança;
Dão venturas, ó meiga criança,
— Flor celeste no mundo entre abrolhos! —
Ora pendes a fronte na cisma,
Fatigada dos jogos, contente,
E mil sonhos, formosa inocente,
Fantasias às cores do prisma;
Ora voas ligeira entre clícias
Sacudindo fulgores, anjinho;
E o favonio te envia um carinho,
E as estrelas te ofertam blandícias!...
Mas se pende dos fulgidos cílios
Alva per’la que a face te rora,
De teus lábios, na falia sonora,
Chovem, rolam sublimes idílios!
De tua boca na rubra granada
Caiam santos mil beijos felizes!
Tuas asas de lindos matizes,
Ah! não rasgues do vício na estrada
A JOANA DE AZEVEDO
De mais a mais se apertam nossos laços,
A ausência... oh! que me importa, estás presente
Em toda a parte onde dirijo os passos.
Fagundes Varela
Pensas tu, feiticeira, que te esqueço;
Que olvido nossa infância tão florida;
Que às tuas meigas frases nego apreço...
Esquecer-me de ti, minha querida!?...
Posso acaso esquecer a luz divina
Que rebrilha nas trevas desta vida?
Era esquecer a lúcida neblina,
Que nas gélidas orlas de seu manto,
Extingue a febre que meu ser calcina.
Esquecer o orvalho puro e santo,
Que à campânula curva à calma ardente,
Dá mais viço e fulgor, dá mais encanto.
Esquecer o cristal liso ou tremente
Que me retrata a fronte pensativa!
Esquecer-me de ti, anjo temente...
Ouço-te a voz na langue patativa
Que em trinos desfalece ao vir do inverno —
Contemplo-te na mimosa sensitiva.
Sem ti não tem o sol um raio terno;
Contigo o mundo todo — é paraíso,
E a taça do viver tem mel eterno!
Oh! envia-me ao menos um sorriso!
Dá-me um sonho dos teus doirado e belo,
Que bem negro o porvir além diviso!
Que a existência sem ti, é um pesadelo!...
Antes de espirar el día
Vi morir a mi esperanza.
ZARATÉ.
Quando resvala a tarde na alfombra do poente
E o manto do crepúsculo se estende molemente;
Na hora dos mistérios, dos gozos divinais,
Despedaçam-me o peito martírios infernais;
E sinto que, seguindo uma ilusão perdida,
Me arqueja, treme e expira a lâmpada da vida!
Feriu-me os olhos tímidos o brilho da esperança;
A luz do amor crestou-me o riso de criança;
E quando procurei — sedenta — uma ventura,
Aberta vi a fauce voraz da sepultura!...
Dilacerou-me o seio, matou-me a crença bela,
O tufão mirrador de hórrida procela!
Então pálida e triste, alcei a fronte altiva
Onde se estampa a dor tenaz que me cativa;
Sorvi na taça amarga o fel do sofrimento,
E a voz queixosa ergui num último lamento:
Era o cantar do cisne, o brado da agonia...
E a multidão passou soberba, muda, fria!
Desprezo as pompas loucas, desprezo os esplendores,
Trilhar quero um caminho orlado só de dores;
E além, nas solidões, à sombra dos palmares,
Ao derivar da linfa por entre os nenúfares,
Quero ver palpitar, como em meu crânio a ideia,
O inseto friorento na lânguida ninfeia!
E quando o ardor latente que cresta minha fronte
Ceder à neve algente que touca o negro monte;
Quando a etérea asa da brisa fugitiva
Trouxer-me os castos trenos da terna patativa,
Elevarei meus carmes ao Ser que criou tudo,
E dormirei sorrindo num leito ignoto e mudo.#
Presago el corazón late en mi pecho!
Martínez de la Roza.
Adeus, lendas de amor, doirados sonhos
Do meu cérebro enfermo;
Adeus, da fantasia, ó lindas flores,
Rebentadas no ermo.
Um dia, da quimera no regaço,
Adormeci sorrindo;
E os astros, lá do empíreo debruçados,
Verteram brilho infindo...
Como a flux da onda egeia um divo canto
De Homero, o bardo cego,
Resvalei da paixão nas vagas fúlgidas,
De esplendores num pego!...
Mas depois... densa nuvem desenhou-se
Na safira do céu,
E a ledice infantil fugiu tremendo
Ao futuro escarcéu!
. . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . .
Por que deixas, ó Deus, que o gelo queime
Minha alma, planta fria?!...
Cedo descansarei (que importa?) os membros
Na penumbra sombria,
Onde a roxa saudade funerária
Enlaça-se ao cipreste;
Onde a lua, chorosa peregrina,
Derrama a luz celeste!
A vós, lendas de amor, sombras queridas
Dos devaneios meus;
A vós que me embalastes a adolescência,
Meu pranto e eterno adeus!...
Je meurs, et sur ma tombe, où lentement j’arrive,
Nul ne viendra verser des pleurs.
Gilbert.
Como vergam as lindas açucenas
As pétalas alvejantes,
Quando voam do Sul as brumas frias;
Quando rola o trovão nas serranias
E os raios coruscantes;
Como a rola das selvas, trespassada
De mortífera seta
Despedida por bárbaro selvagem,
Que a débil fronte inclina e cai à margem
Da lagoa dileta;
Como a estrela gentil de um céu risonho,
Luzindo aos pés de Deus,
Que pouco a pouco triste empalidece,
E cada vez mais pálida falece
Envolta em negros véus;
Como a gota de mel que entorna a aurora
Na trêmula folhagem,
E brilha, e fulge ao prisma de mil cores;
Que depois desaparece aos esplendores
Da dourada voragem;
Assim foram-se as rosas de meu peito
Sem os rócios de outono...
Vejo apenas a palma do martírio
Convidando-me a ir, com a luz do círio,
Dormir o eterno sono.
PARÓDIA À POESIA PRECEDENTE, PELO SR. J. EZEQUIEL FREIRE
Se também vingam lindas açucenas,
Mimosas, alvejantes,
Nas dobras dos valados — ermas, frias,
Dardeje embora o sol nas serranias
Seus raios coruscantes;
Se também a rolinha trespassada
De ervada, negra seta,
Acha às vezes um bálsamo selvagem,
E vai gemer ainda à fresca margem
Da lagoa dileta;
Porque descrês de teu porvir risonho,
Poetisa de Deus?!...
Se o fanal do viver empalidece,
Se às vezes, sem alento, ele falece
Envolto em negros véus;
Bem cedo raia do prazer a aurora
E a trêmula folhagem
Das flores do viver, rebrilha em cores;
E ostenta mil dourados resplendores
Sem medo da voragem!
Avante! Quando as rosas de teu peito
Fenecerem no outono,
Será-te-á um selo — a palma do martírio!
E o sol da glória — o prefulgente círio
Que velará teu sono!...
Senti o golpe no coração, e como a copaíba ferida no âmago, distilo lágrimas em fios!
J. DE Alencar
Ao desmaiar do sol, além, nas cordilheiras,
Ao badalar dos sinos dobrando — Ave Maria!
Ai! desprende um gemido, acorde doloroso,
Minha alma na agonia!
Que importa o ledo riso de um tempo já volvido?
Que importa o beijo frio da cerração do sul?...
O sofrimento extingue anelos de ventura,
— Flor virgem num pântano! —
Já tive, como todos, meus enlevados sonhos,
Senti tingir-me a face a púrpura do enleio;
E o coração pulsou-me um dia entre delícias
Fazendo arfar o seio.
E a flor, vendo-me a furto, fulgia mais contente!
E as lâmpadas do céu brilhavam mais gentis!
E os cânticos das aves mais ternos se elevavam
Nas viragens sutis!
E a lua me enviava um raio de tristeza;
A luz, beijo de fogo — ardente, fulgurante!
A nuvem vaporosa, ao perpassar no espaço,
Olhava-me um instante!
Ai! cedo esvaeceu-se a frívola miragem,
E fugitiva, rápida, desfez-se essa ilusão;
Apenas hoje sangra e estua-me sem vida,
O gélido coração.
Não mais se expandem lírios, nem luzem mais estrelas,
Emudeceram lentos os mágicos cantores;
Não mais me envolve a luz entre amorosos laços
E límpidos fulgores.
Porque não sou a rola que deixa além o ninho,
E estende as leves asas, e voa na amplidão?
Porque não chego ao menos a fronte à imensidade
Por sobre a criação?!...
Porque não sou o íris que arqueia-se no éter?
Porque não sou a nuvem dos pântanos siderais?
Porque não sou a onda azul que além desmaia
A revelar mistérios?...
O mundo que me vê passar sem um sorriso,
Não vê do meu tormento o horrendo vendaval!
Ele que acolhe e afaga o venturoso, entrega
O triste à lei fatal!
Só resta hoje à minha alma os campos do infinito;
Aquece-se a tristinha ao sol da eternidade;
E se à lembrança traz as lendas que se foram,
São laivos de piedade!
Meu Deus! porque embalar-me o quêdo pensamento
Se amor é passageiro, se as glórias são de pó?!
Poetisa — tomo a lira às lufas da descrença,
E a ti me volto só.
Bondoso, abre-me os braços, reúne-me aos teus anjos,
A eterna ventura almejo palpitante;
Contemplarei o — nada — do seio das estrelas,
Das dores triunfante!
Minh’alma é como a rôla gemedora
Que delira, palpita, arqueja e chora
Na folhagem sombria da mangueira;
Como um cisne gentil de argênteas plumas,
Que falece de amor sobre as espumas,
A soluçar a queixa derradeira!
. . . . . . . . . . . . . . . .
Meu coração é o lótus do Oriente,
Que desmaia aos langores do Ocidente
Implorando do orvalho as lácteas pérolas;
E na penumbra pálida se inclina,
E murmura rolando na campina,
“Ó brisa, me transporta às plagas de orvalho!”
. . . . . . . . . . . . . . . .
Ai! Quero nos jardins da adolescência
Esquecer-me das urzes da existência,
Nectarizar o fel de acerbas dores;
Depois... remontarei ao paraíso,
Nos lábios tendo os lírios do sorriso,
Sobre as asas de místicos amores!
Zéfiro pleno da estival fragrância,
Sinto á teus beijos ressurgir-me n’alma
O drama inteiro da rosada infância !
Fagundes Varela.
Ó aura merencória do crepúsculo,
Mais terna que o carpir de Siloé;
És tu que embalas minha funda angústia,
És tu que acendes no meu peito a fé.
És tu que trazes-me a virgínia endecha
Que os anjos gemem na celeste estância;
O sussurro dos plátanos do Líbano,
O frescor dos rosais de minha infância!
Estranha languidez gela-me o seio;
Abre-se além a campa glacial;
Minha fronte que ao chão lívida pende,
Levanta com teu beijo divinal!
Eu tenho n’alma uma saudade infinda,
Mais profunda que o abismo dos espaços;
— Choro meu berço que deixei criança;
— Choro o sol que aclarou meus débeis passos.
Recorda-me as dolentes melodias
Que na lagoa canta o pescador;
E as tristonhas cantigas dos escravos
Quando o céu se desata em luz de amor!
E os campos de esmeraldas que se enlaçam
À opala radiante do infinito...
E a pluma extensa dos bambus da mata,
Onde ecoava da araponga o grito...
Ai, não me fujas, viração sentida!
Vê-me ainda da estação feliz!
Desfolha sobre a tumba de meus sonhos
A grinalda dos risos infantis!
Este ligeiro hálito da pátria
Como desperta sensação tão pura!
Como esta essência dos folguedos idos,
Infunde n’alma tão sutil ternura!
Ó aura do crepúsculo, mais suave
Que o perfume das rosas de Istambul;
Leva ao meu ninho meu gemer de Alcíone!
Traz de meu ninho a primavera azul!
Oh ! que essa tristeza tem doce magia;
Qual luz que esmorece lutando com as sombras Nas vascas do dia.
Bernardo Guimarães .
