NEBULOSAS

 

POESIAS

 

DE

 

NARCISA AMÁLIA

 

NATURAL DE S. JOÃO DA BARRA

 

PROVINCIA DO RIO DE JANEIRO

 

 

 

_____

 

 

 

 

RIO DE JANEIRO

B. L. GARNIER

LIVREIRO-EDITOR DO INSTITUTO

69, Rua do Ouvidor, 69

 

 

 

 

ÍNDICE

 

Prefácio

 

PRIMEIRA PARTE

Nebulosas

Voto

Saudades

Linda

Aflita

Aspiração

Confidência

Desengano

Desalento

Agonia

Consolação

Amargura

Fragmentos

Cisma

Resignação

 

SEGUNDA PARTE

Invocação

No ermo

O Ita-tiaya

Vinte e cinco de março

Manhã de maio

A Resende

Miragem

Lembras-te?

À Lua

Sete de Setembro

A noite

Vem!

Pesadelo

 

TERCEIRA PARTE

Castro Alves

A Carlos Gomes

Visão

A festa de S. João

Recordação

O Sacerdote

Amor de violeta

O Africano e o Poeta

Sadness

O baile

Fantasia

Júlia e Augusta

Noturno

A rosa

Ave-Maria

Os dois troféus

 

Notas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PREFÁCIO

I

Jura dicturi estis.

T. L.

Dictareis a lei.

 

É uma lição digna de se imitar, embora perdida no vasto recinto da ignorância, a publicação de um livro.

 

Um dos nossos folhetinistas já liquidou a causa do marasmo literário, qualificando de indiferença esse torpor que envelhece uma nova sociedade. — Artes e LetrasReforma de 1870.

 

Denuncia essa peste o nosso primeiro escritor, J. de Alencar.

 

Somos de ontem, ainda não temos a nossa história antiga, e vivemos sob o império do desânimo.

 

Quando, em uma nação, as artes, as letras, as ciências cumprem o inglório destino da planta que nasce, vive e morre nos abismos de um subterrâneo, ou o do mendigo na festa do opulento, e representam o papel humilde de uma nave arruinada, de um campanário sumido nas heras, entre os suntuosos palácios da cidade vaidosa, essa nação tem chegado ao seu último grau de decadência. Nessa hora triunfam os analfabetos, os mercadores de escândalos, os demolidores de tudo quanto é nobre e principalmente do que constitui o orgulho de um país — a sua glória literária.

 

Profundando o coração do povo, Addisson, Balzac, La Bruyère, Larochefoucauld e outros quiseram explicar a ingratidão do público, esse equívoco soberano de todas as idades, o qual, nem Buffon, nem os modernos naturalistas e escritores políticos classificaram e definiram.

 

O público de hoje, como o de todos os tempos, sevandija a virtude e ajoelha ao vício; proscreve o crime e deifica a probidade.

 

O público! é uma torre de ventos.

 

— Vemos os bons descaídos

E os maus mui levantados,

Virtuosos desvalidos,

Os sem virtudes cabidos

Por meios falsificados.

 

— Vemos honrar lisonjeiros

E folgar com murmurar,

E caber mexeriqueiros,

Os mentirosos medrar

Desmedrar os verdadeiros.

 

Garcia de Resende.

 

Assim foi, começou com o mundo, não o podemos reformar.

 

___

 

 

II

 

O desenvolvimento intelectual da humanidade, os períodos de harmonia entre as raças e as descobertas do espírito humano, todos esses autênticos monumentos das vítimas pacíficas do talento, falam e atestam a influência da literatura sobre a forma poética e política.

 

Quer se investigue a fenomenologia da consciência, quer os atos da inteligência, quer as formas abstratas e subjetivas do pensamento nas suas periódicas revoluções do mundo ontológico, acharemos a poesia exercendo a sua legítima influência.

 

Percorrendo-se a idade de oposição, de variedade; analisando-se as épocas da formação dos caracteres escritos, da linguagem e a nova união de coisas, da moral social, da felicidade doméstica, da harmonia com as ciências, com as artes, com a religião, nós reconhecemos que a poesia tem uma ação eficaz, refletida, que preside a todo o constitutivo orgânico das épocas e do povo, noção esta que nos está ensinando a filosofia da história e o Direito Natural.

 

Confessemos: — Um livro de versos é uma lição. Ariosto, Dante, Tasso, Cervantes, Lope de Vega, Martinez, Racine, Béranger e Hugo, Optitz, Wesland, Goethe, Pope, Dryden, Shakespeare, Byron, Camões, Ferreira, Bocage, Basílio da Gama, Gregório de Mattos, Magalhães, formam o concílio ecumênico da poesia, donde vieram até nós, não os dogmas, não as contradições e ultrajes à razão, mas os aforismos que constituem o código da humanidade.

 

O livro de versos tem sido lição aos reis; a palavra de ordem dos povos civilizados, órbita ao redor da qual o mundo gira.

 

A poesia pode dizer:

 

— Eu ilumino a história!

 

— O que ela oculta, eu denuncio!

 

— Eu levanto do túmulo os heróis; vingo os mártires; puno os traidores.

 

— Eu sou a glória — o sol dos mortos!

 

Que o diga a eternidade, e que conteste

O tempo, — a terra, a humanidade inteira.

 

A minha rival, a arte, poderia dizer:

 

— Sou uma cidadã dos séculos futuros!

 

— Eu a antecedi; eu a hei de exceder.

 

— Fui o gênio de todos os cultos, de todas as seitas.

 

— Servi ao ódio, à inveja; servi mais à caridade, ao entusiasmo, ao direito, à verdade, à justiça.

 

___

 

A China

 

“O murado redil, a terra impérvia,

Retraída dos povos pelo orgulho

Do bonzo mercenário, avesso à cruz,”

 

foi o meu feudo.

 

— “Ásia! que encerras da natura os dotes

E do mundo moral a — ‘prisca origem,

Desde a plaga da luz, mãe da palmeira,

Té a noite polar, que alenta o pinho,

Soe o teu nome para glória eterna!” —

Em teu seio vivi, deixei-te opressa,

Punida no castigo de teus sonhos.

 

___

 

 

III

 

Presentemente a poesia que ideia social aduz ou combate?

 

Que lei moral ataca ou defende?

 

Vivemos, como outros povos, de uma poesia emérita?

 

Há ganhadores, assalariados, mercenários venais como esses que se alugam à política, imbecis que fingem ignorar que sempre se depende da mão que paga?

 

Não sabem que o seu apostolado é um charlatanismo criminoso, um roubo organizado que exercem contra a dignidade dos escritores honestos, dos literatos, dos homens de letras, únicos sacrificados neste país?!

 

Pregando a vilania dos sentimentos, negam aos outros o que não possuem, embora se lhes grite:

 

— O que se aluga vende-se!

 

 

IV

 

Creio nos esforços da literatura contemporânea.

 

Cada povo tem faculdades primitivas e necessidades particulares. As ideias arraigadas nos hábitos desse povo não cedem seu império senão depois de combates porfiados e lutas sanguinolentas. É por isso que, ante as conveniências da política e as necessidades da indústria, a poesia não se justifica.

 

Eu sei que a rotina, economicamente falando, tem a sua justificação; portanto, anistiemos desta batalha a Indústria e digamos por que é oposta à política.

 

Tem o seu fundamento histórico sem ter o racional, a demonstração.

 

A política tem sido e continuará a ser, em muitos casos e em muitos países, a arte e a ciência dos nulos e perversos.

 

Luís XI, apesar dos seus oficiosos biógrafos, é um cínico; Voltaire, Montaigne e Montesquieu, por orgulho político, quiseram explicar os dogmas e os segredos das instituições. Tudo confundiram. Talleyrand foi mais célebre pela hipocrisia que pelo seu gênio. Ele, outros e muitos — e nesse número alguns dos nossos pretensos estadistas que fazem praça de muito sagazes — são desdenhados. Voltaire político é um intrigante inepto; mas o poeta da solidão de Ferney era um castigo dos déspotas.

 

Rousseau é admirado unicamente naquelas obras em que o filósofo ou o político é vencido pelo poeta.

 

Entremos ou penetremos a nossa lareira.

 

Atados à galé da política, vemos Pedro Luís e Bittencourt Sampaio, náufragos, mar em fora, ludibriados pelas mesmas ondas que dali os arrancaram.

 

Como a imagem da Esperança nas lendas pagãs, José de Alencar tem um braço no céu e outro na terra.

 

Teimam e insistem, lutam e sustentam um dia artificial em plena escuridão: Joaquim Serra, Celso Magalhães, Salvador, Menezes, C. Ferreira e F. Távora.

 

Agora vem Narcisa Amália.

 

Contra estes vejo uns fabricantes de autômatos, arreados de lodo, cheios de ignorância, que nos detestam e nos perseguem.

 

Sim; eu creio nos esforços da literatura, nos resultados eficazes da poesia.

 

O lirismo, que tem sido a feição predominante da infância de todos os povos, não batizou o nosso berço de nação livre, mas nos acompanhou nos jubilosos dias da conquista da nossa autonomia nacional.

 

A poesia lírica brasileira teve entre nós bons e poucos representantes. Ocupou o primeiro lugar Gonçalves Dias, o poeta cosmopolita; é seu continuador, com muita inferioridade, Teixeira e Souza, a quem devemos muito como romancista; pouco, como poeta lírico.

 

Já levantou uma estátua a Gonçalves Dias a sua província natal; deve, a do Rio Grande, ao cantor do Colombo, e a do Rio de Janeiro, ao cantor dos Tamoios.

 

Se ainda este povo for suscetível de raciocínio, tenho fé que o José Basílio merecerá qualquer memória de pedra ou um poema de bronze.