No silêncio das noites perfumosas,
Quando a vaga chorando beija a praia,
Aos trêmulos rutilos das estrelas,
Inclino a triste fronte que desmaia.
Eu vejo perpassar as sombras castas
Dos delírios da leda mocidade;
Comprimo o coração despedaçado,
Pela garra cruenta da saudade.
Como é doce a lembrança d'esse tempo
Em que o chão da existência era de flores,
Quando entoava, ao murmúrio das esferas,
A cópia tentadora dos amores!
E voava feliz nos ínvios serros
Em posse das borboletas matizadas...
Era tão pura a abóbada do elísio
Pendida sobre as veigas rociadas...
Hoje escalda-me os lábios riso insano,
E febre o brilho ardente de meus olhos:
Minha voz só retumba em ai plangente,
Só juncam minha senda agros abrolhos.
Mas que importa esta dor que me acabrunha,
Que separa-me dos cânticos ruidosos,
Se nas asas gentis da poesia
Elevo-me a outros mundos mais formosos?!
Do céu azul, da flor, da névoa errante,
De fantásticos seres, de perfumes,
Criou-me regiões cheias de encanto,
Que a lua doura de suaves lumes!
No silêncio das noites perfumosas,
Quando a vaga chorando beija a praia,
Ela ensina-me a orar tímida e crente,
Aquece-me a esperança que desmaia.
Oh! Bendita esta dor que me acabrunha,
Que separa-me dos cânticos ruidosos,
De longe vejo as turbas que deliram,
E perdem-se em desvios tortuosos!...t
AO DR. PESSANHA PÓVOA
Ingrata... Oh ! não te chamarei ingrata;
Sou filho teu: meus ossos cobre ao menos,
Terra da minha pátria, abre-me o seio!
Almeida Garrett.
Quando a noite destende seu manto,
Quando a Deus faz subir rude canto
Da lagoa o audaz pescador;
Quando rolam no éter mil mundos,
— Quando eleva, plangentes, profundos,
Seus poemas, feliz trovador;
Quando a aragem, perdida, faceira,
Beija a flor do amaranto, e ligeira
Os olores lhe rouba, tremente;
Quando a linfa se enrosca e murmura
Na macia, relvosa espessura,
Qual argêntea, travessa serpente;
Quando fulge a rainha dos mares,
Desdobrando, entornando nos ares
Suavíssima e plácida luz,
E descansa, chorando, na lousa
Onde a virgem dormente repousa,
Acolhendo-se à sombra da cruz;
Quando ao som das gentis cachoeiras
Mil ondinas a flux, feiticeiras,
Cortam rolos de espuma de prata;
E desperta do abismo os mistérios,
E ressoa nos campos aéreos
O gemido tenaz da cascata;
Sinto n’alma pungir-me um espinho!
Sinto o vácuo embargar o caminho
Que procuram meus trenos de amor!
Deste sol que dá luz e ventura,
Desses pampas de eterna verdura,
Ai! não vejo a beleza, o esplendor!
Se eu pudesse, qual cisne mimoso,
Que nas águas campeia orgulhoso,
Demandar minha pátria adorada...
Ou condor, em um voo gigante,
Contemplar sob o céu — palpitante —
Esses lagos de areia dourada...
Mas, ó pátria, são frágeis as asas!
E se aos bardos mil vezes abrasas,
Não me ofertas um mirto sequer!
Quando intento librar-me no espaço,
As rajadas, em tétrico abraço,
Me arremessam à frase — mulher!...
Seja embora! Se em leves harpejos
Vem a brisa cercar-te de beijos
E dormir sobre tuas campinas,
Dá-me um trilo dos plúmeos cantores!
Dá-me um só dos ardentes fulgores
De teu cálido céu sem neblinas!
Quando penetro na floresta triste
Qual pela ogiva gótica o antiste,
Que procura o Senhor.
Como bebem as aves peregrinas
Nas ânforas de orvalho das boninas
Eu bebo crença e amor!...
Castro Alves.
Salve! Florestas virgens, majestosas,
Aos céus alçando as comas verdejantes
Em perenes louvores!
Salve! Berço de brisas suspirosas,
Onde pendem coroas flutuantes
Aos lúcidos vapores!
Eu que esgotei do sofrimento a taça,
Que pendo para a campa húmida e fria
No alvorecer da vida;
Que na longa vigília da desgraça
Não vejo luz... nem tenho na agonia
Consolação querida;
Eu que sinto na fronte erma de sonhos
A centelha voraz, a febre ardente
Que o viver me consome;
Que já não creio num porvir risonho...
Que só busco olvidar num ai plangente
O martírio sem nome...
Oh! Eu quero, meu Deus, sorver sedenta
Os virgíneos eflúvios desta selva,
Gozar beleza e sombra!
Molhar meus pés na vaga sonolenta...
Desmaiar sobre a mole relva
Na balsâmica alfombra!...
Aqui, entre estes troncos seculares,
Sob a cúpula ingente que flutua
Num mar de luz serena,
Não penetra a paixão com seus esgares;
Mais lânguido fulgor esparge a lua
Nas asas da falena.
Na mística penumbra entrelaçadas
Vicejam longas palmas espinhosas
De rastejantes cardos;
E do âmago das árvores lascadas,
Em fios brotam bagas preciosas
De cristalinos nardos.
Ao brando embate da amorosa aragem
Desprendem-se das longas trepadeiras
Mil pétalas purpúreas;
E dos terrenos a tépida baforagem
Derrama o grato odor das caneleiras
No cálice das boninas.
Nas folhas de sereno gotejantes,
Balouça-se o inseto de esmeralda
À luz dourada e pura;
A serpente de tintas cambiantes
Desprende-se da florida grinalda,
E roja na espessura!
Além, recorta o vale aveludado,
Entre moitas gentis de violetas
O arroio preguiçoso;
E das flores aladas namorado,
Retrata as ondejantes borboletas
No leito pedregoso.
Em floridos festões creia a liana,
Sobre a límpida que rola murmurando,
Mil pontes graciosas,
Ou coliga-se à hercúlea canjerana,
E eleva-se, brandícias derramando,
Às nuvens luminosas.
O povo dos cerúleos passarinhos
Que há pouco em doces hinos de alegria
Cantava seus amores,
Voleia em busca dos macios ninhos
Saciado de gozo, a fantasia
Repleta de esplendores.
Pouco a pouco derramam-se nos ares
Mais doces murmúrios. Já se esvaem
No remanso da noite
Os harpejos dos trêmulos pilares;
Já não bafeja os lotos, que descaem,
Das auras o açoite.
Agora que repousa a turba estulta,
Que a lua brinca nos vergéis fulgentes,
E os silfos se embevecem,
O primeiro cantor brasileiro exulta;
E os gorjeios sonoros, estridentes,
Num gemido falecem!
De novo a voz se alteia palpitante
Ao capricho indolente, langoroso,
Da garganta canora;
Varia o poeta a escala delirante...
Dir-se-ia o murmurar langue saudoso,
Da onda que se explora!...
Eu amo estes risonhos alcáceres,
Quer a pino dardeje o rei dos astros
Seus raios queimadores,
Quer a névoa que ondeia entre os palmares
Deixe os noturnos, luminosos rastros,
Com gélidos palores.
Aqui aos ternos cânticos das aves,
Ao refulgir das lágrimas da aurora
Nos campesinos véus,
Minha alma pousa de emoções suaves
Desdenha a mágoa insana que a devora,
E remonta-se aos céus!
Salve! Florestas virgens, majestosas,
Aos céus alçando as comas verdejantes
Em perenes louvores!
Salve! Berço de brisas suspirosas,
Onde pendem coroas flutuantes
Aos lúcidos vapores!
Os negros píncaros do Ita-tiaya, em forma do agulhas, eram em seus vértices dourados por uma frouxa luz solar, em quanto que um certo lusco e fusco matutino pairava sabre as regiões ocupadas por Minas, S. Paulo e Rio de Janeiro. O gelo alastrado por terra e escalando o flanco dos montes, era um manto prateado nas várzeas e pirâmides de cristais nos cabeços dos montes!
Franklin Massena.
Ante o gigante brasileiro,
Ante a sublime grandeza
Da tropical natureza,
Das erguidas cordilheiras,
Ai! Quanto me sinto tímida!
Quanto me abala o desejo
De descrever num harpejo
Essas cristas sobranceiras!
. . . . . . . . . . . . . . . .
Vejo aos pés os vales pávidos
Que se desdobram relvosos;
Profundos, vertiginosos,
Cavam-se abismos medonhos!
Quanto precipício indômito,
Quanto mistério assombroso
Nesse seio pedregoso,
Nessa origem de mil sonhos!...
Ondulam ao longe murmúrios
Aos pés de esguios palmares,
As florestas seculares
Cingidas pela espessura;
A liana forma dédalos
Na grimpas das caneleiras,
Do cedro as vastas cimeiras
Formam docéis de verdura.
Por sobre os seixos dos álveos
Correm brancas serpentes,
E as águas soltam frementes
Doridos, brandos queixumes;
Ao perpassar pelas fragas
Em prateados cachões,
Sacodem nos turbilhões
Seu diadema de lumes.
Brota a torrente cerúlea
Do Aiuruoca em cascata,
Rola a treda catarata
Sobre coxins de esmeraldas;
A límpida desmaia túmida
No coração da voragem,
E terna - lambendo a margem
Vai perder-se além das fraldas!
Em três lagos vejo o tálamo
Onde as agulhas se elevam,
Neles constantes se cevam
Três espumosas vertentes;
Do Paraná galho ebúrneo
Do Mirantão se desprende
E, sem que banhe Resende,
Leva ao Prata os confluentes!
Rompendo o celeste páramo
Nem mais um tronco viceja,
A ericínia rasteja
Sobre as fendas do granito:
Tapeta o solo a nopália,
Vertem eflúvios a açucena,
E a legendária verbena
Coroa o negro quartzito!
Rompendo o celeste páramo
A ericínia rasteja;
Mais alto, ostenta-se a anêmona
No caule ranunculoso;
Pendem do seio mimoso
Flocos de virgem pureza:
Roubou-lhe a tinta das pétalas
O cirro que adorna a aurora;
A vaga quando desflora
Imita-lhe a morbidez!
O Térglu, o Asse e o Pesciora
Invejam esta altitude,
E da coma áspera e rude
Os cabeços recortados.
Pendem rochedos erráticos
Na vastidão da eminência,
Riquezas que a Providência
Guarda a seus predestinados.
Ao findar, às planícies
Nivelam-se as serranias;
Envoltos nas brumas frias
Transparecem os outeiros;
E o olhar ardente e ávido
Contempla os montes perdidos,
Como troféus reunidos,
Como tombados guerreiros!...
Salve! Montanha granítica!
Salve! Brasileiro Himalaia!
Salve! Ingente Itatiaia,
Que escalas a imensidade!...
Distingo-te a fronte válida,
Vejo-te às plantas, rendido,
O meteoro incendido,
A soberba tempestade!...
De teu dorso assomam ínvios
Feixes de pedra em pilastras,
Órgão gigante que enastras
De mil grinaldas alpestres!
Quem lhes calca a base, intrépido,
Vendo o sublime portento,
Liberta seu pensamento
Das amarguras terrestres!
Rasgando o horizonte plúmbeo
O sol te envia seus raios;
As nuvens formam-te saiões
Quais leves nebulosas!
Mimam-te as flores etéreas,
Cobrem-te espumas de neve,
Dão-te o pranto fresco e leve
Da noite as fadas formosas!
E quando envolvem-te as áscuas
Queimando o chão rociado,
Funde-se o tirso gelado,
Caem profusos fragmentos!
Muda-se o quadro de súbito:
Chovem cristais dos pilares,
E nu se perde nos ares
O perfil dos monumentos!...
. . . . . . . . . . . . . . . .
Vai meu canto ao mundo sôfrego
Que ante os prodígios se inclina,
Narrar a beleza alpina
Das regiões em que trilhas;
Leva-lhe nas asas vélidas
Meu culto à serra gigante,
Pátrio ponto culminante,
Berço de mil maravilhas!...
Lave-se a nodoa infame que mareia
O refulgente nome do Brasil;
E se o sangue somente lavar pode
Essa mancha odienta e vergonhosa
Venha o sangue, por Deus, venha a revolta!
Celso Magalhães.
Na noite sepulcral dos tempos idos
Plácida avulta a merencória esfinge;
Esplêndido ideal que esclarecera
A crente multidão!
Monumento do verbo grandioso
Deste povo titã, débil ainda...
Centelha sideral que fecundara
A seiva da nação!
Lacerado o cendálio tenebroso
Que nos velava os livres horizontes,
Entoa o continente americano
Um hino colossal;
Mais viva no peito a fé rutila;
Mais nobres se erguem dos heróis os bustos
Cingidos pela chama deslumbrante
Da glória perenal.
Mas tu projetas o negror no espaço
Que sobre nós desata-se em sudário!
Mas teu hálito extingue a luz benfazeja
Que acendera o Senhor!
Maldição! Maldição! A liberdade
Vê de lodo seu manto salpicado...
Do vulcão popular a ígnea lava
Desmaia sem calor...
Raiaste como o símbolo nefasto
Do traidor Antiteu, mentindo ao orbe;
E os louros virgens da nação sorveste
Como hidra voraz!
Roubaste ao povo a palma do triunfo,
Recompondo a algema ao pó lançada,
E moldaste no bronze a estátua fria
Da mentira loquaz!
Das espaldas robustas da montanha
A pedra derrocada abate selvas;
A avalanche vacila lá nos Alpes...
Convulsiona terra e mar!
Resvalaste, padrão de cobardia,
Pelos áureos degraus do sólio augusto...
E a santa aspiração, e os sonhos grandes,
Esmagaste ao tombar!...
Após a luz... o caos confuso, intérmino!
Após o hino festivo de um povo...
O lúgubre silêncio do sepulcro
Sem uma queixa ou voz!
Lançaste a pátria em báratros profundos
Ferida pela mão da tirania,
E apenas um lampejo de civismo
Deixaste ao crime atroz!
. . . . . . . . . . . . . . . .
Onde estavam, ó pátria, os teus Andradas
Que sustinham-te aos ombros gigantescos?
Onde o tríplice brado altipotente
Do peito popular?
— Gemem sem luz em cárceres medonhos,
— Seguem do exílio a pavorosa senda,
Rorando com seu pranto piedoso
De teu solo o altar!
Rasgai, rasgai a folha lutulenta,
— Emblema do mesquinho cativeiro;
Não vedes? Choram hoje em suas campas
Os manes dos heróis!...
Salvai a honra dos que em lar estranho
Por ti verteram lágrimas de sangue,
E resgatando a fé despedaçada,
Vingai nossos avós!
À BRANDINA MAIA
A madrugada
Recatada no véu d’espessa bruma
Aparece, respira-se alegria!
Theófilo Braga.
Querida, a estrela-d’alva ao mar se inclina;
Solta a calhandra o canto da matina
Na coma ingente da giesta em flor!
A natureza é uma ode imensa:
Eleva-se de cada moita densa
Um hino ao Criador!
Deixemos a cidade: além, a veiga
Nos guarda a olência apaixonada e meiga
Dos corimbos que agita a viração.
Vês? Desponta uma rosa em cada galho,
E das rosas trêmulo o doce orvalho
No rubro coração!
Pelas espáduas ásperas do monte,
— Gigante das legendas do horizonte,
Rola a espuma de luz e alaga o val;
Ao mole influxo de teu riso mago
Desperta o euro e frisa em doido alago
Das límpidas o cristal!
E o nenúfar, a estremecer de frio,
Levanta a fronte cérula do rio
Expondo ao raio a face de cetim;
As borboletas dançam como wilis;
Esquece a louca abelha as amarílis
No seio do jasmim!
Da selva secular, nas verdes naves,
Perdem-se ao longe os cânticos suaves
Dos voláteis salmistas do sertão;
Ouves? A queixa túrbida das matas,
E o murmúrio merencório das cascatas
Reboam na amplidão!...
Rasgando a profundeza flutuante
Das nuvens, a pilastra cintilante
Sustenta do infinito a concha azul.
E a concha do infinito é o quente ninho,
Donde a estrela, dourado passarinho,
Voara para o sul! —
Na terra — plena paz! plena harmonia!
Rolam cantos de amor, de poesia,
No val, na serra, na extensão do mar!...
No firmamento — fogos peregrinos,
E a névoa a gotejar prantos divinos
De Deus ao terno olhar!...
É a hora em que a prece da serrana
Vai fervente da plácida cabana
As plantas expirar do Redentor!
Em que a loira criança acorda rindo!
E corta o dorso do oceano infindo
O pobre pescador!
E a fantasia arroja-se no espaço,
Da caligem quebrando o frio laço
Para ondular no pélago de anil!...
E Deus desprende para ti, formosa,
A essência virginal da tuberosa,
Que se embala no hastil!
Em nosso seio brinca a primavera,
Em nossa fronte a lúcida quimera
Verte a flama voraz da inspiração;
Pois bem! Que o vento leve à divindade
Do puro altar de nossa mocidade
O incenso da oração!...
Eu te achei, meu bordão de romeiro
Quando mal m’esperavas... talvez!
Teixeira de Mello.
Enfim te vejo, estrela da alvorada,
Perdida nas celagens do horizonte!
Enfim te vejo, vaporosa fada,
Dolente presa de um sonhar insonte!
Enfim, de meu peregrinar cansada,
Pouso em teu colo a suarenta fronte,
E, contemplando as pétreas cordilheiras,
Ouço o rugir de tuas cachoeiras!
Mal sabes que profundos dissabores
Passei longe de ti, Éden de encantos!
Quanto acerbo sofrer, quantos agrores
Umedeci com as bagas de meus prantos!
Sem um raio sequer de teus fulgores...
Sem ter a quem votar meus pobres cantos...
Ai! o simum cruel da atroz saudade
Matou-me a rubra flor da mocidade!...
Vivi bem triste! O coração enfermo
Buscava embriagar-se de harmonias,
Porém via do céu no azul sem termo
Um presságio de novas agonias!...
O bulício do mundo era-me um ermo
Onde as lavas do amor chegavam frias...
Só uma melancólica miragem
Dourava-me a solidão — a tua imagem!
Caminhei, caminhei sem ter descanso
Ao som das epopeias das florestas;
Caminhei, caminhei e no remanso
Da tarde, ouvi do mar as vozes mestas;
Nas ribas descansei de um lago manso
Pra gozar do talento as nobres festas,
E adormeci na esmeraldina alfombra
Da palmeira real à grata sombra!
Caminhei inda mais: com nobre empenho
Penetrei no sagrado santuário
Onde o gênio — em delírio — arrasta o lenho
Do trabalho, em demanda de um Calvário!
Vi surgir sobre a tela, à luz do engenho,
E povoar o templo solitário,
Da Carioca a lânguida figura,
De Nhaguassu o feito de bravura!...
Inclinada nas longas penedias
Acompanhei o voo das gaivotas;
Meu nome arremessei às ventanias
Sem que sentisse sensações ignotas!
Da musa do piano as melodias,
De uma flauta canora as doces notas,
O gelo que sorvi num mago enleio,
Tudo gelado achou meu débil seio!...
Mas após negridão de noite lenta,
Na curva do horizonte o sol resplende:
Após o horror de tétrica tormenta,
Fugaz santelmo lá no céu se acende;
Após o latejar da dor cruenta
Vejo-te enfim, ó plácida Rezende,
Debruçada no cimo da colina,
Sorrindo meiga à exausta peregrina!
Abre-me os braços, filha do ocidente,
Quero beber teus úmidos luares!
Quero escutar o soluçar plangente
Do vento pelas franças dos palmares!
Não vês que no meu lábio há sede ardente
Que calcinou-me a tez o sol dos mares?...
Ah! mostra ao passo meu tardio, incerto,
A sombra d’arequeira do deserto!
Que saudades que eu tinha das campinas,
Destes prados e veigas odorantes!
De teu tirso de cândidas neblinas
Recamado de auroras cambiantes!
Destas brandas aragens matutinas
Que doudejam com as ondas murmurantes,
De tudo, tudo quanto em ti resumes,
Formosa noiva dos estivos lumes!
Na corola da flor de minha vida
Se aninha agora inspiração mais pura;
De meu do natal a voz sentida
Desperta em mim um mundo de ternura!
Em minha triste fronte empalidecida
Mais uma estrofe límpida fulgura,
E no berço de tuas matas densas
Libo sedenta o orvalho de mil crenças!...
Ó filha de Tupã, que um véu de brumas
Estendes sobre o mísero precito;
Ó ave linda, que as mimosas plumas
Aqueces nos ardores do infinito;
Garça gentil, que surges das espumas
Como da mente do poeta o mito,
Enquanto a lua ondula pelo espaço,
Abre a meu sono eterno o teu regaço!
Délivrez, frémissant de rage,
Votre pays de l'esclavage,
Votre mémoire du mépris!
Victor Hugo.
Senhor, o calmo oceano
Do verão nas quentes noites,
Se revolta sobranceiro
Da tempestade aos açoites!
Encrespa o dorso potente
Dilacerando, fremente,
As asas do vendaval;
Faz cintilar a ardentia,
E arroja à nuvem sombria
Diademas de cristal!
Envolta em flocos de neve
Se levanta a cordilheira;
Sonha um raio ardente, ígneo,
Que lhe doire a cabeleira!
Fita audaz o vasto espaço,
Despedaça o tíbio laço
Dos nevoeiros do sul;
Solta a coma de granito,
Vai devassar o infinito
Rasgando o cendal azul!
No espelho em que o sol se mira
A tarambola, em delírios,
Corta com as plumas de prata
Da espuma os nítidos lírios;
De sobre o escarcéu, ignota,
Num voo imenso a gaivota
Sonda os páramos do ar;
E dos paços encantados
Surgem peixinhos dourados
Que saltam à flor do mar!
Oh! tudo, tudo se expande
Às auras da liberdade!
A treva calcando às plantas,
Demandando a imensidade!
Do incenso a loura neblina...
O som da voz argentina
Que canta idílios de amores...
Do Nuttall o pó ardente...
Da mata a cúpula virente...
Do rio os tênues vapores!
E sob o céu sempre belo
Da mais sedutora plaga,
Beija — o rei — da natureza
O ferro que o pulso esmaga?!
Que importa que os saxêos montes —
Atalaias de horizontes —
Clamem do ar na amplidão:
“Levanta-te, ó povo bravo,
Quebra as algemas de escravo
Que aviltam-te o coração”?!
Rompem-se esforços insanos,
Esmaga o flagício lento;
Mas a verdade sublime
Não aclara o firmamento.
Descera a mortalha fria
Que do mais formoso dia
Enturvava o alvorecer,
E não transborda ruidoso
O vagalhão luminoso
Que o cetro deve sorver!?
Meu Deus, quando há de esta raça,
Que genuflexa rebrama,
Erguer-se de pé, ungida,
Das crenças livres na chama?
Quando há de o tufão bendito
Trazer, das turbas ao grito,
O verbo de Mirabeau?
E a luz da moderna idade
Ao crânio da mocidade
Os sonhos de Vergniaud?!...
Oh! dá que em breve eu contemple
Aos puros raios da glória
O feito altivo gravado
Nos fastos da pátria história!
Dá que deste sono amargo,
Deste pélago em letargo
Que nos envolve no pó,
Surja a vaga triunfante
Que anime no túmulo ovante
As cinzas de Badaró!
À ADELAIDE LUZ
La nature semblait n’avoir qu’une âme amante,
La montagne disait: Que la fleur est charmante!
Le moucheron disait: Que l’océan est beau !