 

O assunto do poeta no Poema é a guerra que a Espanha e Portugal tiveram de sustentar contra os índios de Missões, porque, por um tratado celebrado a 10 de janeiro de 1750 entre as duas nações, ficavam pertencendo a Portugal as terras que os jesuítas possuíam na parte oriental do Uruguai. Estes incitam os índios a resistir. Espanha e Portugal mandam suas tropas combatê-los; Gomes Freire de Andrade comanda o exército português.

 

Outros trabalhos de José Basílio, que ainda valem hoje prêmios que ele não teve, o recomendam à gratidão nacional, porque ele nos traçou a figura do jesuíta daquela e desta época, e feriu o despotismo até donde a sua imaginação lhe ofereceu armas.

 

Teixeira e Souza, já por mim quase esquecido neste momento, todo esquecido da pátria que o deixou por muito tempo mendigar, ensaiou a épica no seu poema A Independência do Brasil. Magalhães é o épico dramático, o formador ou criador da nossa literatura.

 

Não venham, amanhã, os alcaides das letras perguntar-me se Joaquim Manuel de Macedo, Alencar e outros não são literatos, não fazem literatura. Há tanta ignorância, que, nem por estar pesado e medido pelo Dr. Moreira de Azevedo o nosso período literário, tenho visto inverter-se o que os meninos já decoraram nas aulas.

 

Magalhães criou a literatura; Porto Alegre a desenvolveu, Macedo a propagou, Alencar corrigiu-os, fazendo a crítica e formando a mais completa literatura, dando os últimos toques nas grandes telas daqueles mestres e apagando os borrões.

 

Falava dos poetas líricos.

 

Mais enérgico nas imagens e muitas vezes de mais elevação, foi Casimiro de Abreu.

 

Álvares de Azevedo foi o cantor da morte; foi um gênio.

 

Bernardo Guimarães, bucólico, elegíaco, lírico, decidiu-se por uma forma, uma escola mais preferida entre todos os literatos.

 

A poesia épica tem tido poucos representantes. Conheço alguns ensaios, e boa promessa considero o Riachuelo, de S. Pereira, outro de Zeferino, e alguns fragmentos, os quais não são a Epopeia da Guerra.

 

A poesia dramática tem poucos cultivadores. O criador do teatro moderno queimou as de um anjo; Pinheiro Guimarães discute sobre eleições, e preleciona na cadeira de medicina; Varejão não é mais o Aquiles; Machado de Assis casou-se; França Júnior é um cofre; Joaquim Serra não foi mais a Roma; Sizenando Nabuco está envolto na sua túnica; Joaquim Pires não faz mais Demônios; Menezes adormeceu à sombra da mancenilha; Salvador espera outro Bobo e José Tito faz Charadas Políticas.

 

— Como as vozes do mar num canto d’Ossian

Poucas vezes os ouço — passam longe.

 

Não precisamos de imaginações sonhadoras e místicas como os poetas do Oriente para enriquecer o teatro; há assuntos na nossa história para os dramas marítimos, militares, políticos.

 

Por que é que a Idade Média tem um caráter de originalidade cuja lembrança exalta ainda hoje, depois de tantos séculos, a imaginação dos romancistas e dos poetas? É porque os trovadores vulgarizaram a história dos amores, das vitórias políticas, dos combates guerreiros, os sentimentos de patriotismo.

 

Eu ainda ignoro para que fim destina o Sr. ministro o seu Conservatório.

 

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Erige-te!

 

Narcisa Amália será a impulsora e o ornamento de uma época literária mais auspiciosa que a presente. Há de redigir os aforismos poéticos, como Aristóteles escreveu os da natureza.

 

Na história da nossa literatura, o seu entusiasmo moral, que é um culto do seu talento, terá uma consagração nos Anais do futuro desta legião de inteligências que está celebrando as glórias do presente.

 

Não a conheço, mas eu imagino que em seu rosto a tristeza ocupa o lugar da alegria.

 

— “A funda melancolia

Não seguiu-a desde a infância,

Deus não fê-la triste assim...

Houve na sorte inconstância,

E se perdeu a alegria,

É de homens obra ruim.”

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

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A extremosa pureza dos seus pensamentos, o pudor da sua imaginação, bem inculcam que os seus pais lhe anteciparam um tesouro no abençoado curso da sua educação, no santo respeito da família e amor da pátria.

 

Eu penso que o eco das suas palavras é um concerto de pesares. Ela aborrece a canalha subalterna das letras, porque há uma canalha ilustre que é mais fidalga que a nobreza de decreto; essa, ela estima e aplaude.

 

Narcisa Amália não é um tipo; é uma heroína.

 

Senio acaba de pedir que não elogiem os seus livros de prosa.

 

Eu peço que julguem o livro de N. Amália, livro que ilumina a grande noite da poesia brasileira.

 

Quando houver um Conselho de Estado ou um Senado Literário, Narcisa Amália terá as honras de Princesa das letras.

 

Este livro há de produzir tristezas e alegrias. É a primeira brasileira dos nossos dias; a mais ilustrada que nós conhecemos; é a primeira poetisa desta nação.

 

Delfina da Cunha, Floresta Brasileira, Ermelinda da Cunha Mattos, Maria de Carvalho, Beatriz Brandão, Maria Silvana, Violante, são bonitos talentos. Narcisa Amália é um talento feio, horrível, cruel, porque mata àqueles. Foram as suas antecessoras auroras efêmeras; ela é um astro com órbita determinada.

 

Eu não critico nem analiso o livro, porque vejo, todos os dias, passar o lirismo, o amor, a fantasia, a heroicidade, a glória literária e artística, como os vultos fatais nas tragédias antigas; vejo sempre, em prolongado silêncio, abafados, como aqueles comprimidos gemidos do Tiradentes, quando tomou posse do seu Pedestal.

 

 

 

V

 

Posteris tradant.

 

Cantaste a Família, a Pátria e a Humanidade.

 

A família — pilar da pátria, a pátria — cruz dos tolos, a humanidade — loucura de Deus.

 

A escolha de um assunto, a do ponto de vista, em que tanto se distinguem Bossuet e Monseigneur Alverne, na eloquência sagrada; a escolha do momento e da extensão, que no romancista é mais desenvolvida que no historiador, vós a conheceis e praticais como nos prescrevem as regras.

 

A escolha das circunstâncias e dos contrastes, da topografia e seus acidentes, — vejo fundidas como relevo dum escudo na descrição do —, onde vos admiro igual a Virgílio, quando ele descreve o repouso no meio da noite para fazer contraste com a agitação da rainha de Cartago.

 

Um acadêmico de São Paulo, — João Cardozo de Menezes, hoje condestável da política, — já esteve muito perto da vossa imaginação quando descreveu a serra do Paranapiacaba.

 

ITA-TIAYA

 

Ante o gigante brasileiro,

Ante a sublime grandeza

Da tropical natureza,

Das erguidas cordilheiras,

Ai, quanto me sinto tímida!

Quanto me abala o desejo

De descrever num harpejo

Essas cristas sobranceiras!

 

Vejo aquém os vales pávidos

Que se desdobram relvosos;

Profundos, vertiginosos,

Cavam-se abismos medonhos!

Quanto precipício indômito,

Quanto mistério assombroso,

Nesse seio pedregoso,

Nessa origem de mil sonhos!

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

Ondulam ao longe murmúrios

Aos pés de esguios palmares,

As florestas seculares

Cingidas pela espessura;

A liana forma dédalos

Na grimpa das caneleiras,

Do cedro as vastas cimeiras

Formam dóceis de verdura.

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

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As diferentes espécies de descrição poética enchem o seu livro em vários empregos.

 

A topografia, em que Buffon foi um dos mais completos prosadores, tem em Narcisa Amália a melhor intérprete, na poesia.

 

A hipotipose impera nesta estrofe:

 

— “Salve! Montanha granítica!

Salve! Brasileiro Himalaia!

Salve! Ingente Ita-Tiaya,

Que escalas a imensidade!

Distingo-te a fronte válida,

Vejo-te às plantas, rendido,

O meteoro incendido,

A soberba tempestade!”

 

Nestes e em todos os seus versos, as figuras de palavras andam a granel, em contínuo atropelo com as do pensamento.

 

A acumulação, figura que desenvolve e torna mais clara e mais sensível a ideia principal; as hipérboles, que levam, às vezes, o espírito a extravagâncias, de que se ressentem Milton, Klopstock, Ossian — o rei da apóstrofe — e muitos dos nossos poetas, ocupam, em tempo apropriado, o seu lugar.

 

Exemplos de antíteses e epifonemas vai a sutil inteligência do leitor colhendo à medida que termina um hino, ou idílio.

 

Ela decora os seus pensamentos, como um carola enfeita um altar do santo de sua devoção.

 

As figuras de ornamento, as aposiopeses, as gradações, as alusões, e as figuras de movimento e paixão se apostam e se disputam, em rivais competências, para exigir da crítica a confissão de que elas oferecem batalha.

 

Nesta poesia há uma admirável exuberância de tropos, e a optação — raríssima figura em nossos livros de maior nome — tem ali a sua majestade.

 

Os pleonasmos e as silepses andam em todo o livro tão obedientes, como o porta-ordens dum Estado-Maior.

 

Este volume de poesias é um Templo; — quem o penetrar há de ver — dentro — um altar construído de lágrimas!!

 

A poesia 25 de Março é um anátema, é uma ameaça. Não conheço muitas que estejam naquela altura.

 

Resende, — é a monografia daquele sempre lutuoso edifício que se levanta no exílio, — a saudade.

 

Releve-me a distinta literata não ir cotejando aqui uma por uma as suas poesias.