Victor Hugo.
Era à tardinha: a luz no monte debruçada
Nos enviava o — adeus — com tépido langor;
Brincava em nossas tranças a brisa embalsamada,
Tudo ante nós sorria, desde a gramínea à flor.
E tu me perguntaste com essa fala aérea,
Tomando minha mão nas tuas mãos mimosas:
— “Por que cismando fitas a vastidão sidérea?
Por que contemplas muda as tênues nebulosas?”
Escuta: a terra sagra ao sol mil harmonias!
A fonte ondula trêmula a superfície azul;
Vagam no espaço — errantes — celestes melodias,
E róseas nuvens cingem a amplidão do sul.
No ar brincam as sombras com seus fulgores pálidos,
As dríades desdobram as asas transparentes;
Esquece a magnólia do dia os raios cálidos,
E os alvos nenúfares se ocultam nas correntes.
Ao longe, o busto negro de imensa serrania
Campeia majestoso ao lânguido clarão...
Esvaece-se lá nas selvas o som d’Ave-Maria...
E a trepadeira rubra alastra o mole chão.
Argênteas cataratas, rolando pelas fragosas,
Sacodem catadupas de lindos diamantes;
Na face dos arroios, na candidez das águas,
Perfumam mariposas os corpos cambiantes.
Além soluça a rola um cântico saudoso...
Entorna-se a poesia do firmamento à flux;
Gemem eólias harpas, e o manto luminoso
Do céu desvenda as loiras palhetas que produz!
Não me perguntes mais com essa fala aérea
Por que muda contemplo as tênues nebulosas,
Por que cismando fito a vastidão sidérea,
Ó sílfide embalada em névoas vaporosas!
Vejo no lago azul, na flor, nos verdes montes,
O Ser que cria a brisa, e doura o arrebol;
Que impele a nuvem túmida por sobre os horizontes,
Que, fazendo-nos de pó, vestiu de luz o sol!...
Tu és o cisne que em meus cantos canto,
Tu és a amante que em meus prantos chora!
Teixeira de Mello.
Contemplas-me, virgem pálida?
Mandas-me um riso? Não creio!
Não vejo a espuma fulgente
Da luz, num beijo fervente,
Tingir-te a neve do seio!
Por que de brandas carícias
Circundas a poetisa?
Não tens, acaso, nas flores
Mais feiticeiros amores?
Não tens o arpejo da brisa?
Quando no leito sidéreo
Repousas a face linda,
Pareces alva criança
Que, descuidosa, descansa
No berço alvejante ainda.
E se passas entre páramos
Nos braços de mil aninhos;
Se vais banhar-te nos lagos
Do lírio aos langues afagos,
Saúdam-te os passarinhos!
Ah! quebra a mudez intérmina,
Meiga irmã dos pirilampos!
Não vives de poesia?
Por que percorres sombria
Do céu os lúcidos campos?
Estendo-te os braços trêmulos,
Vem desvendar-me o mistério;
Contar-me as latentes dores,
A causa dos teus palores,
Rainha do reino aéreo.
Depois... ao clarão esplêndido,
Seguindo-te os lentos passos,
Contar-te-ei meus pesares
Em frente à extensão dos mares,
Presa em teus débeis laços.
Mas não tentes, em silêncio,
Sondar a chaga dorida!
É tarde, virgem, é tarde,
No meu seio apenas arde
Uma centelha de vida!
Ergueu-se a mão de Deus sobre o Ipiranga
Quando o esteio aluiu do despotismo.
Félix da Cunha.
En vain l’injuste violence
Au peuple qui le loue imposerait silence ;
Son nom ne périra jamais.
Le jour annonce au jour sa gloire et sa puissance.
Racine.
Salve! dia feliz, data sublime
Que despertas o sacro amor da pátria
Em nossos corações!
Salve! aurora redentora que eternizas
A era em que o Brasil entrara ovante
No fórum das nações!
Além do oceano, entre coreias místicas,
Com a imensa coma abandonada aos ventos
Descansava a dormir,
O filho altivo das cabrálias cismas;
— Calmo como a Sibila que tateia
Mistérios do porvir!
E os ósculos ardentes do pampeiro
Do gigante adormido os lassos membros,
Enchiam de vigor,
E os débeis raios da saudosa lua
A soberba cabeça lhe adornavam
D'estremas de fulgor.
Um dia... ai! despertou, vendo cortado
Pela infame cadeia dos cativos
O nobre pulso seu;
Estremecera em ânsias: lava ardente
Rugia incendiada pelas fibras
Do novo Prometeu!...
E os mundos agitaram-se nos eixos;
E o mar convulso arremessou aos ares
Cristais em turbilhões;
E a humanidade inteira ouviu tremendo
O brado heroico que rasgara o peito
Do gênio das solidões!
Após insano esforço, ergueu-se ingente
Calcando aos pés a algema espedaçada
Da luta no estertor,
E o Amazonas foi dizer aos mares,
E os Andes se elevaram murmurando:
"Eis-nos livres, Senhor!"
Tu foste meiga estrela que fulguras,
Apontando o caminho ao pegureiro
Exposto ao vendaval;
Rosa orvalhada de divinas lágrimas,
Que o colo purpurino reclinaste
No sólio de Cabral;
Liberdade gentil, visão dos anjos,
Clícia mimosa balouçada à sombra
Pelo bafo de Deus,
Tu foste, como sempre, a luz d'aliança
Que a santa chama n’alma aviventaste,
Roubando-a aos escarcéus!...
Mas não se cinge a escravidão à algema:
A terra que sagrar vieste livre
Do futuro no altar,
Rasgado o seio por voraz abutre,
Vê-se agora entregue à escravidão dos erros,
Sem forças, vacilar!
Ah! não te esqueças deste augusto dia!
Ampara o débil povo que se curva
Ante um falso poder!
Desdobra tuas asas refulgentes
Sobre o leito fúnebre em que repousa
O mártir Xavier!
E quando os filhos teus tendo por bússola
A crença livre que n'antiga idade
Fundiu tantos grilhões,
Remontarem aos polos do futuro
Enchendo o vazio de um presente inerte
De indústria e aspirações;
Serás tu, liberdade sacrossanta
Que cingida de magos resplendores
Nos ungirás de luz!
Serás tu, que voltada para o infinito
Nos guiarás na senda fulgurante
Que à vitória conduz!...
Salve! dia feliz, data sublime,
Que despertas o sacro amor da pátria
Em nossos corações!
Salve! aurora redentora que eternizas
A era em que o Brasil entrara ovante
No fórum das nações!...
Eu amo a noite solitária e muda
Quando no vasto céu fitando os olhos,
Além do escuro que lhe tinge a face
Alcanço deslumbrado
Milhões de soes a divagar no espaço.
Gonçalves Dias.
Ó Noite, meiga irmã da poesia,
Ninfas em lânguidas cismas balouçada,
Abre-me o seio teu, pleno de encantos!
Oh! Quero em ti fugir à dor famélica
Que me devora o coração sem vida
E os seios de minh'alma dilacera!
Quero a fronte pendida alçar, envolta
Na fímbria imensa de teu manto tétrico!...
Debruça-se a nopália enfraquecida
Se o cálice lhe bafeja o Norte adusto;
Desmaia a vaga azul na praia curva
Como um arco indiano, quando céleres
Do favônio indolente os leves beijos
Esfrolam da laguna a nívea opala;
Também meu coração se estorce e sangra
Do sofrimento entre as cruentas fragas!
E tu, que as alvas pétalas requeimadas
Alentas com uma lágrima celeste;
Tu, que da espuma da amorosa ondina
Formas na concha a preciosa pérola;
Concede ao peito meu que a mágoa enluta
Ainda um momento de serenos gozos...
Um riso que meus lábios ilumine,
Um só lampejo de fugaz delícia!
Ó fonte de ilusões, sobre teu colo
Repousa exangue o desgraçado escravo;
Ao silêncio que espalhas sobre a terra
Implora o triste bardo a estrofe rútila,
Que se expande em torrentes de harmonia!
E o pobre, em áureos sonhos, transportado,
Contempla a messe que promete o estio
Aos filhos desditosos da miséria!
Quanto te amo, ó Noite! À mole queixa
Da brisa que adormeces na floresta
Confundo meus tristíssimos gemidos;
À melodia das esferas pálidas
Que as orlas de teu véu sombrio bordam,
Concerto os trenos que o sofrer me inspira
E a gota amarga que me sulca as faces
A um teu sorriso se converte em bálsamo!...
Quando na extrema do horizonte infindo
Do sol se apaga o derradeiro raio;
Quando lenta e tardia desenrolas
De teu manto real a tela plúmbea;
Quando vais rociar a lajem tosca
Da fria sepultura com teus prantos,
O murmúrio dos mundos emudece
Ante tua grandeza melancólica!...
E se a filha gentil de teus amores
Cingida de palor no éter brilha;
Se a poeira dos astros cintilantes
Do Senhor do universo esmalta o sólio;
Minh'alma desatando os terrenos laços,
De vaga fantasia arrebatada,
Vai pelos raios de formosa estrela
Aninhar-se do elísio na flor cérula!...
Ó Noite, meiga irmã da poesia,
Ninfa em lânguidas cismas balouçada,
Abre-me o seio teu, pleno de encantos!
Desse regaço o divinal mistério
Faz-me esquecer a angústia cruciante
De passadas visões! E de meu seio,
Teu morno sopro nas geladas cinzas,
Anima a esperança de um futuro esplêndido!...
Venez: l'onde est si calme et le ciel est si pur !
Victor Hugo
Lírio mimoso dos jardins cerúleos,
Plácido arcanjo de brilhantes vestes,
Vem, Sono, e com teu cetro fúlgido
Fecha-me os olhos.
Não vês que as sombras se desdobram tétricas?
Que Éolo geme sem já ter um silvo?
Não vês que os gênios do oceano indômito
Lânguidos choram?
Vem, que a fragrância dos junquilhos cândidos
Se casa ao múrmur da fugaz corrente;
Há na folhagem das sombrias árvores
Túrbida queixa.
Se ao leito foges em que rola o cético
Turbando a noite com a blasfêmia ímpia,
Tu vens da virgem deferir a súplica
Tímida e pura!
E quando baixas, belo ser notívago,
Vertendo orvalhos, mitigando dores,
As magnólias que se alteiam pálidas
Curvam-se n’haste.
O pobre escravo num langor benéfico
Recobra forças para a luta insana;
Lasso proscrito, todo o horror do exílio
Mísero! — esquece.
A branca pomba, da doçura símbolo,
Oculta a fronte sob as níveas asas;
E o rei das feras nas cavernas líbicas,
Flácido tomba!...
O cafre exausto sobre a areia tórrida
Busca a palmeira no Saara erguida;
E goza ao sopro de teu meigo hálito,
Mágico encanto!
Oh! mais não tardes, vem ungir-me as pálpebras
Meu ser embala num dourado sonho!
Rasga o véu denso que limita o vácuo,
Mostra-me a pátria!...
A MEU PAI, O SR. JÁCOME DE CAMPOS
I
À toi ce dur métier,
D’empêcher que le droit ne meure tout entier,
A toi, vers fossoyeur, de déterrer les ombres,
De secouer des morts le spectre gémissant,
De mettre au front du crime une marque de sang !
Jean Larocque.
Quando nas horas mortas da noite que se esvai
Me empalidece a face e a fronte me decai,
Eu d'essa vastidão sem fim do mar do mundo
Pulho as raras per'las que dormem lá no fundo
E vejo a luz mostrar-se a custo, fugitiva,
Por entre densas trevas a cintilar cativa.
Da velha idade ao sol... Na Grécia florescente
Caindo o persa audaz, não vê a lava ardente
Que lavra desses peitos nos férvidos vulcões,
Da pátria a queixa rasga os gregos corações:
Levanta-se Milcíades e nas guerreiras lides
Abraça o gênio másculo do integro Aristides!