 

Eu as comparo aos hinos da alvorada; um tem a afinação dos outros, o mesmo encanto, a mesma sedução; nos inebriam e nos elevam a querer compreender o sublime, tudo quanto ao céu se ergue.

 

Começou a poesia lírica com o homem.

 

É tão velha como a humanidade; entretanto, é sempre nova!

 

Primeiro cantou Deus; depois o herói, os reis, santos.

 

Os hinos, as odes sacras, os cânticos, os Salmos, o Magnificat da Santa Virgem, esse grito do crente no meio do terror, o Cantemus Domino, o Benedictus do Profeta, o cântico dos Anjos, o Te Deum, essa inspiração de Santo Ambrósio, são os brasões da poesia lírica, e nenhuma outra goza dessas prerrogativas.

 

Os Dois Troféus, que é um poema, tomou a forma de uma ode heroica, gênero mais difícil na composição lírica.

 

Se há um governo capaz de compreender as alusões e ironias da poetisa; se há, então as passadas injustiças serão vingadas, aquele patrimônio de brios conculcados será resgatado.

 

Como exemplo de ode heroica eu só conheço capaz de se aproximar a essa de Narcisa Amália, não na elevação de pensamentos, mas na rigorosa obediência ao gênero, aquela ode de Lebrun, cantando a ruína de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755.

 

Quando neste país a República Política galardoar os beneméritos da República Literária, Narcisa Amália exercerá a sua ditadura.

 

Tem ela cantado o amor da virtude, da glória, e da pátria.

 

Não é descrente por moda, como foram os imitadores de Musset; não é cética como os de Goethe, é republicana como Schiller, como Félix da Cunha, e Landulpho: é intransigente como a fatalidade.

 

Gonçalves Crespo e Campos Carvalho, acadêmicos brasileiros em Coimbra, ao receberem este livro hão de se possuir de entusiasmo.

 

Coimbra!... a mágica cidade

Dos infortúnios de Inês,

 

Podia ser o trono do talento de Narcisa Amália, porque ela compreende por que angústias passou aquela mártir e pode fazer os comentários da desgraça do príncipe e da rainha depois de morta.

 

Deve a autora das Nebulosas escrever um Poema Didático, e, se vierem açoita-la os ventos da inveja e os mil desdéns da ignorância atrevida, deve escrever — um Poema Épico. É a tendência de sua índole literária.

 

Estreou-se emancipada da poesia-piegas, do verso-capadócio, da literatura-artesã, que ali vivem estucando e destilando biliosas sujidades e obscenas audácias.

 

Há de vir a época em que o sentimento de patriotismo reivindicará os nomes desses talentos extraordinários.

 

Seu estilo vigoroso, fluente, acadêmico; a riqueza das rimas, tão eufônicas, tão reclamadas e necessárias ao verso lírico, suas convicções falando à alma e à imaginação, justificam a sua já precoce celebridade, confirmam a sua surpreendente e rápida aparição, precedida do respeitoso coro da crítica sincera e grave.

 

Há uma nota dominante em seu espírito que põe em aflitivo conchego a dor sem consolo no lar da tristeza. Quando a sua grande alma quer-se divorciar do seu grande coração — ambos se petrificam.

 

Não sabe fingir, nem falsificar.

 

Em seus versos se conhece que ela é indiferente aos nossos capitais, às nossas fortunas e riquezas, e lhe causa tédio tudo quanto a rodeia.

 

A fé — que aplanou os abismos; crença que aplanou as montanhas, vivem em seu espírito. Fé nas conquistas do talento; crença em seus esforços para encaminhar a sua timidez até a hora de a transformar num poder.

 

Tem o seu livro imagens novas, figuras pomposas que pedem nova retórica e que se invente nova Poética.

 

Do estudo rápido que fiz notei que não quis aprender a dourar a trivialidade com grandes palavras e banalidades grandes, o que tem valido a muita gente uma falsa reputação de sábia.

 

Em sua prosa poética, em alguns artigos que li no Eho Americano, na Revista Artes, de Lisboa, se mostra que a sua inteligência não está ao serviço da frivolidade.

 

Se ela governasse, nem os papas, nem os reis teriam horas certas para o descanso.

 

Há em todas as suas composições poéticas um ponto de fixidez imaginativa que anda ao par da vivacidade de emoções, e a expressão do sentimento é sempre forte e concisa.

 

A sua individualidade literária acusa um caráter leal e capaz de todos os sacrifícios pelas grandes causas.

 

Sabe ajustar o estilo ao assunto; é elegante nas descrições mais breves; tem graça e doçura a sua linguagem quando descreve a vaidade das outras mulheres. O baile é um modelo de sátira, de sarcasmo, de ironia discreta.

 

Os literatos brasileiros dirão o que eu não sei narrar, nem conhecer para expor.

 

 

VI

 

Teófilo Braga, Luciano Cordeiro, César Machado, Adolfo Coelho, Bulhão Pato, Gomes Leal, E. Coelho, Silva Túlio, A. de Castilho, Silva Bento e Teixeira de Vasconcelos, meus amigos, hão de deferir o seguinte requerimento:

 

“Peço um lugar de honra no auditório das vossas glórias literárias para a autora das Nebulosas.”

 

Por uma vicissitude já vivemos como o povo hebreu; encerrado nos limites da obediência, confiscado, regendo-nos com as leis do vizinho senhor. Reunimo-nos do cativeiro. Queremos, hoje, celebrar as festas da inteligência em todos os altares onde a glória arquitetou-os. A isso se propõe este livro — que não envereda pela abóbada oca dos clássicos.

 

Pessanha Póvoa.

 

 

 

 

PRIMEIRA PARTE

 

 

 

NEBULOSAS

 

On donne le nom de Nébuleuses à des taches blanchâtres que l'on voit çà et là, dans toutes les parties du ciel.

Delaunav

No seio magestoso do infinito,

— Alvos cysnes do mar da immensidade, —

Fluctuam tenues sombras fugitivas

Que a multidão suppõe densas caligens,

E a sciencia reduz a grupos validos;

Vêjo-as surgir á noite, entre os planetas,

Como vizões gentis á flux dos sonhos;

E as espheras que curvam-se trementes

Sobre ellas desfolhando flores d’oiro,

Koubam-me instantes ao soíTrer recondito 1

 

Costumei-me a sondar-lhes os mysterios

Desde que um dia a flamula da idéa

Livre, ao sopro do genio, abriu-me o templo

Em que fulgura a inspiração em ondas;

A seguir-lhes no espaço as longas clamydes

Orladas de incendidos meteoros ;

E quando da procella o tredo archanjo

Desdobra n’amplidão as negras azas,

Meu ser pelo theisn o desvairado

Da loucura debruça-se no pélago !

 

Sim! São elas a mais gentil feitura

Que das mãos do Senhor há resvalado!

Sim! De seus seios na doirada urna,

A piedosa lágrima dos anjos,

Ligeira se converte em astro esplendido!

No momento em que o mártir do Calvário

A cabeça pendeu no infame lenho,

A voz do Criador, em santo arrojo,

No macio frouxel de seus fulgores

Ao céu arrebatou-lhe o calmo espírito!

 

Mesmo o sol que nas orlas do Oriente

Livre campeia e sobre nós desata

A chuva de mil raios luminosos,

Nos lírios siderais de seu regaço

Repousa a fronte e despe a rubra túnica!

No constante volver dos vagos eixos,

Os orbes em parábolas se encurvam

Bebendo alento no seu manso brilho!

E o tapete movediço do universo

Mais belo ondeia com seus prantos fúlgidos!

 

E quantos infelizes não olvidam

O hóscopo fatal de horrenda sorte,

Se no correr das auras vespertinas

Seus seres vão pousar-lhes sobre a coma,

Que as madeixas enastram do crepúsculo!

Quanta rosa de amor não abre o cálice

Ao bafejo inefável das quimeras

No coração temente da donzela,

Que, da lua ao clarão dourado as cisnas,

Lhes segue os rastros na cerúlea abóbada!...

 

Um dia no meu peito o desalento

Cravou sangrenta garra; trevas densas

Nublaram-me o horizonte, onde brilhava

A matutina estrela do futuro.

Da descrença senti os frios ósculos;

Mas no horror do abandono, alçando os olhos

Com tímida oração ao céu piedoso,

Eu vi que elas, do chão do firmamento,

Brotavam em lucíferos corimbos,

Enlaçando-me o busto em raios mórbidos!

 

Oh! Amei-as então! Sobre a corrente

De seus brandos, noctívagos lampejos,

Audaz liberei-me nas azuis esferas;

Inclinei-me, de chamas circundada,

Sobre o abismo do mundo tórvio e lúgubre!

Ergui-me ainda mais: da poesia

Desvendei as lagunas encantadas,

E prelibei delícias indizíveis

Do sentimento nas cadeias sagradas,

Ao clarão divinal do sol da glória!

 

Quando desci mais tarde, deslumbrada

De tanta luz e inspiração, ao vale

Que pelo espaço abandonei sorrindo,

E senti calcinar-me as débeis plantas

Do deserto, as areias ardentíssimas;

Ao fugir dos sinais que estende a noite

Sobre o leito da terra adormecida,

Fitei chorando a aurora que surgia!

E — ave de amor — a solidão dos ermos

Povoei de gorjeios melancólicos!...

 

Assim nasceram os meus tristes versos,

Que do mundo falaz fogem às pompas!

Não dormem eles sob os áureos tetos

Das terrenas potestades, que falecem

De morbidez nos fláccidos triclínios!

Cortando as brumas gélidas do inverno,

Adejam nas estâncias consteladas

Onde elas pairam; e à luz da liberdade,

Devassando os mistérios do infinito,

Vão no sólio de Deus rolar exânimes!...