Além folgava Roma em seus festins ruidosos
Berço da ímpia Túlia e régios criminosos, -
E a sanha do Soberbo - rugia sob os véus
De fulgidos zimbórios e lindos coruchéus:
Mas a honra de Lucrécia, por um príncipe ultrajada,
No sangue dos senhores por Bruto foi vingada.
Nessas montanhas ínvias, nos alcantis virentes,
Na limpidez dos lagos de ondulações trementes;
No seio d'esse ninho formado de mil flores,
Onde cantam idílios os tímidos pastores,
Eu vejo fulminadas as águias poderosas
Que de Tell desafiaram as iras belicosas.
No chão da confusão arquejam parlamentos;
Trêmulo de ardor, reúne esparsos regimentos
E à frente das falanges intrépidas, luzidas,
"Vingança!" brada Cromwell às raças oprimidas.
Com rapidez terrível o gládio soberano
Atira ao pó a fronte do plácido tirano!
E vejo um lidador com santo entusiasmo
Tentar roubar a Itália a seu servil marasmo;
Reavivar a chama - a chama amortecida
Na mesa do banquete, na morbidez da vida...
Mas ai! de um fero papa, ao mando assassinado,
Rienzi o invencível caiu sacrificado!
E lá quando a Polônia nas garras de seus erros
Se estorce, enchendo em vão de lágrimas os cerros,
Encélado sublime, em frente às invasões,
Destaca-se Kosciuszko erguendo as multidões!...
Escrita estava a sorte: devasta a Prússia a plaga,
E o esforço sobre-humano a Rússia fria esmaga.
A filha de Albion ativa repousava
Além do vasto mar, ante a mãe pátria - escrava;
Quebra o patriotismo o leito em que dormia,
Ergue-se o povo herói e a luta acaricia:
Silvando voam balas, o eco acorda os montes,
Livre surge a nação enchendo os horizontes!...
II
Ton souffle du chaos faisait sortir les lois;
Ton image insultait aux dépouilles des rois,
Et, debout sur l’airain de leurs foudres guerrières,
Entretenait le ciel du bruit de tes exploits.
CASIMIR DELAVIGNE.
Salve! Oh! Salve Oitenta-e-Nove,
Que os obstáculos remove!
Em que o heroísmo envolve
O horror da maldição!
Rolam frontes laureadas,
Tombam testas coroadas
Pelo povo condenadas
Ao grito — revolução!
Cabem velhos privilégios
D’envolta com os sacrilégios;
São troféus — os céticos régios,
Mitra, burel e brasão!
E os três esquivos estados
Fundem-se em laços sagrados,
Que prendem os libertados
Aos pés da revolução!
No pedestal da igualdade,
Firma o povo a liberdade;
Um canto à fraternidade
Entoam a voz da nação,
Que em delírio violento
Fita altiva o firmamento,
E adora por um momento
A deusa — Revolução!
Os ódios secam o pranto,
A ira tem mago encanto,
E a morte sacode o manto
Lançando crânios no chão!
Aqui — são longos gemidos
Desses que tombam feridos;
Ouve-se além — os rugidos
Da fera — revolução.
Treme a humana potestade
Ante tanta mortandade!
Proclama que a sociedade
Agoniza em convulsão!
Erguem-se estranhas fileiras,
Vão devassar as fronteiras,
Bradando às hostes guerreiras:
— Abaixo a revolução!
O nobre povo oprimido
Supõem fraco e vencido;
Medem-lhe o sangue espargido
Nas vestes da confusão.
Não sabem que é mais veemente
Dos livres o grito ingente,
Quando reboa fremente
À luz da revolução!
Levanta-se hirta a falange,
E a louca marcha constrange;
Rindo-se aguça o alfange
Tendo por guia a razão!
Ao sibilar da metralha
O obus gemendo estraçalha,
E o vasto campo amortalha
Quem fere a revolução!
Cobre a bandeira sagrada
A multidão lacerada,
E da França ensanguentada
Assoma Napoleão;
Surge da borda do abismo
O gênio do cristianismo,
E dos mártires o civismo
Confirma a revolução.
III
Que palmas de valor não murcha a grande história!
O povo esquece um dia os inclítos varões...
Pedro Luiz.
Contempla, minha pátria, sobranceira,
Dessas hostes os louros refulgentes;
E procurando a glória em teus altares
Entrelaça uma coroa a Tiradentes.
Viste marchar ao exílio acorrentados
Quais feras que teu seio rejeitava,
Os mais que desprender-te o pulso tentam,
E dormiste sorrindo — sempre escrava!...
E quando retumbou no espaço um brado
Tentando sacudir-te a negra coma,
Curvaste-te ao flagício fratricida
E deste ao cadafalso o — Padre Roma!
E não contente, após a exímia aurora
De tua amesquinhada independência,
Mais vítimas votaste em holocausto
Sufocando outra nobre Inconfidência.
Não bastavam, porém, tantos horrores
Que enegrecem as brumas do passado;
Foi preciso que às mãos de um assassino
Caísse o grande herói — Nunes Machado!
Foi preciso que em nome da justiça
De prisão em prisão vagando esquivo,
Acabasse afinal sem glória e nome,
Em martírio latente — Pedro Ivo!...
Mas se um dia o porvir abrir-te o livro
Que o presente te oculta temeroso;
Se com a vista medires a estacada
Em que o falso poder se ostenta umbroso;
Então, ó minha pátria, num lampejo
Os erros surgirão da majestade;
E arrojarás ao pó cetros e tronos
Bradando ao mundo inteiro — Liberdade!
A
SUA DEDICADA AMIGA
A Exma. Sra.
D. MARIA AMÉLIA D’IVAHY BARCELLOS
O. D. C.
A AUTORA.
O livro do destino se entreabre
Deixando ver nas páginas douradas
O seu nome fulgente, glorioso,
Que as turbas admiram assombradas!
Joana Tiburtina
Deus quis ouvi-lo.
Deu-lhe um poema no céu — a Eternidade!
Costa Carvalho.
Por que convulso geme o pátrio solo,
Dos montes despertando os ecos lúgubres?
Por que emudece o férvido oceano
E à terra, erma da luz, chorando atira
Mil turbilhões de lágrimas amargas?
Por que de sombras tétricas se vela
O firmamento azul? Que mágoa imensa
Enluta os corações e arranca o pranto?!...
É que o sono final cerrara os olhos
De um filho das solidões americanas!
O sol que avivara a chama augusta
No peito dos titãs do Dois de Julho,
Iluminara o berço vaporoso
Do pálido cantor da liberdade!
As dulcinosas brisas lá do Norte,
Ao ensaio dos passos vacilantes,
Traziam-lhe os queixumes, despertando
Um mundo de harmonias em sua alma!
E a dileta criança estremecia
Sentindo em si a seiva do futuro.
Mais tarde a fronte nobre, cismadora,
Volvia ao céu para escutar-lhe os votos
E muda, à terra, revolvia pávida
Como o profeta que a missão sublime
Das mãos de Deus recebe; desmaiava
Como desmaia a flor da magnólia
Aos ardores do estio. E radiosa
A pátria contemplou-o embevecida!
Já não era a criança temerosa
Do confuso murmúrio das florestas;
Era o poeta cuja lira de ouro
Erguia do sepulcro o vulto ingente
Do apóstolo Pedro Ivo; cujos trenos
Derramavam lampejos fulgurantes
De um róseo amanhecer: ora risonhos
Como as límpidas pérolas que entorna
A roçagante alvorada, ora profundos
Como os cavos rugidos do Oceano!
Estranha confusão de riso e pranto,
De luz e sombra, mocidade e morte!
Depois, cisne de amor, deixou os lares
Demandando as campinas rociadas,
Onde ecoara o brado altipotente
De Independência ou Morte. Ali desdenha
As três irmãs que lhe apontavam gélidas
O porvir do poeta; vê o gênio
A marchar, a marchar no itinerário
Sem termo do existir, morto de inveja!
"E o mísero de glória em glória corre
Buscando a sombra de uns frondosos álamos."
"E queria viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama o éter;
Ver sua alma adejar pelo infinito
Qual branca vela na amplidão dos mares;
Sentia a voraz febre do talento,
Entrevia um esplêndido futuro
Entre as bênçãos do povo; tinha na alma
De amor ardente um universo inteiro!"
"Mas uma voz lhe respondeu sombria:
— Terás o sono sob a laje tosca!"
E nessas regiões sempre formosas
Onde acenava-lhe o farol da ciência,
O louco sonhador dos Três Amores
Colheu o fatal germe destrutível
Que minou-lhe a existência; quebrantado
Volveu às plagas que deixara outrora
Por pressentir, como única esperança,
Um túmulo entre os seus, no pátrio ninho.
E as almejadas palmas do triunfo
Converteram-se em louca mortuária!
Mas... não morreste, não, condor brasileiro,
Que nunca morrerão teus puros versos!
Não, não morreste, que não morrem Goethes,
Não morrem Dantes, Lamartines, Tassos,
Garrets, Camões, Gonçalves Dias, Miltons,
Azevedos e Abreus. Teus belos cantos
Cortarão as caliginas das idades
Como de Homero os divinais poemas!
E lá da eternidade onde repousas,
Acolhe o canto meu que o pranto orvalha!...
(no álbum do maestro)
N’harpa estalada ao dedilhar primeiro
Não acho um canto para erguer-te ao mundo!
Não acho uma asa para erguer-me a ti!
Teixeira de Mello.
Nas ondas de aplausos que rolam-te às plantas
Mil anjos em flux,
Derramam-te n'alma delícias bem santas!
Circundam-te a fronte que altiva levantas
Coroas de luz!
A glória envolveu-te na faixa fulgente,
De puro esplendor,
No seio aqueceu-te, mostrou-te contente
A senda bordada de louro virente,
De prantos sem dor.
O gênio brilhou-te na testa inspirada
Com vivos clarões;
A pátria escutou-te sorrindo enlevada;
A fama cantando na tuba dourada,
Levou-te às nações!
E em meio de chuvas de louros, de rosas,
Surgiu — Guarani. —
O céu recamado de auroras formosas,
As auras, as flores, as nuvens mimosas
Sorriram-se aqui.
Avante! E se longe da pátria encontrares
Mimoso louvor;
Descantem teus lábios à luz dos luares,
Saudades das filhas dos pátrios palmares,
Dos anjos de amor!
À HELENA KISCHER
Esperança... e o símbolo do faturo,
o caminho incessante para o saber,
para a riqueza, para o céu.
Jácome de Campos.
Uma noite em que a febre da vigília
Escaldava-me o crânio e a fantasia,
Das regiões da luz e da harmonia
Eu vi baixar uma gentil visão;
Tinha na fronte ebúrnea, em vez de pâmpanos,
Grinalda de virgíneas tuberosas,
E trazia nas alvas mãos mimosas
O sagrado penhor da redenção.
E perguntei: - Quem és, arcanjo fulgido,
Que vens iluminar-me a noite escura?
Quem és, tu que derramas a frescura
No pudibundo cálice da flor?...
Serás acaso a ondina teotônica
Envolta das espumas no sudário?
Serás um raio vindo do Calvário
Para trazer-me vida e crença, e amor?...
"Vida... Não tentes, querubim empírico,
Reanimar a chama extinta hoje!
Sinto que o círio da razão me foge
Da treva eterna no assombroso mar!
Crença... Em vão a pedi com longas lágrimas!
Em vão a clama meu sofrer profundo,
Como clamava Goethe moribundo
Luz! Às sombras silentes de Weimar!...
Amor... Límpido aljôfar que das pálpebras
De Cristo rola fecundando o solo!
Amor... Suave bálsamo, consolo
Que implora a humanidade ao pé da cruz!...
Oh! Sim, aponta-me a miragem cândida
Que mostra ao crente o paraíso aberto;
Estrela de Israel, que do deserto
Aos braços da Vitória nos conduz!...
Mas quem és, tu que vens erguer do pélago
A aurora funeral de meu futuro?
Fala! Quem és, que um ósculo tão puro
Depões em minha fronte de mulher?!"
"Sou a Esperança, disse; em minha túnica
Brilha serena a lágrima do aflito;
Tenho um sólio no seio do infinito,
E banha-me o clarão do rosicler!
Abre-me o coração pleno de angústias,
Conforto encontrarás em meu regaço;
Criarei para ti mundos no espaço
Onde segredo amor aura sutil!
Onde em lagos azuis de areias áureas
Se embalem redivivas tuas crenças,
E à meiga sombra das lianas densas
Vibres cismando as notas do arrabil."
"Curvo-me, ó anjo, a teu acento plácido:
Já nem me punge tanto o sofrimento!
Sinto em meu peito o divinal alento
Que verte na alma teu cerúleo olhar!
A meus olhos se rasga atro sudário,
Fito o incerto porvir mais calma e forte:
Já tenho forças pra lutar com a sorte
E voto a minha lira em teu altar!"
RECORDAÇÃO DA FAZENDA ESPERANÇA
À EXMA. SRA.
D. MARIANNA CÂNDIDA DE M. FRANÇA
I
Ó noite plena de celeste encanto,
Fonte sagrada de abusões suaves,
Deixa que eu prenda a teu cendal meu canto;
Deixa que eu libe teus harpejos graves,
Ó noite plena de celeste encanto!
Quando do empíreo te debruças linda
Que doce paz no coração entornas!
Com a flor mimosa da saudade infinda
O peito enfermo do proscrito adornas,
Quando do empíreo te debruças linda!
De teu bafejo ao perfumoso afago
O cacto abre a virginal corola
E a ondina paira sobre o azul do lago!
Da brisa o treno no infinito rola
De teu bafejo ao perfumoso afago!
E tudo, tudo quanto vive ama
Bebendo as lendas que teu manto espalha;
De Vênus brinca a vaporosa flama
Com o facho humilde do casal de palha,
E tudo, tudo quanto vive ama!
Em derredor de uma fogueira ardente,
Qual tribo inquieta de falenas loucas,
Dançam moças sobre a gleba algente;
E o riso entreabre coralíneas bocas
Em derredor de uma fogueira ardente.!
No chão resvalam como orvalho de ouro
Fátuas centelhas recortando o espaço;
Da laranjeira o doce fruto louro
Da luz cedendo ao languescido abraço,
No chão resvala como orvalho de ouro!
Corre o tambor a extravagante escala
Seguindo o canto que murmura o escravo;
Negra crioula a castanhola estala,
E à voz robusta que levanta um — bravo!
Corre o tambor a extravagante escala.
Ó noite plena de celeste encanto,
Fonte sagrada de abusões suaves,
Deixa que eu prenda a teu cendal meu canto
Deixa que eu libe teus harpejos graves,
Ó noite plena de celeste encanto!
II
Rasgou-se a faixa noturna
Que a natureza envolvia,
E a aurora rubra derrama
Torrentes de poesia;
Das cascatas, da floresta
Ergue-se um hino de festa
Nas harpas da viração;
E o sol — Vesúvio sublime —
Nos crânios vastos imprime
A lava da inspiração!
Erguendo ao Senhor hosanas,
Curva-se no altar o levita,
E a bênção concede à turba
Que genuflexa palpita.
Da fé, à chama divina,
Cada cabeça s'inclina
Banhada de etérea luz;
De cada lábio rubente
A prece voa fervente
Ungindo o pé da cruz!
A criancinha dileta
Rindo recebe o batismo
E isenta de culpas, entra
No templo do cristianismo!
A celeste unção é gládio
Que vence o crime, paládio
Contra a heresia infernal;
Abate as seitas erguidas
E leva as almas rendidas
À pátria celestial!
Sim! quando em berço de infante —
Ninho de crenças mimosas —
Onde o amor brota em ondas,
Onde rebentam mil rosas,
Resvala a gota sagrada
Que verte na fronte amada
A luz das constelações,
O povo abraça a esperança
E a Deus eleva a criança
Nas asas das saudações!...
Por isso da celeste estância
Num raio de caridade
À terra baixou radioso
O anjo da liberdade;
Que a fortes pulsos escuros
Unindo seus lábios puros
Partiu um grilhão atroz;
E de infelizes escravos
Fez talvez dez homens bravos,
Talvez dez outros heróis!
Oh! bendita a mão femínea
Que o empíreo entreabre ao precito,
Que ao cego aponta um caminho,
E à pátria leva o proscrito!...
Oh! bendita a mãe formosa
Que, olhando o filho ditosa,
Manda o cadáver viver!
A oração do liberto,
Subindo no vento incerto,
Faz o céu graças chover!
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
III
É noite, é noite de magia e enleio!
Buscando asilo em palpitante seio
Voa o pólen da flor!
Do ar sereno as vibrações eólias
Perfumam-se nas alvas magnólias,
Que languescem de amor!
Na sala festiva pelas janelas
Céleres rolam catadupas belas
De fulgidos clarões;
Vênus surpreende, da azulada esfera,
Um raio de langor verte severa
Por entre as cerrações.
Os perfumes sutis causam vertigens;
Transborda de fulgor o olhar das virgens,
Da madona ideal;
Como a planta a boiar sobre a corrente,
Adeja do mancebo o sonho ardente
Num colo de vestal!
E cada riso anima uma esperança!
Aos sons da tentadora contradança
Esquece-se o sofrer...
O hálito da bela o ar aroma,
E o rubor que na face nívea assoma
Traz íntimo prazer.
Dos lábios de uma loura formosura,
Enchendo o espaço de harmonia pura,
Desata-se a canção:
Para ouvir-lhe a fala maviosa, a lua
Que no páramo intérmino flutua
Penetra no salão!...
Canta, canta, formosa peregrina,
Que a tua melancólica cavatina
Acalma anseios meus!
O mundo é vário, pérfido oceano...
Quando o deixares, cisne soberano,
Gorjearás nos céus!
O turbilhão da valsa o moço arrasta,
E à tez rubente da donzela engasta
A baga de suor...
Só eu, meio à turba que doudeja,
Sou como a Esfinge que o Atbára beija
Sem vida... sem calor...
Ó noite divinal, plena de odores,
Que estendes sobre a terra um véu de flores
Abertas ao luar,
Verteste em meu sombrio pensamento
O orvalho sideral do esquecimento!
Oh! deixa-me te amar!...
À ADELAIDE LUZ
...........que distância
Não vai d’hoje àqueles dias
De nossa risonha infância!
TEÓFILO BRAGA.
Lembras-te ainda, Adelaide,
De nossa infância querida?
D’aquele tempo ditoso,
D’aquele sol tão formoso
Que dava encantos à vida?
Eu era como a florinha
Desabrochando medrosa;
Tu, alva açucena do vale,
Entreabrias em teu caule
Da aurora à luz d’ouro e rosa.
Nosso céu não tinha nuvens
Nem uma aurora fugia,
Nem uma ondina rolava,
Nem uma aragem passava
Que não desse uma alegria!
Tu me contavas teus sonhos
De pureza imaculada;
Dilúvios de poesia,
Trenos de maga harmonia...
Eras sibila inspirada!...
E a nossos seres repletos
Desse amor que não fenece,
Como sorria a existência!
Quanto voto de inocência
Levava ao céu nossa prece!
Hoje que apenas cintila
Ao longe a estrela da vida,
Venho triste recordar-te
Esse passado, abraçar-te,
Minha Adelaide querida!
AO REVM. SR. VIGÁRIO
FELIPPE JOSE CORRÊA DE MELLO
C’est un ange venu sur la terre ou nous sommes,
C’est l’homme presque Dieu consolant d’autres hommes.
Guiraud
Ente sagrado que sereno calcas
Os bravos cardos do terreno horto,
Erguendo os fracos que chorando prostram-se,
Entre a miséria a derramar conforto;
Dizei, que arcanjo te sustenta, oculto,
Do mundo falso sobre as cruéis paixões?
Quem deu-te a crença que a sorrir espalhas
Às multidões?
Quem deu-te aos olhos a celeste chama
Que alenta a vida e purifica a alma,
E o lábio ungiu-te do melífluo verbo
Que tanta ardência, tanta sede acalma?...
Símbolo do Cristo, tu entornas bálsamos
Do peito aflito sobre o chão revel;
Quanta nobreza não disfarça avaro
Negro burel!
Teu doce império se revela exímio
Onde do déspota o poder falece,
Ao céu teu ser em sacrifício sobe
Nas brancas asas da singela prece.
Banha-se o crente, a teu suave acento,
Nas ondas loiras da caudal da fé;
Caem por terra mil errôneas seitas
Ontem de pé!
O braço inerme protetor estendes
Da virgem pura à candidez sublime,
Enquanto ao seio piedoso apertas
O réu, remido do negror do crime!
Após teus passos vão seguindo as bênçãos
Do pobre enfermo que estendeu-te a mão;
Ao ímpio mesmo que blasfema, atiras
Doce perdão!
E quando exausto, para o vil patíbulo,
Caminha um homem que a justiça esmaga,
Sustendo a fronte que o terror desvaira
Ainda lhe mostras a sideral plaga:
Contrito escuta o condenado a lenda
Das longas dores que sofreu Jesus,
E quando pende-lhe a cabeça, expira
Beijando a Cruz!
Prossegue sempre nessa trilha augusta;
Para onde adeja a funeral desgraça!
Mas não te afastes dos festivos grupos,
Quebra-se em breve do prazer a taça!
Se o frio cético ao rolar no abismo
Fitar sombrios os tristes olhos teus,
Verá rasgar-se do sepulcro as sombras,
Julgar-te-á Deus!...
Tais são, ó mártir de uma ideia, as luzes
Que opões à treva tumular do mundo;
Ai! nunca invejes o bulício inglório
Das loucas turbas no labor profundo!
Embora o gênio da desdita envolva
Nosso destino em funerário véu,
Por entre os prantos te veremos sempre
Próximo ao céu!...
As violetas são os serenos pensamentos, que o mistério e a solidão despertam na alma verdejante da esplêndida primavera.
Luiz Guimarães Junior.
Esquiva aos lábios lúbricos
Da louca borboleta,
Na sombra da campina isolada, formosíssima
Vivia a violeta.
Mas uma virgem cândida
Um dia ante ela passa,
E vai colher mais longe uma faceira haste alva
Que à loira trança enlaça.
"Ai! geme a flor ignota:
Se pela cor brilhante
Que tinge a linda rosa, a tinta melancólica
Trocasse um só instante;
Como sentira, ébria
De amor, de mando enleio,
Do coração virginal as pulsações precípites,
Unida ao casto seio!"
Dardeja a criança pálida
Na relva perfumosa,
E a meiga violeta ao pé mimoso e célere
Esmaga caprichosa.
Curvando a fronte exânime
Soluça a flor singela:
"Ah! como sou feliz! Perfumo a planta eburnéa
Da minha virgem bela!..."
AO DR. CELSO DE MAGALHÃES
Les esclaves. . . . . Est-ce qu’ils ont des dieux?
Est-ce qu’ils ont des fils, eux qui n’ont point d’aïeux?
Lamartine
No canto tristonho
De pobre cativo
Que elevo furtivo,
Da lua ao clarão;
Na lágrima ardente
Que escalda-me o rosto,
De imenso desgosto
Silente expressão;
Quem pensa?—O poeta
Que os carmes sentidos
Concerta aos gemidos
De seu coração.
— Deixei menino
Meu pátrio valado,
Meu ninho embalado
Da Líbia no ardor;
Mas esta saudade
Que em túmido anseio
Lacera-me o seio
Sulcado de dor,
Quem sente?—O poeta
Que o Elísio descerra;
Que vive na terra
De místico amor!
— Roubaram-me feros
Aos férvidos braços:
Em rígidos laços
Sulquei vasto mar;
Mas este queixume
Do triste mendigo,
Sem pai, sem abrigo,
Quem quer escutar?...