 

 

VOTO

À MINHA MÃE

 

Ide ao menos de amor meus pobres cantos

No dia festival em que ela chora,

Com ela suspirar nos doces prantos!

Álvares de Azevedo.

 

A viração que brinca docemente

No leque das palmeiras,

Traga à tua alma inspirações sagradas,

Delícias feiticeiras.

 

A flor grácil que expande-se contente

Na gleba matizada,

Inveje-te a tranquila e leda vida,

Dos filhos sempre amada.

 

Só teus olhos roreje doce pranto

De mística ternura;

Como sílfides de luz cerquem-te gozos,

Enlace-te a ventura!

 

Os filhos todos, submissos, junquem

De rosas tua estrada;

E curvem-se os espinhos sob os passos

Da mãe idolatrada!

 

Tais são as orações que aos céus envia

A tua pobre filha;

E Deus acolhe o incenso, embora emane

Da branca maravilha!

 

 

SAUDADES

Meus funerários gemidos

Vão legando à imensidade

Um vasto arcano — a tristeza.

Um canto eterno — a saudade!...

Carlos Ferreira.

 

Tenho saudades dos formosos lares

Onde passei minha feliz infância;

Dos vales de dulcíssima fragrância;

Da fresca sombra dos gentis palmares.

 

Minha plaga querida! Inda me lembro

Quando através das névoas do ocidente

O sol nos acenava adeus languente

Nas balsâmicas tardes de Setembro;

 

Lançava-me correndo na avenida

Que a laranjeira enchia de perfumes!

Como escutava trêmula os queixumes

Das auras na lagoa adormecida!

 

Eu era de meu pai, pobre poeta,

O astro que o porvir lhe iluminava;

De minha mãe, que louca me adorava,

Era na vida a rosa predileta!...

 

Mas...

... tudo se acabou. A trilha olente

Não mais percorrerei desses caminhos...

Não mais verei os míseros anjinhos

Que aqueciam na minha a mão algente!

 

Correi, ó minhas lágrimas sentidas,

Do passado no rútilo sudário;

Bem longe está o cimo do Calvário

E já as plantas sinto tão feridas!...

 

Ai ! que seria do mortal aflito

Que tomba exangue à provação cruenta,

Se no marco da estrada poeirenta

Não divisasse os gozos do Infinito ?!...

 

Abrem-me n’alma as dores da saudade

Um sulco de profundas agonias...

Morreram-me pra sempre as alegrias...

Só me resta um consolo... a eternidade!

 

 

LINDA

 

Her beauty raineth own flamelets of fire,

Animate with a noble, gracious spirit,

Which is creator of each virtous thought.

Mary Rosetti.

 

Vem, tímida criança,

Rosada, loura e mansa

Qual chama matutina

De tíbio resplendor;

Vem, quero a tez rubente

Da face transparente,

E a boca peregrina,

Beijar-te com fervor!

 

Teus mádidos cabelos,

Undosos, finos, belos,

Em áurea e doce teia

Enlaçam-me o olhar;

Da primavera os lumes

Em lúcidos cardumes,

No anel que solto ondeia

Vão ternos cintilar!

 

Teu colo alvinitente

Se encurva levemente,

Qual pende na ribeira

O lótus de cetim;

 

Se a lua além se inflama

De vaga e breve flama,

Resvalas mais ligeira

Na relva do jardim!

Escuta: à beira-d’água

A flor vinga entre a frágua,

E a tela delicada

Se tinge à luz do sol;

 

O mágico perfume

Que o cálice resume,

A pétala nacarada,

Inveja-lhe o arrebol.

Mas vem da treda enchente

A férvida torrente

Em turbilhão raivoso

Ao longe a rouquejar,

 

E a rubra flor da margem —

Pendida na voragem,

No pego tenebroso

Fanada vai rolar!

Ai! zela a rosa pura

De tua formosura

Que o lábio mercenário

Do mundo, não manchou;

 

Sê como a sensitiva

Que se retrai esquiva

Se o vento louco e vário

As folhas lhe osculou.

Porém, essa beleza

Que deu-te a natureza,

Desmaiará um dia

Aos gelos hibernais;

 

E uma vez perdida

Nos vendavais da vida,

À flux da fantasia

Não surgirá jamais!

Oh! zela mais ainda

A flor celeste e linda

De tua alma de virgem,

— Teu primitivo amor!

 

Da divinal bondade

A meiga potestade,

Se acolhe da vertigem

Nas mãos do Criador!

Atende: a mão mimosa

Dirige pressurosa

Ao pobre, agonizante,

À sombra do hospital!

 

Ao mesto encarcerado

Do olhar do sol privado,

Abranda um só instante,

O agror da lei fatal!

Prosegue, etérea lira,

Nas cordas de safira

As harmonias cérulas

Dos risos infantis!

 

E ao desgraçado em prantos

Dá mil colares santos,

Não de mundanas pérolas,

De lágrimas gentis!...

 

 

AFLITA

 

A J.

 

Per lui solo affido sull ali dei venti

Il suon lusinghiero dei garruli accenti!

Deh riedi, deh riedi!... mi stringe al tuo cor’

E giorni beati — vivremo d'amor!

Il Guarany.

 

Desde a hora fatal em que partiste,

Turbou-se para mim o azul do céu!

Velei-me na mantilha da tristeza,

Como Safo na espuma do escarcéu!

 

Até então o arcanjo da procela

Não enlutar o lago das quimeras,

Onde minh’alma, garça languorosa,

Brincava à luz de etéreas primaveras.

 

Mas um dia, atraindo ao vasto peito

Minha pálida fronte de criança,

Murmuraste, tremendo: — “Parto em breve;

Mas não te aflijas, volta, rei, descansa!”

 

Ai! Que epopeia túrgida de lágrimas

Na comoção daquela despedida!

Eu soluçava envolta em véu de prantos:

“Quando voltares, já serei sem vida!”

 

Desde então, comprimindo ásperas angústias,

Vou te esperar à beira do caminho;

Voltam cantando ao sol as andorinhas,

Só tu não volves ao deserto ninho!...

 

Quando a tribo inquieta das falenas

Liba filtros nas delícias da campina,

Busco da redenção o augusto símbolo,

E faleço de amor como Corina!

 

Pois bem! Se enfim voltares desse exílio,

Ave errante, fugindo à quadra hiberna,

Vem à sombra do vale: sob os ciprestes

Comigo fruirás ventura eterna!

 

 

ASPIRAÇÃO

 

A UMA MENINA

 

Folga e ri no começo da existência

Borboleta gentil!

Gonçalves Dias

 

Os lampejos azuis de teus olhos

Fazem n’alma brotar a esperança;

Dão venturas, ó meiga criança,

— Flor celeste no mundo entre abrolhos! —

 

Ora pendes a fronte na cisma,

Fatigada dos jogos, contente,

E mil sonhos, formosa inocente,

Fantasias às cores do prisma;

 

Ora voas ligeira entre clícias

Sacudindo fulgores, anjinho;

E o favonio te envia um carinho,

E as estrelas te ofertam blandícias!...

 

Mas se pende dos fulgidos cílios

Alva per’la que a face te rora,

De teus lábios, na falia sonora,

Chovem, rolam sublimes idílios!

 

De tua boca na rubra granada

Caiam santos mil beijos felizes!

Tuas asas de lindos matizes,

Ah! não rasgues do vício na estrada

 

 

CONFIDÊNCIA

 

A JOANA DE AZEVEDO

 

De mais a mais se apertam nossos laços,

A ausência... oh! que me importa, estás presente

Em toda a parte onde dirijo os passos.

Fagundes Varela

 

Pensas tu, feiticeira, que te esqueço;

Que olvido nossa infância tão florida;

Que às tuas meigas frases nego apreço...

 

Esquecer-me de ti, minha querida!?...

Posso acaso esquecer a luz divina

Que rebrilha nas trevas desta vida?

 

Era esquecer a lúcida neblina,

Que nas gélidas orlas de seu manto,

Extingue a febre que meu ser calcina.

 

Esquecer o orvalho puro e santo,

Que à campânula curva à calma ardente,

Dá mais viço e fulgor, dá mais encanto.

 

Esquecer o cristal liso ou tremente

Que me retrata a fronte pensativa!

Esquecer-me de ti, anjo temente...

 

Ouço-te a voz na langue patativa

Que em trinos desfalece ao vir do inverno —

Contemplo-te na mimosa sensitiva.

 

Sem ti não tem o sol um raio terno;

Contigo o mundo todo — é paraíso,

E a taça do viver tem mel eterno!

 

Oh! envia-me ao menos um sorriso!

Dá-me um sonho dos teus doirado e belo,

Que bem negro o porvir além diviso!

Que a existência sem ti, é um pesadelo!...

 

 

DESENGANO

 

Antes de espirar el día

Vi morir a mi esperanza.

ZARATÉ.

 

Quando resvala a tarde na alfombra do poente

E o manto do crepúsculo se estende molemente;

Na hora dos mistérios, dos gozos divinais,

Despedaçam-me o peito martírios infernais;

E sinto que, seguindo uma ilusão perdida,

Me arqueja, treme e expira a lâmpada da vida!

 

Feriu-me os olhos tímidos o brilho da esperança;

A luz do amor crestou-me o riso de criança;

E quando procurei — sedenta — uma ventura,

Aberta vi a fauce voraz da sepultura!...

Dilacerou-me o seio, matou-me a crença bela,

O tufão mirrador de hórrida procela!

 

Então pálida e triste, alcei a fronte altiva

Onde se estampa a dor tenaz que me cativa;

Sorvi na taça amarga o fel do sofrimento,

E a voz queixosa ergui num último lamento:

Era o cantar do cisne, o brado da agonia...