— Quem quer? O poeta
Que os térreos mistérios
Aos pássaros sérios
Deseja elevar.
— Mais tarde entre as brenhas
Lutei mil searas
Com as bagas amargas
Do pranto cruel;
Das matas caíram
Cem troncos, mil galhos;
Mas esses trabalhos
Do braço novel,
Quem vê? — O poeta
Que expira em harpejos
Aos lúgubres beijos
Da fome cruel!
— Depois, o castigo
Cruento, maldito,
Caiu no proscrito
Que o simum queimou;
Coberto de chagas,
Sem lar, sem amigos,
Só tendo inimigos...
Quem há como eu sou?!...
— Quem há?... O poeta
Que a chama divina
Que o orbe ilumina
Na fronte encerrou!...
— Meu Deus! ao precito
Sem crenças na vida,
Sem pátria querida,
Só resta tombar!
Mas... quem uma prece
Na campa do escravo
Que outrora foi bravo
Triste há de rezar?!...
— Quem há de?... O poeta
Que a lousa obscura,
Com lágrima pura
Vai sempre orvalhar!?
Still visit thus my nights, for you reserved.
And mount my scaring soul to thoughts like yours.
James Thomson.
Meu anjo inspirador não tem nas faces
As tintas coralíneas da manhã;
Nem tem nos lábios as canções vivazes
Da cabocla pagã!
Não lhe pesa na fronte deslumbrante
Coroa de esplendor e maravilhas,
Nem rouba ao nevoeiro flutuante
As níveas mantilhas.
Meu anjo inspirador é frio e triste
Como o sol que enrubesce o céu polar;
Traz-lhe o semblante pálido - do antiste
O acerbo meditar!
Traz na cabeça estigma de saudades,
Tem no lânguido olhar a morbidez;
Veste a clâmide eril das tempestades,
E chama-se - Tristeza!...
Esta fingida alegria,
Esta ventura que mente,
Que será delas ao romper do dia?...
Gonçalves Dias.
A noite desce lenta e cheia de magia;
A multidão febril do templo da alegria,
Invade as vastas salas.
O mármore, o cristal, a seda e os esplendores,
Do manacá despertam os mágicos olores,
A languidez das falas.
Ao rutilar das luzes as dálias desfalece…
Roçando o pó as vestes das virgens se enegrece,
Enturva-se a brancura…
O ar vacila tépido… a música divina
Semelha o suspirar de uma harpa peregrina…
É a hora da loucura!
Pela janela aberta por onde o baile entorna
No éter transparente a vaga tíbia e morna
Do hálito ruidoso,
Da vida as amarguras espreitam convulsivas
O leve esvoaçar das frases fugitivas…
O estremecer do gozo!…
E tudo se inebria: o lampejar de um riso
Acende n’alma a luz gentil do paraíso,
Arranca a jura ardente!
E mariposa incauta, em súbita vertigem,
Arroja-se a mulher crestando o seio virgem
Na pira incandescente!
Aqui, na nitidez de um colo a coma escura
Se espraia em mil anéis, enlaça a fronte pura
Auréola de rosas;
Da valsa ao giro insano, volita pelo espaço
Do cinto estreito, aéreo, o delicado laço,
As gazes vaporosas.
Ali, na meiga sombra indiferente a tudo,
Imerso em doce cisma um colo de veludo
Ondula deslumbrante:
Que fogo oculto, ignoto, em suas fibras vaza
Vivido ardor que faz tremer-lhe a nívea asa
De garça agonizante?…
Além, meus olhos tímidos contemplam com tristeza
As penas da mulher, dessa — ave de beleza —
Calcadas sem piedade!…
Esparsas pelo solo as laceradas rendas…
As flores já sem viço… abandonadas lendas
Da louca mocidade!
A festa chega ao termo; a harmonia expira;
A luz na convulsão final langue se estira
Pelo salão deserto;
Há pouco — o doudejar da multidão festante,
Agora — o empalidecer da chama vacilante,
Ao rosicler incerto!
Depois — a razão fria contando instantes ledos
De castos devaneios, de juramentos tredos
Ouvidos sem receio…
Num corpo languescido o espírito agitado…
E a febre da vigília ao doloroso estado
Ligando vago anseio…
A vida é isto: hoje cruel grilhão de ferro;
Talvez d’ouro amanhã, mas sempre a dor, o erro,
Aniquilando o gênio!
Passado — áureo friso num mar de indiferença,
Presente — eterna farsa universal, suspensa
Do mundo no proscênio!
À BRANDINA MAlA
A emanation it is of rainbow:
— All beauty and peace...
Byron.
É bela a cecém do vale
Quando desponta mimosa,
Sobre o caule, melindrosa,
Ao rutilar do arrebol;
Quando a gota etérea e pura
Que chora o céu sobre a terra,
O lindo seio descerra
Aos frouxos raios do sol.
É bela a meiga criança
Sorrindo à luz da existência,
Com a alma — toda inocência,
E a face — todo rubor!
Os róseos lábios ungidos
Por mil acentos — suaves
Como o gorjeio das aves,
Como um suspiro de amor!...
Des’brocha o lírio, mais alvo
Que o tênue floco de neve;
A viração fresca e leve
Lhe oscula as pétalas — f’liz;
Ternos carmes lhe murmura
A namorada corrente,
Que se deriva indolente
Por sobre o flóreo tapiz.
Assim a virgem formosa
Torna-se mais sedutora,
Quando a poesia enflora
Sua beldade ideal!
Quando no brilho fulgente
Dos olhos vividos, belos,
Sua alma ardente de anelos
Mostra candor divinal!
Então, se a fita a miséria
Sente no seio a esperança;
A um seu sorriso a criança
Ligeira tenta sorrir;
Aos lábios — casto delírio
Implora a audaz borboleta;
O mesmo altivo poeta
Pede-lhe um raio de amor!
E tudo, tudo o que a cerca
De medrosos juramentos,
Vê, nos vagos pensamentos
A candidez que seduz!
E tudo, tudo o que sofre
Vê que, à imagem de Maria,
A virgem — flor de poesia —
Deus fez repleta de luz!
Que o Senhor a ti, ó virgem,
— Símbolo de amor e candura —
Poupe a taça da amargura
Que a meu lábio não poupou!
Que se desdobre nitente
A fita de tua vida,
De tantos sonhos tecida
Quantos o céu me negou!
Quanto há no mundo de ilusões fagueiras,
De perfume e de amor, guardam no peito;
Quanto há de luz no céu mostram nos olhos,
Quanto há de belo na alma.
Gonçalves Dias.
São duas rosas se expandindo rúbidas
No brando caule com suave encanto;
São duas nuvens deslisando túmidas
Do campo aéreo no azulado manto.
São duas ondas marulhosas, flácidas,
Que o tíbio sopro do favônio frisa;
São duas conchas deslumbrantes, nítidas,
Do mar na praia refulgente e lisa.
São duas auras, perfumosas, tépidas,
Beijando as pétalas de uma flor pendida;
São duas rolas resvalando tímidas
No dorso curvo do escarcéu da vida.
Duas auroras ressurgindo límpidas
Por entre as trevas que a tormenta encerra;
Graças libradas sobre o espaço, fúlgidas,
À cuja sombra se conchega a terra!
Uma — os rutilos das pupilas vívidas
Vela nos prantos de gentil ternura;
Na cor mimosa da Moema indígena
Concentra o ardor da tropical natura.
Outra, revela nos olhares lânguidos
Toda a pureza da celeste estância;
À tez formada de açucenas úmidas
Rouba o outono a festival fragrância!
Ambas — cingidas de virgínea auréola
Firmes caminham na escabrosa trilha!
Feliz daquele que sorvesse em ósculos
O afeto imenso que em seus olhos brilha.
Oh! quelle joie dans la fraicheur de cette belle nuit d'été ! Comme on sent dans le calme ici tout ce qui rend l’âme heureuse !
GOETHE.
Languesce a calma ardente:
Nos ares, levemente,
Desdobra-se tremente
Da noite a coma escura;
Do zéfiro o adejo
Envolve em longo beijo
O símbolo do pejo,
— A rosa da espessura.
A límpida marulhosa
Dolente, langorosa,
Estende-se chorosa
Num leito de luar;
Além um canto soa,
Por sobre a espuma voa
Ligeira, uma canoa
Cortando o azul do mar.
Do espaço eis a princesa:
Na gélida beleza
Que doce morbidez,
Que angústia calma e funda!
E cada flor nevada
Que dobra-se queimada
Na haste recurvada,
Com a branca luz inunda!
Planetas fulgurantes
Se velam, por instantes,
Nas rendas flutuantes
Das nuvens de algodão;
Sacode a noite o manto,
Na terra chove pranto...
Que vaporoso encanto
Embala a criação!...
O Elísio tem fulgores,
A terra orvalho, flores,
E místicos amores
Que velam descuidados;
Mas, ah! quanto lamento
Não sobe tardo, lento,
Na voz do sofrimento,
No — ai — dos desgraçados?
Ao mísero infeliz
Envia, ó Deus piedoso,
Um raio esperançoso
Que abrande a intensa dor!
Na vaga que delira,
No euro que suspira,
Na casta e santa pira
Lhe infunde teu amor!
Que impia mão te ceifou no ardor da sesta
Rosa de amor, rosa purpúrea e bela ?
Almeida Garrett.
Um dia em que perdida nas trevas da existência
Sem risos festivais, sem crenças de futuro,
Tentava do passado entrar no templo escuro,
Fitando a torva aurora de minha adolescência.
Volvi meu passo incerto à solidão do campo,
Lá onde não penetra o estrepitar do mundo;
Lá onde doira a luz o báratro profundo,
E a pálida lanterna acende o pirilampo.
E vi airosa erguer-se, por sobre a mole alfombra,
De uma roseira agreste a mais brilhante filha!
De púrpura e perfumes - a ignota maravilha,
Sentindo-se formosa, fugia à meiga sombra!
Ai, louca! Procurando o sol que abrasa tudo
Grácil se desatava à beira do caminho;
E o sol, ébrio de amor, no férvido carinho
Crestava-lhe o matiz do colo de veludo!
A flor dizia exausta à viração perdida:
"Ah! minha doce amiga abranda o ardor do raio!
Não vês? Jovem e bela eu sinto que desmaio
E em breve rolarei no solo já sem vida!
"Ao casto peito uni a abelha em mil delírios
Sedenta de esplendor, vaidosa de meu brilho;
E agora em vão invejo o viço do junquilho,
E agora em vão imploro a candidez dos lírios!
"Só me resta morrer! Ditosa a borboleta
Que agita as áureas asas e paira sobre a fonte;
Na onda perfumosa embebe a linda fronte
E goza almo frescor na balsa predileta!"
E a viração passou. E a flor abandonada
Ao sol tentou velar a face amortecida;
Mas do cálice gentil a pétala ressequida
Sobre a espiral de odores rolou no pó da estrada!
Assim da juventude se rasga o flóreo véu
E do talento a estátua no pedestal vacila;
Assim da mente esvai-se a ideia que cintila
E apenas resta ao crente — extremo asilo — o céu!
SOBRE UMA PÁGINA DE LAMARTINE
Ma l’aere imbruna, e il bronzo della sera
C’invita alla preghiera.
Il Guarany.
O rei do dia vacilante, incerto,
Abandona seu carro de vitória,
E reclinado em rúbida alcatifa
Adormece no tálamo da glória!
A cortina de nuvens cambiantes
Guarda o róseo vestígio de seus passos;
À imensidão em luz, a terra em sombra,
Prendem milhares de púrpuros laços!
Como esplêndida lâmpada de ouro
Do crepúsculo suspensa à fronte nua,
Ondula lá na fímbria do horizonte
De palor ideal cingida — a lua!
A catadupa flácida dos raios
Repousa sonolenta sobre a relva,
E o negro véu que cai sobre a campina
Mais densa torna a negridão da selva!
A natureza envolve-se nesta hora
Em faixas siderais de poesia,
Vendo sumir-se o resplendor divino,
Vendo cair da noite a lousa fria!
E murmurando a colossal estrofe
De um poema de célica linguagem,
Ao Criador que o sol formou da treva
Oferece a magnífica homenagem!
Eis o imenso holocausto do universo
Da terra a vastidão tendo por — ara!
Por dossel — a safira do infinito!
Por círio — os mundos que o Senhor aclara!
Os flocos purpurinos que vagueiam
Na planície do ar, do poente à aurora,
São colunas de incenso que embalsamam
Os pés do Deus que a natureza adora!...
Porém é mudo o gigantesco templo!
Do céu é mudo o manto peregrino!
Donde rebenta o celestial concerto?
Donde se eleva o sacrossanto hino?
No harmônico remanso só escuto
Pulsar meu coração, ora ofegante...
A voz augusta é nossa inteligência
Que no éter flutua irradiante!...
Nos rubores da tarde que agoniza,
Sobre as asas balsâmicas do vento,
Nosso ser, sobranceiro à térrea urna,
— Sutil essência — sobe ao firmamento!
E prestando uma fala a cada ente,
Trépido eflúvio a cada flor rasteira,
— Ave de amor — para a serena súplica
Com seus hinos desperta a terra inteira!
Os páramos silentes do deserto
Parecem escutar a voz do Eterno!
As multidões contritas buscam ávidas
Um só fulgor de seu olhar paterno!
E Aquele que ouve os salmos das esferas,
Que contempla perene a luz do dia,
Neste instante solene, ao som dos sinos,
Faz subir uma prece — Ave-Maria!
VICTOR HUGO
Tem visto, ó povo, esta época
Teus trabalhos sobre-humanos,
Viu-te altivo ante os tiranos
Calcar a Europa assombrada;
Criando tronos hercúleos,
Despedaçando áureos cetros,
Das coroas - vis espectros -
Mostraste o potente nada!
Em cada passo titânico
Semeavas mil ideias;
Marchavas: iam-se as peias
Que o torvo orbe prendiam;
Tuas falanges incólumes
Eram vagas do progresso:
Transbordadas de arremesso
De cimo a cimo erguiam!
Vias a deusa da glória
Cingir-te a fronte de louros;
Derramavam-se tesouros
De luz, por onde passavas!
E a Revolução flamígera
Arremessava à Alemanha
Danton; a quem, sobre a Espanha
Com Voltaire triunfavas!
Como ante os filhos da Hélade,
Curvou-se o mundo aos franceses;
Soberbo em frente aos reveses,
O crime caiu-te às plantas!
As trevas da Idade Média,
A pira do Santo Ofício,
O inferno, o erro e o vício,
Com um lampejo quebrantas!
De teus esplendores límpidos
Estava a terra juncada;
Fugia a noite assustada
Ao reboar de teus passos!
Enquanto a senda estelífera
Trilhavas, ébrio de crenças,
Da história as folhas imensas
Prendiam-te entre seus laços!
Cem vezes pairando impávido
Nos campos que o sol descerra,
Curvaste a face da terra
A um teu aceno arrogante;
Do Tejo, do Elba a vitória
Ao Nilo, ao Ad’ge corria,
E o povo titã jungia
O mesmo chefe gigante.
E os dois monumentos típicos
Dali surgiram um dia:
A coluna - ingente e fria,
O arco - poema ousado!
Ambos, ó povo, são símbolos
De teu poder infinito:
Um talhado de granito,
Outro de bronze amassado!
São dois fantasmas terríficos
Dos passados esplendores;
Doutra idade vingadores
Se os vê, a Europa estremece!
Por eles velando túmido
Nosso amor, sempre sombrio,
Nas almas acende o brio
Quando o vigor lhe falece!
Se nos ultrajam estólidos
Ei-los aí, testemunhos,
Do valor de nossos punhos,
Nos acenando à vingança:
No metal, no altivo mármore,
Tentamos dos veteranos
Ver os sábios, livres planos,
A nobre perseverança.
Na hora da queda horrenda
Mais vivo o orgulho cintila;
Aumenta a palma que oscila
O refulgir dos troféus;
As almas no fogo vívido
Acendem a sacra chama,
E o povo em luto brama
No estrugir dos escarcéus!
Outrora a falange célere
Passava em pleno lampejo;
Como um cavo, longo arpejo
Rolava o trovão nos montes!
Desses peitos magnânimos
Que resta? O trabalho ingente
Que à mocidade indolente
Mostra os negros horizontes!
As raças de hoje, mais pálidas
Que os finados de outras eras,
Dessas virtudes austeras
Nem mesmo a imagem possuem!
E se eles tremem nos túmulos,
É teu alvião que soa,
Tua bomba que reboa
Contra os portentos que aluem.
* * *
Horríveis dias são próximos,
Que sinais aterradores!
Clamam — "Bastai!" — os pensadores
Como Lear à procela!
Não pode morrer um século
Sem que um outro além desponte;
Do porvir — no germe insonte —
Quem ousa manchar a tela?
Oh, vertigem! Paris fúlgida
Nem sabe quem mais a esmaga!
Se um poder que tudo estraga,
Se outro que tudo fulmina!
Assim lá no Saara tórrido
Lutam contrárias tormentas,
Vibrando às ondas poentes
Do raio a chama divina!
Erram, ó povo, esses abismos!
O firmamento que freme,
O rijo solo que treme,
Conjuntamente censuro!
Esses poderes coléricos
Cuja sanha cresce ignara,
Um tem a lei que o ampara,
Outro o direito e o futuro!
Tem Versalhes — a paróquia,
Paris ostenta — a comuna;
Mas, além dessa coluna
Desata a França seu manto!
Quando devem verter lágrimas
É justo que se devorem,
Sem que a desdita deplorem,
Sem que vertam negro pranto?!
Fratricidas! Gemem férvidos
Canhões, morteiros, metralha;
Além o vândalo espalha
Do inferno as fúrias vis!
Aqui, campina Caríbdis,
Lá, Cila avulta arrojada!
De teu fulgor ofuscado,
Ó povo, vão-se os loureis!
Ai! nestes tempos infaustos
Em que inglórios vivemos,
Dois fortes domínios vemos
Estranhamente rivais!
Um toma o arco mármoreo,
Outro a pilastra imponente;
E o malho, e o obus fremente
Tornam-se forcas fatais!
Mas, vede: é a França exânime
Que esses colossos sustentam!
Nosso valor representam
Embora aí Bonaparte!
Sim, franceses, se frenéticos
Derrubamos essa herança,
Que restará da provança?
Onde as honras do estandarte?!
Se o senhor condena indômito,
Mais forte o povo aparece;
Nobre a Esparta resplandece
Através do despotismo!
Abatei de um golpe a árvore,
Mas respeitai a floresta:
Quando chora a pátria mesta
Mais belo fulge o heroísmo!
E tantas almas intrépidas
Nas espirais balouçadas,
Enchem naus almirantadas,
Fossos, paióis e campinas;
Franqueiam muralhas sólidas,
Longas pontes, torres altas,
Saudando o porvir que assaltas
Com mil armas peregrinas.
Em vez de César grandíloquo
Colocai, justiça, Roma;
Ver-se-á que vulto assoma
Nesse cimo sobranceiro!
Condensai nesta pirâmide
A turba infrene, compacta;
Que o direito a estátua abata
Do assombro do mundo inteiro!
E que este gigante estrênuo
O — Povo — aclarando a estrada,
Tenha na mão uma espada,
De auroras cingido o busto;
Respeito ao soldado árbitro!
A seus pés o ódio expira!
Do vingador da mentira
Nada iguala o talhe augusto!
Surge — Oitenta e Nove — atlético
Ganhando vinte batalhas!
Marselhesa, és tu que espalhas
Medo e assombro à velha idade!
Se o granito aqui ostenta-se,
O bronze avulta em rugidos,
E dos troféus reunidos
Salta um grito: — Liberdade!
* * *
Quê! Com nossas mãos alígeras
Da pátria o seio rasgamos,
E o duplo altar laceramos
Pelos teutões invejado!
Pois quê! Nos padrões egrégios
A multidão delirante
Ceva a clava flamejante,
Agita o facho abrasado!
É aos nossos golpes válidos
Que a franca glória vacila;
Seus louros virgens mutila
Nossa maça ensanguentada!
E sempre a esfinge da Prússia!
Que horror! A quem foi vendida,
Ai! pobre pátria perdida,
Tua invencível espada?...
Sim! foi por ela que inânime
De Ham o nome caíra;
Ante a Reischoffen expira
De Wagram o grito ovante!
Riscado Marengo inclito,
Waterloo apenas resta...
E sob a folha funesta
Rasga-se a lenda brilhante!
Uma bandeira teutônica
Enluta nosso horizonte;
Sedan enegrece a fronte
Que a Austerlitz deu renome!
Vergonha! A rajada freme
É Mac-Mahon que vibra;
Forbach a Iena equilibra,
E o fogo as glórias consome!
Onde os Bicêtres, ó Gália?
Os Charentons denodados?
Dormem os grandes soldados
Em teu leito de Procusto.
De Coburgo, de Brunópolis,
Onde estão os vencedores
Com seus sabres vingadores,
Correndo areais adustos?
Rasgar da história uma página
Não é um crime inaudito?
Não será negro delito
Manchar vultos que tombaram?
Sufocar a voz dos mártires
Que nunca clamaram — basta —
E sempre de fronte casta
Papas e reis cativaram?
* * *
Ai! após tantas misérias
Mais este golpe cruento!
Este delírio sedento
Que na paz mesmo abre chagas!
E tantos combates trágicos!
Com Estrasburgo queimada,
Com Paris atraiçoada,
Que valem hoje estas plagas?!
Se da Prússia o orgulho frívolo
Vendo seu negro estandarte
Vencedor por toda a parte,
Com Paris a suas plantas,
Nos clamasse: "Quero rápida
A vossa glória obumbrada:
Abaixo a pilastra ousada
Com que aos orbes espantas!
Abaixo esse arco insigne —
Emblema do império falso! —
Quero aqui — um cadafalso,
Ali — obuses em linha;
Contra um — fogo mortífero,
Canhão, bombarda, escopeta;
Contra outro — a picareta!
Cumpri: a ordem é minha."
Que vulto erguera-se esquálido
Bradando às turbas "soframos"?
Oh! nunca, à morte corramos!
Lutemos, que o insulto é novo!
Que importa mais cruas mágoas?
Que importa um revés de mais?
Curvar-nos? Jamais! Jamais!
— E vós o fizeste, ó povo!
FIM
O ITATIAIA
Pátrio ponto culminante.
O Itatiaia, ramo da serra da Mantiqueira, é realmente o ponto culminante do Brasil. Segundo o Dr. Franklin Massena mede 2.994 metros de altitude da raiz até a base das Agulhas Negras, maravilhoso feixe de pilastras de granito que coroa um de seus mais arrojados píncaros.
VINTE E CINCO DE MARÇO
As duas primeiras estrofes d’esta poesia aludem ao projeto de constituição elaborado pelos membros da constituinte em 1823, no qual todos os grandes princípios da liberdade, eram solenemente reconhecidos.
A RESENDE
... “Com nobre empenho
Penetrei no sagrado santuário”.
Refiro-me n’estes versos, á ofilcina do nosso eximio pintor, o Dr. Pedro Américo de Figueiredo e Mello. Alli passei agradavelmente algumas horas admirando os mais bellos trabalhos do philosopho-artista.
RECORDAÇÃO
À Adelaide Luz, à companheira dos folguedos infantis, à moça inteligente e estudiosa em cuja fronte fulgura a tríplice coroa da beleza, do espírito e da bondade, devia eu a minha primeira produção poética. Alterar agora a linguagem íntima e singela desses versos, seria uma profanação.