E a multidão passou soberba, muda, fria!

 

Desprezo as pompas loucas, desprezo os esplendores,

Trilhar quero um caminho orlado só de dores;

E além, nas solidões, à sombra dos palmares,

Ao derivar da linfa por entre os nenúfares,

Quero ver palpitar, como em meu crânio a ideia,

O inseto friorento na lânguida ninfeia!

 

E quando o ardor latente que cresta minha fronte

Ceder à neve algente que touca o negro monte;

Quando a etérea asa da brisa fugitiva

Trouxer-me os castos trenos da terna patativa,

Elevarei meus carmes ao Ser que criou tudo,

E dormirei sorrindo num leito ignoto e mudo.#

 

 

DESALENTO

 

Presago el corazón late en mi pecho!

Martínez de la Roza.

 

Adeus, lendas de amor, doirados sonhos

Do meu cérebro enfermo;

Adeus, da fantasia, ó lindas flores,

Rebentadas no ermo.

 

Um dia, da quimera no regaço,

Adormeci sorrindo;

E os astros, lá do empíreo debruçados,

Verteram brilho infindo...

 

Como a flux da onda egeia um divo canto

De Homero, o bardo cego,

Resvalei da paixão nas vagas fúlgidas,

De esplendores num pego!...

 

Mas depois... densa nuvem desenhou-se

Na safira do céu,

E a ledice infantil fugiu tremendo

Ao futuro escarcéu!

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

 

Por que deixas, ó Deus, que o gelo queime

Minha alma, planta fria?!...

Cedo descansarei (que importa?) os membros

Na penumbra sombria,

 

Onde a roxa saudade funerária

Enlaça-se ao cipreste;

Onde a lua, chorosa peregrina,

Derrama a luz celeste!

 

A vós, lendas de amor, sombras queridas

Dos devaneios meus;

A vós que me embalastes a adolescência,

Meu pranto e eterno adeus!...

 

 

AGONIA

 

Je meurs, et sur ma tombe, où lentement j’arrive,

Nul ne viendra verser des pleurs.

Gilbert.

 

Como vergam as lindas açucenas

As pétalas alvejantes,

Quando voam do Sul as brumas frias;

Quando rola o trovão nas serranias

E os raios coruscantes;

 

Como a rola das selvas, trespassada

De mortífera seta

Despedida por bárbaro selvagem,

Que a débil fronte inclina e cai à margem

Da lagoa dileta;

 

Como a estrela gentil de um céu risonho,

Luzindo aos pés de Deus,

Que pouco a pouco triste empalidece,

E cada vez mais pálida falece

Envolta em negros véus;

 

Como a gota de mel que entorna a aurora

Na trêmula folhagem,

E brilha, e fulge ao prisma de mil cores;

Que depois desaparece aos esplendores

Da dourada voragem;

 

Assim foram-se as rosas de meu peito

Sem os rócios de outono...

Vejo apenas a palma do martírio

Convidando-me a ir, com a luz do círio,

Dormir o eterno sono.

 

 

CONSOLAÇÃO

PARÓDIA À POESIA PRECEDENTE, PELO SR. J. EZEQUIEL FREIRE

 

Se também vingam lindas açucenas,

Mimosas, alvejantes,

Nas dobras dos valados — ermas, frias,

Dardeje embora o sol nas serranias

Seus raios coruscantes;

 

Se também a rolinha trespassada

De ervada, negra seta,

Acha às vezes um bálsamo selvagem,

E vai gemer ainda à fresca margem

Da lagoa dileta;

 

Porque descrês de teu porvir risonho,

Poetisa de Deus?!...

Se o fanal do viver empalidece,

Se às vezes, sem alento, ele falece

Envolto em negros véus;

 

Bem cedo raia do prazer a aurora

E a trêmula folhagem

Das flores do viver, rebrilha em cores;

E ostenta mil dourados resplendores

Sem medo da voragem!

 

Avante! Quando as rosas de teu peito

Fenecerem no outono,

Será-te-á um selo — a palma do martírio!

E o sol da glória — o prefulgente círio

Que velará teu sono!...

 

 

AMARGURA

 

Senti o golpe no coração, e como a copaíba ferida no âmago, distilo lágrimas em fios!

J. DE Alencar

 

Ao desmaiar do sol, além, nas cordilheiras,

Ao badalar dos sinos dobrando — Ave Maria!

Ai! desprende um gemido, acorde doloroso,

Minha alma na agonia!

 

Que importa o ledo riso de um tempo já volvido?

Que importa o beijo frio da cerração do sul?...

O sofrimento extingue anelos de ventura,

— Flor virgem num pântano! —

 

Já tive, como todos, meus enlevados sonhos,

Senti tingir-me a face a púrpura do enleio;

E o coração pulsou-me um dia entre delícias

Fazendo arfar o seio.

 

E a flor, vendo-me a furto, fulgia mais contente!

E as lâmpadas do céu brilhavam mais gentis!

E os cânticos das aves mais ternos se elevavam

Nas viragens sutis!

 

E a lua me enviava um raio de tristeza;

A luz, beijo de fogo — ardente, fulgurante!

A nuvem vaporosa, ao perpassar no espaço,

Olhava-me um instante!

 

Ai! cedo esvaeceu-se a frívola miragem,

E fugitiva, rápida, desfez-se essa ilusão;

Apenas hoje sangra e estua-me sem vida,

O gélido coração.

 

Não mais se expandem lírios, nem luzem mais estrelas,

Emudeceram lentos os mágicos cantores;

Não mais me envolve a luz entre amorosos laços

E límpidos fulgores.

 

Porque não sou a rola que deixa além o ninho,

E estende as leves asas, e voa na amplidão?

Porque não chego ao menos a fronte à imensidade

Por sobre a criação?!...

 

Porque não sou o íris que arqueia-se no éter?

Porque não sou a nuvem dos pântanos siderais?

Porque não sou a onda azul que além desmaia

A revelar mistérios?...

 

O mundo que me vê passar sem um sorriso,

Não vê do meu tormento o horrendo vendaval!

Ele que acolhe e afaga o venturoso, entrega

O triste à lei fatal!

 

Só resta hoje à minha alma os campos do infinito;

Aquece-se a tristinha ao sol da eternidade;

E se à lembrança traz as lendas que se foram,

São laivos de piedade!

 

Meu Deus! porque embalar-me o quêdo pensamento

Se amor é passageiro, se as glórias são de pó?!

Poetisa — tomo a lira às lufas da descrença,

E a ti me volto só.

 

Bondoso, abre-me os braços, reúne-me aos teus anjos,

A eterna ventura almejo palpitante;

Contemplarei o — nada — do seio das estrelas,

Das dores triunfante!

 

 

FRAGMENTOS

 

Minh’alma é como a rôla gemedora

Que delira, palpita, arqueja e chora

Na folhagem sombria da mangueira;

Como um cisne gentil de argênteas plumas,

Que falece de amor sobre as espumas,

A soluçar a queixa derradeira!

 

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

 

Meu coração é o lótus do Oriente,

Que desmaia aos langores do Ocidente

Implorando do orvalho as lácteas pérolas;

E na penumbra pálida se inclina,

E murmura rolando na campina,

“Ó brisa, me transporta às plagas de orvalho!”

 

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

 

Ai! Quero nos jardins da adolescência

Esquecer-me das urzes da existência,

Nectarizar o fel de acerbas dores;

Depois... remontarei ao paraíso,

Nos lábios tendo os lírios do sorriso,

Sobre as asas de místicos amores!

 

 

CISMA

 

Zéfiro pleno da estival fragrância,

Sinto á teus beijos ressurgir-me n’alma

O drama inteiro da rosada infância !

Fagundes Varela.

 

Ó aura merencória do crepúsculo,

Mais terna que o carpir de Siloé;

És tu que embalas minha funda angústia,

És tu que acendes no meu peito a fé.

 

És tu que trazes-me a virgínia endecha

Que os anjos gemem na celeste estância;

O sussurro dos plátanos do Líbano,

O frescor dos rosais de minha infância!

 

Estranha languidez gela-me o seio;

Abre-se além a campa glacial;

Minha fronte que ao chão lívida pende,

Levanta com teu beijo divinal!

 

Eu tenho n’alma uma saudade infinda,

Mais profunda que o abismo dos espaços;

— Choro meu berço que deixei criança;

— Choro o sol que aclarou meus débeis passos.

 

Recorda-me as dolentes melodias

Que na lagoa canta o pescador;

E as tristonhas cantigas dos escravos

Quando o céu se desata em luz de amor!

 

E os campos de esmeraldas que se enlaçam

À opala radiante do infinito...

E a pluma extensa dos bambus da mata,

Onde ecoava da araponga o grito...

 

Ai, não me fujas, viração sentida!

Vê-me ainda da estação feliz!

Desfolha sobre a tumba de meus sonhos

A grinalda dos risos infantis!

 

Este ligeiro hálito da pátria

Como desperta sensação tão pura!

Como esta essência dos folguedos idos,

Infunde n’alma tão sutil ternura!

 

Ó aura do crepúsculo, mais suave

Que o perfume das rosas de Istambul;

Leva ao meu ninho meu gemer de Alcíone!

Traz de meu ninho a primavera azul!

 

 

RESIGNAÇÃO

 

Oh ! que essa tristeza tem doce magia;

Qual luz que esmorece lutando com as sombras Nas vascas do dia.

Bernardo Guimarães .

 

No silêncio das noites perfumosas,

Quando a vaga chorando beija a praia,

Aos trêmulos rutilos das estrelas,

Inclino a triste fronte que desmaia.

 

Eu vejo perpassar as sombras castas

Dos delírios da leda mocidade;

Comprimo o coração despedaçado,

Pela garra cruenta da saudade.

 

Como é doce a lembrança d'esse tempo

Em que o chão da existência era de flores,

Quando entoava, ao murmúrio das esferas,

A cópia tentadora dos amores!

 

E voava feliz nos ínvios serros

Em posse das borboletas matizadas...

Era tão pura a abóbada do elísio

Pendida sobre as veigas rociadas...

 

Hoje escalda-me os lábios riso insano,

E febre o brilho ardente de meus olhos:

Minha voz só retumba em ai plangente,

Só juncam minha senda agros abrolhos.

 

Mas que importa esta dor que me acabrunha,

Que separa-me dos cânticos ruidosos,

Se nas asas gentis da poesia

Elevo-me a outros mundos mais formosos?!

 

Do céu azul, da flor, da névoa errante,

De fantásticos seres, de perfumes,

Criou-me regiões cheias de encanto,

Que a lua doura de suaves lumes!

 

No silêncio das noites perfumosas,

Quando a vaga chorando beija a praia,

Ela ensina-me a orar tímida e crente,

Aquece-me a esperança que desmaia.

 

Oh! Bendita esta dor que me acabrunha,

Que separa-me dos cânticos ruidosos,

De longe vejo as turbas que deliram,

E perdem-se em desvios tortuosos!...t

 

 

 

 

SEGUNDA PARTE

 

 

 

INVOCAÇÃO

 

AO DR. PESSANHA PÓVOA

 

Ingrata... Oh ! não te chamarei ingrata;

Sou filho teu: meus ossos cobre ao menos,

Terra da minha pátria, abre-me o seio!

Almeida Garrett.

 

Quando a noite destende seu manto,

Quando a Deus faz subir rude canto

Da lagoa o audaz pescador;

Quando rolam no éter mil mundos,

— Quando eleva, plangentes, profundos,

Seus poemas, feliz trovador;

 

Quando a aragem, perdida, faceira,

Beija a flor do amaranto, e ligeira

Os olores lhe rouba, tremente;

Quando a linfa se enrosca e murmura

Na macia, relvosa espessura,

Qual argêntea, travessa serpente;

 

Quando fulge a rainha dos mares,

Desdobrando, entornando nos ares

Suavíssima e plácida luz,

E descansa, chorando, na lousa

Onde a virgem dormente repousa,

Acolhendo-se à sombra da cruz;

 

Quando ao som das gentis cachoeiras

Mil ondinas a flux, feiticeiras,

Cortam rolos de espuma de prata;

E desperta do abismo os mistérios,

E ressoa nos campos aéreos

O gemido tenaz da cascata;

 

Sinto n’alma pungir-me um espinho!

Sinto o vácuo embargar o caminho

Que procuram meus trenos de amor!

Deste sol que dá luz e ventura,

Desses pampas de eterna verdura,

Ai! não vejo a beleza, o esplendor!

 

Se eu pudesse, qual cisne mimoso,

Que nas águas campeia orgulhoso,

Demandar minha pátria adorada...

Ou condor, em um voo gigante,

Contemplar sob o céu — palpitante —

Esses lagos de areia dourada...

 

Mas, ó pátria, são frágeis as asas!

E se aos bardos mil vezes abrasas,

Não me ofertas um mirto sequer!

Quando intento librar-me no espaço,

As rajadas, em tétrico abraço,

Me arremessam à frase — mulher!...

 

Seja embora! Se em leves harpejos

Vem a brisa cercar-te de beijos

E dormir sobre tuas campinas,

Dá-me um trilo dos plúmeos cantores!

Dá-me um só dos ardentes fulgores

De teu cálido céu sem neblinas!

 

 

NO ERMO

 

Quando penetro na floresta triste

Qual pela ogiva gótica o antiste,

Que procura o Senhor.

Como bebem as aves peregrinas

Nas ânforas de orvalho das boninas

Eu bebo crença e amor!...

Castro Alves.

 

Salve! Florestas virgens, majestosas,

Aos céus alçando as comas verdejantes

Em perenes louvores!

Salve! Berço de brisas suspirosas,

Onde pendem coroas flutuantes

Aos lúcidos vapores!

 

Eu que esgotei do sofrimento a taça,

Que pendo para a campa húmida e fria

No alvorecer da vida;

Que na longa vigília da desgraça

Não vejo luz... nem tenho na agonia

Consolação querida;

 

Eu que sinto na fronte erma de sonhos

A centelha voraz, a febre ardente

Que o viver me consome;

Que já não creio num porvir risonho...

Que só busco olvidar num ai plangente

O martírio sem nome...

 

Oh! Eu quero, meu Deus, sorver sedenta

Os virgíneos eflúvios desta selva,

Gozar beleza e sombra!

Molhar meus pés na vaga sonolenta...

Desmaiar sobre a mole relva

Na balsâmica alfombra!...

 

Aqui, entre estes troncos seculares,

Sob a cúpula ingente que flutua

Num mar de luz serena,

Não penetra a paixão com seus esgares;

Mais lânguido fulgor esparge a lua

Nas asas da falena.

 

Na mística penumbra entrelaçadas

Vicejam longas palmas espinhosas

De rastejantes cardos;

E do âmago das árvores lascadas,

Em fios brotam bagas preciosas

De cristalinos nardos.

 

Ao brando embate da amorosa aragem

Desprendem-se das longas trepadeiras

Mil pétalas purpúreas;

E dos terrenos a tépida baforagem

Derrama o grato odor das caneleiras

No cálice das boninas.

 

Nas folhas de sereno gotejantes,

Balouça-se o inseto de esmeralda

À luz dourada e pura;

A serpente de tintas cambiantes

Desprende-se da florida grinalda,

E roja na espessura!

 

Além, recorta o vale aveludado,

Entre moitas gentis de violetas

O arroio preguiçoso;

E das flores aladas namorado,

Retrata as ondejantes borboletas

No leito pedregoso.

 

Em floridos festões creia a liana,

Sobre a límpida que rola murmurando,

Mil pontes graciosas,

Ou coliga-se à hercúlea canjerana,

E eleva-se, brandícias derramando,

Às nuvens luminosas.

 

O povo dos cerúleos passarinhos

Que há pouco em doces hinos de alegria

Cantava seus amores,

Voleia em busca dos macios ninhos

Saciado de gozo, a fantasia

Repleta de esplendores.

 

Pouco a pouco derramam-se nos ares

Mais doces murmúrios. Já se esvaem

No remanso da noite

Os harpejos dos trêmulos pilares;

Já não bafeja os lotos, que descaem,

Das auras o açoite.

 

Agora que repousa a turba estulta,

Que a lua brinca nos vergéis fulgentes,

E os silfos se embevecem,

O primeiro cantor brasileiro exulta;

E os gorjeios sonoros, estridentes,

Num gemido falecem!

 

De novo a voz se alteia palpitante

Ao capricho indolente, langoroso,

Da garganta canora;

Varia o poeta a escala delirante...

Dir-se-ia o murmurar langue saudoso,

Da onda que se explora!...

 

Eu amo estes risonhos alcáceres,

Quer a pino dardeje o rei dos astros

Seus raios queimadores,

Quer a névoa que ondeia entre os palmares

Deixe os noturnos, luminosos rastros,

Com gélidos palores.

 

Aqui aos ternos cânticos das aves,

Ao refulgir das lágrimas da aurora

Nos campesinos véus,

Minha alma pousa de emoções suaves

Desdenha a mágoa insana que a devora,

E remonta-se aos céus!

 

Salve! Florestas virgens, majestosas,

Aos céus alçando as comas verdejantes

Em perenes louvores!

Salve! Berço de brisas suspirosas,

Onde pendem coroas flutuantes

Aos lúcidos vapores!

 

 

 

O ITA-TIAYA

 

Os negros píncaros do Ita-tiaya, em forma do agulhas, eram em seus vértices dourados por uma frouxa luz solar, em quanto que um certo lusco e fusco matutino pairava sabre as regiões ocupadas por Minas, S. Paulo e Rio de Janeiro. O gelo alastrado por terra e escalando o flanco dos montes, era um manto prateado nas várzeas e pirâmides de cristais nos cabeços dos montes!

Franklin Massena.

 

Ante o gigante brasileiro,

Ante a sublime grandeza

Da tropical natureza,

Das erguidas cordilheiras,

Ai! Quanto me sinto tímida!

Quanto me abala o desejo

De descrever num harpejo

Essas cristas sobranceiras!

 

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

 

Vejo aos pés os vales pávidos

Que se desdobram relvosos;

Profundos, vertiginosos,

Cavam-se abismos medonhos!

Quanto precipício indômito,

Quanto mistério assombroso

Nesse seio pedregoso,

Nessa origem de mil sonhos!...

 

Ondulam ao longe murmúrios

Aos pés de esguios palmares,

As florestas seculares

Cingidas pela espessura;

A liana forma dédalos

Na grimpas das caneleiras,

Do cedro as vastas cimeiras

Formam docéis de verdura.

 

Por sobre os seixos dos álveos

Correm brancas serpentes,

E as águas soltam frementes

Doridos, brandos queixumes;

Ao perpassar pelas fragas

Em prateados cachões,

Sacodem nos turbilhões

Seu diadema de lumes.

 

Brota a torrente cerúlea

Do Aiuruoca em cascata,

Rola a treda catarata

Sobre coxins de esmeraldas;

A límpida desmaia túmida

No coração da voragem,

E terna - lambendo a margem

Vai perder-se além das fraldas!

 

Em três lagos vejo o tálamo

Onde as agulhas se elevam,

Neles constantes se cevam

Três espumosas vertentes;

Do Paraná galho ebúrneo

Do Mirantão se desprende

E, sem que banhe Resende,

Leva ao Prata os confluentes!

 

Rompendo o celeste páramo

Nem mais um tronco viceja,

A ericínia rasteja

Sobre as fendas do granito:

Tapeta o solo a nopália,

Vertem eflúvios a açucena,

E a legendária verbena

Coroa o negro quartzito!

 

Rompendo o celeste páramo

A ericínia rasteja;

Mais alto, ostenta-se a anêmona

No caule ranunculoso;

Pendem do seio mimoso

Flocos de virgem pureza:

Roubou-lhe a tinta das pétalas

O cirro que adorna a aurora;

A vaga quando desflora

Imita-lhe a morbidez!

 

O Térglu, o Asse e o Pesciora

Invejam esta altitude,

E da coma áspera e rude

Os cabeços recortados.

Pendem rochedos erráticos

Na vastidão da eminência,

Riquezas que a Providência

Guarda a seus predestinados.

 

Ao findar, às planícies

Nivelam-se as serranias;

Envoltos nas brumas frias

Transparecem os outeiros;

E o olhar ardente e ávido

Contempla os montes perdidos,

Como troféus reunidos,

Como tombados guerreiros!...

 

Salve! Montanha granítica!

Salve! Brasileiro Himalaia!

Salve! Ingente Itatiaia,

Que escalas a imensidade!...

Distingo-te a fronte válida,

Vejo-te às plantas, rendido,

O meteoro incendido,

A soberba tempestade!...

 

De teu dorso assomam ínvios

Feixes de pedra em pilastras,

Órgão gigante que enastras

De mil grinaldas alpestres!

Quem lhes calca a base, intrépido,

Vendo o sublime portento,

Liberta seu pensamento

Das amarguras terrestres!

 

Rasgando o horizonte plúmbeo

O sol te envia seus raios;

As nuvens formam-te saiões

Quais leves nebulosas!

Mimam-te as flores etéreas,

Cobrem-te espumas de neve,

Dão-te o pranto fresco e leve

Da noite as fadas formosas!

 

E quando envolvem-te as áscuas

Queimando o chão rociado,

Funde-se o tirso gelado,

Caem profusos fragmentos!

Muda-se o quadro de súbito:

Chovem cristais dos pilares,

E nu se perde nos ares

O perfil dos monumentos!...

 

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

 

Vai meu canto ao mundo sôfrego

Que ante os prodígios se inclina,

Narrar a beleza alpina

Das regiões em que trilhas;

Leva-lhe nas asas vélidas

Meu culto à serra gigante,

Pátrio ponto culminante,

Berço de mil maravilhas!...

 

 

VINTE E CINCO DE MARÇO

 

Lave-se a nodoa infame que mareia

O refulgente nome do Brasil;

E se o sangue somente lavar pode

Essa mancha odienta e vergonhosa

Venha o sangue, por Deus, venha a revolta!

Celso Magalhães.

 

Na noite sepulcral dos tempos idos

Plácida avulta a merencória esfinge;

Esplêndido ideal que esclarecera

A crente multidão!

Monumento do verbo grandioso

Deste povo titã, débil ainda...

Centelha sideral que fecundara

A seiva da nação!

 

Lacerado o cendálio tenebroso

Que nos velava os livres horizontes,

Entoa o continente americano

Um hino colossal;

Mais viva no peito a fé rutila;

Mais nobres se erguem dos heróis os bustos

Cingidos pela chama deslumbrante

Da glória perenal.

 

Mas tu projetas o negror no espaço

Que sobre nós desata-se em sudário!

Mas teu hálito extingue a luz benfazeja

Que acendera o Senhor!

Maldição! Maldição! A liberdade

Vê de lodo seu manto salpicado...

Do vulcão popular a ígnea lava

Desmaia sem calor...

 

Raiaste como o símbolo nefasto

Do traidor Antiteu, mentindo ao orbe;

E os louros virgens da nação sorveste

Como hidra voraz!

Roubaste ao povo a palma do triunfo,

Recompondo a algema ao pó lançada,

E moldaste no bronze a estátua fria

Da mentira loquaz!

 

Das espaldas robustas da montanha

A pedra derrocada abate selvas;

A avalanche vacila lá nos Alpes...

Convulsiona terra e mar!

Resvalaste, padrão de cobardia,

Pelos áureos degraus do sólio augusto...

E a santa aspiração, e os sonhos grandes,

Esmagaste ao tombar!...

 

Após a luz... o caos confuso, intérmino!

Após o hino festivo de um povo...

O lúgubre silêncio do sepulcro

Sem uma queixa ou voz!

Lançaste a pátria em báratros profundos

Ferida pela mão da tirania,

E apenas um lampejo de civismo

Deixaste ao crime atroz!

 

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

 

Onde estavam, ó pátria, os teus Andradas

Que sustinham-te aos ombros gigantescos?

Onde o tríplice brado altipotente

Do peito popular?

— Gemem sem luz em cárceres medonhos,

— Seguem do exílio a pavorosa senda,

Rorando com seu pranto piedoso

De teu solo o altar!

 

Rasgai, rasgai a folha lutulenta,

— Emblema do mesquinho cativeiro;

Não vedes? Choram hoje em suas campas

Os manes dos heróis!...

Salvai a honra dos que em lar estranho

Por ti verteram lágrimas de sangue,

E resgatando a fé despedaçada,

Vingai nossos avós!

 

 

MANHÃ DE MAIO

 

À BRANDINA MAIA

 

A madrugada

Recatada no véu d’espessa bruma

Aparece, respira-se alegria!

Theófilo Braga.

 

Querida, a estrela-d’alva ao mar se inclina;

Solta a calhandra o canto da matina

Na coma ingente da giesta em flor!

A natureza é uma ode imensa:

Eleva-se de cada moita densa

Um hino ao Criador!

 

Deixemos a cidade: além, a veiga

Nos guarda a olência apaixonada e meiga

Dos corimbos que agita a viração.

Vês? Desponta uma rosa em cada galho,

E das rosas trêmulo o doce orvalho

No rubro coração!

 

Pelas espáduas ásperas do monte,

— Gigante das legendas do horizonte,

Rola a espuma de luz e alaga o val;

Ao mole influxo de teu riso mago

Desperta o euro e frisa em doido alago

Das límpidas o cristal!

 

E o nenúfar, a estremecer de frio,

Levanta a fronte cérula do rio

Expondo ao raio a face de cetim;

As borboletas dançam como wilis;

Esquece a louca abelha as amarílis

No seio do jasmim!

 

Da selva secular, nas verdes naves,

Perdem-se ao longe os cânticos suaves

Dos voláteis salmistas do sertão;

Ouves? A queixa túrbida das matas,

E o murmúrio merencório das cascatas

Reboam na amplidão!...

 

Rasgando a profundeza flutuante

Das nuvens, a pilastra cintilante

Sustenta do infinito a concha azul.

E a concha do infinito é o quente ninho,

Donde a estrela, dourado passarinho,

Voara para o sul! —

 

Na terra — plena paz! plena harmonia!

Rolam cantos de amor, de poesia,

No val, na serra, na extensão do mar!...

No firmamento — fogos peregrinos,

E a névoa a gotejar prantos divinos

De Deus ao terno olhar!...

 

É a hora em que a prece da serrana

Vai fervente da plácida cabana

As plantas expirar do Redentor!

Em que a loira criança acorda rindo!

E corta o dorso do oceano infindo

O pobre pescador!

 

E a fantasia arroja-se no espaço,

Da caligem quebrando o frio laço

Para ondular no pélago de anil!...

E Deus desprende para ti, formosa,

A essência virginal da tuberosa,

Que se embala no hastil!

 

Em nosso seio brinca a primavera,

Em nossa fronte a lúcida quimera

Verte a flama voraz da inspiração;

Pois bem! Que o vento leve à divindade

Do puro altar de nossa mocidade

O incenso da oração!...

 

 

A RESENDE

 

Eu te achei, meu bordão de romeiro

Quando mal m’esperavas... talvez!

Teixeira de Mello.

 

Enfim te vejo, estrela da alvorada,

Perdida nas celagens do horizonte!

Enfim te vejo, vaporosa fada,

Dolente presa de um sonhar insonte!

Enfim, de meu peregrinar cansada,

Pouso em teu colo a suarenta fronte,

E, contemplando as pétreas cordilheiras,

Ouço o rugir de tuas cachoeiras!

 

Mal sabes que profundos dissabores

Passei longe de ti, Éden de encantos!

Quanto acerbo sofrer, quantos agrores

Umedeci com as bagas de meus prantos!

Sem um raio sequer de teus fulgores...

Sem ter a quem votar meus pobres cantos...

Ai! o simum cruel da atroz saudade

Matou-me a rubra flor da mocidade!...

 

Vivi bem triste! O coração enfermo

Buscava embriagar-se de harmonias,

Porém via do céu no azul sem termo

Um presságio de novas agonias!...

O bulício do mundo era-me um ermo

Onde as lavas do amor chegavam frias...

Só uma melancólica miragem

Dourava-me a solidão — a tua imagem!

 

Caminhei, caminhei sem ter descanso

Ao som das epopeias das florestas;

Caminhei, caminhei e no remanso

Da tarde, ouvi do mar as vozes mestas;

Nas ribas descansei de um lago manso

Pra gozar do talento as nobres festas,

E adormeci na esmeraldina alfombra

Da palmeira real à grata sombra!

 

Caminhei inda mais: com nobre empenho

Penetrei no sagrado santuário

Onde o gênio — em delírio — arrasta o lenho

Do trabalho, em demanda de um Calvário!

Vi surgir sobre a tela, à luz do engenho,

E povoar o templo solitário,

Da Carioca a lânguida figura,

De Nhaguassu o feito de bravura!...

 

Inclinada nas longas penedias

Acompanhei o voo das gaivotas;

Meu nome arremessei às ventanias

Sem que sentisse sensações ignotas!

Da musa do piano as melodias,

De uma flauta canora as doces notas,

O gelo que sorvi num mago enleio,

Tudo gelado achou meu débil seio!...

 

Mas após negridão de noite lenta,

Na curva do horizonte o sol resplende:

Após o horror de tétrica tormenta,

Fugaz santelmo lá no céu se acende;

Após o latejar da dor cruenta

Vejo-te enfim, ó plácida Rezende,

Debruçada no cimo da colina,

Sorrindo meiga à exausta peregrina!

 

Abre-me os braços, filha do ocidente,

Quero beber teus úmidos luares!

Quero escutar o soluçar plangente

Do vento pelas franças dos palmares!

Não vês que no meu lábio há sede ardente

Que calcinou-me a tez o sol dos mares?...

Ah! mostra ao passo meu tardio, incerto,

A sombra d’arequeira do deserto!

 

Que saudades que eu tinha das campinas,

Destes prados e veigas odorantes!

De teu tirso de cândidas neblinas

Recamado de auroras cambiantes!

Destas brandas aragens matutinas

Que doudejam com as ondas murmurantes,

De tudo, tudo quanto em ti resumes,

Formosa noiva dos estivos lumes!

 

Na corola da flor de minha vida

Se aninha agora inspiração mais pura;

De meu do natal a voz sentida

Desperta em mim um mundo de ternura!

Em minha triste fronte empalidecida

Mais uma estrofe límpida fulgura,

E no berço de tuas matas densas

Libo sedenta o orvalho de mil crenças!...

 

Ó filha de Tupã, que um véu de brumas

Estendes sobre o mísero precito;

Ó ave linda, que as mimosas plumas

Aqueces nos ardores do infinito;

Garça gentil, que surges das espumas

Como da mente do poeta o mito,

Enquanto a lua ondula pelo espaço,

Abre a meu sono eterno o teu regaço!

 

 

MIRAGEM

 

Délivrez, frémissant de rage,

Votre pays de l'esclavage,

Votre mémoire du mépris!

Victor Hugo.

 

Senhor, o calmo oceano

Do verão nas quentes noites,

Se revolta sobranceiro

Da tempestade aos açoites!

Encrespa o dorso potente

Dilacerando, fremente,

As asas do vendaval;

Faz cintilar a ardentia,

E arroja à nuvem sombria

Diademas de cristal!

 

Envolta em flocos de neve

Se levanta a cordilheira;

Sonha um raio ardente, ígneo,

Que lhe doire a cabeleira!

Fita audaz o vasto espaço,

Despedaça o tíbio laço

Dos nevoeiros do sul;

Solta a coma de granito,

Vai devassar o infinito

Rasgando o cendal azul!

 

No espelho em que o sol se mira

A tarambola, em delírios,

Corta com as plumas de prata

Da espuma os nítidos lírios;

De sobre o escarcéu, ignota,

Num voo imenso a gaivota

Sonda os páramos do ar;

E dos paços encantados

Surgem peixinhos dourados

Que saltam à flor do mar!

 

Oh! tudo, tudo se expande

Às auras da liberdade!

A treva calcando às plantas,

Demandando a imensidade!

Do incenso a loura neblina...

O som da voz argentina

Que canta idílios de amores...

Do Nuttall o pó ardente...

Da mata a cúpula virente...

Do rio os tênues vapores!

 

E sob o céu sempre belo

Da mais sedutora plaga,

Beija — o rei — da natureza

O ferro que o pulso esmaga?!

Que importa que os saxêos montes —

Atalaias de horizontes —

Clamem do ar na amplidão:

“Levanta-te, ó povo bravo,

Quebra as algemas de escravo

Que aviltam-te o coração”?!

 

Rompem-se esforços insanos,

Esmaga o flagício lento;

Mas a verdade sublime

Não aclara o firmamento.

Descera a mortalha fria

Que do mais formoso dia

Enturvava o alvorecer,

E não transborda ruidoso

O vagalhão luminoso

Que o cetro deve sorver!?

 

Meu Deus, quando há de esta raça,

Que genuflexa rebrama,

Erguer-se de pé, ungida,

Das crenças livres na chama?

Quando há de o tufão bendito

Trazer, das turbas ao grito,

O verbo de Mirabeau?

E a luz da moderna idade

Ao crânio da mocidade

Os sonhos de Vergniaud?!...

 

Oh! dá que em breve eu contemple

Aos puros raios da glória

O feito altivo gravado

Nos fastos da pátria história!

Dá que deste sono amargo,

Deste pélago em letargo

Que nos envolve no pó,

Surja a vaga triunfante

Que anime no túmulo ovante

As cinzas de Badaró!

 

 

LEMBRAS-TE?

 

À ADELAIDE LUZ

 

La nature semblait n’avoir qu’une âme amante,

La montagne disait: Que la fleur est charmante!

Le moucheron disait: Que l’océan est beau !

Victor Hugo.

 

Era à tardinha: a luz no monte debruçada

Nos enviava o — adeus — com tépido langor;

Brincava em nossas tranças a brisa embalsamada,

Tudo ante nós sorria, desde a gramínea à flor.

 

E tu me perguntaste com essa fala aérea,

Tomando minha mão nas tuas mãos mimosas:

— “Por que cismando fitas a vastidão sidérea?

Por que contemplas muda as tênues nebulosas?”

 

Escuta: a terra sagra ao sol mil harmonias!

A fonte ondula trêmula a superfície azul;

Vagam no espaço — errantes — celestes melodias,

E róseas nuvens cingem a amplidão do sul.

 

No ar brincam as sombras com seus fulgores pálidos,

As dríades desdobram as asas transparentes;

Esquece a magnólia do dia os raios cálidos,

E os alvos nenúfares se ocultam nas correntes.

 

Ao longe, o busto negro de imensa serrania

Campeia majestoso ao lânguido clarão...

Esvaece-se lá nas selvas o som d’Ave-Maria...

E a trepadeira rubra alastra o mole chão.

 

Argênteas cataratas, rolando pelas fragosas,

Sacodem catadupas de lindos diamantes;

Na face dos arroios, na candidez das águas,

Perfumam mariposas os corpos cambiantes.

 

Além soluça a rola um cântico saudoso...

Entorna-se a poesia do firmamento à flux;

Gemem eólias harpas, e o manto luminoso

Do céu desvenda as loiras palhetas que produz!

 

Não me perguntes mais com essa fala aérea

Por que muda contemplo as tênues nebulosas,

Por que cismando fito a vastidão sidérea,

Ó sílfide embalada em névoas vaporosas!

 

Vejo no lago azul, na flor, nos verdes montes,

O Ser que cria a brisa, e doura o arrebol;

Que impele a nuvem túmida por sobre os horizontes,

Que, fazendo-nos de pó, vestiu de luz o sol!...

 

 

À LUA

 

Tu és o cisne que em meus cantos canto,

Tu és a amante que em meus prantos chora!

Teixeira de Mello.

 

Contemplas-me, virgem pálida?

Mandas-me um riso? Não creio!

Não vejo a espuma fulgente

Da luz, num beijo fervente,

Tingir-te a neve do seio!

 

Por que de brandas carícias

Circundas a poetisa?

Não tens, acaso, nas flores

Mais feiticeiros amores?

Não tens o arpejo da brisa?

 

Quando no leito sidéreo

Repousas a face linda,

Pareces alva criança

Que, descuidosa, descansa

No berço alvejante ainda.

 

E se passas entre páramos

Nos braços de mil aninhos;

Se vais banhar-te nos lagos

Do lírio aos langues afagos,

Saúdam-te os passarinhos!

 

Ah! quebra a mudez intérmina,

Meiga irmã dos pirilampos!

Não vives de poesia?

Por que percorres sombria

Do céu os lúcidos campos?

 

Estendo-te os braços trêmulos,

Vem desvendar-me o mistério;

Contar-me as latentes dores,

A causa dos teus palores,

Rainha do reino aéreo.

 

Depois... ao clarão esplêndido,

Seguindo-te os lentos passos,

Contar-te-ei meus pesares

Em frente à extensão dos mares,

Presa em teus débeis laços.

 

Mas não tentes, em silêncio,

Sondar a chaga dorida!

É tarde, virgem, é tarde,

No meu seio apenas arde

Uma centelha de vida!

 

 

SETE DE SETEMBRO

 

Ergueu-se a mão de Deus sobre o Ipiranga

Quando o esteio aluiu do despotismo.

Félix da Cunha.

 

En vain l’injuste violence

Au peuple qui le loue imposerait silence ;

Son nom ne périra jamais.

Le jour annonce au jour sa gloire et sa puissance.

Racine.

 

Salve! dia feliz, data sublime

Que despertas o sacro amor da pátria

Em nossos corações!

Salve! aurora redentora que eternizas

A era em que o Brasil entrara ovante

No fórum das nações!

 

Além do oceano, entre coreias místicas,

Com a imensa coma abandonada aos ventos

Descansava a dormir,

O filho altivo das cabrálias cismas;

— Calmo como a Sibila que tateia

Mistérios do porvir!

 

E os ósculos ardentes do pampeiro

Do gigante adormido os lassos membros,

Enchiam de vigor,

E os débeis raios da saudosa lua

A soberba cabeça lhe adornavam

D'estremas de fulgor.

 

Um dia... ai! despertou, vendo cortado

Pela infame cadeia dos cativos

O nobre pulso seu;

Estremecera em ânsias: lava ardente

Rugia incendiada pelas fibras

Do novo Prometeu!...

 

E os mundos agitaram-se nos eixos;

E o mar convulso arremessou aos ares

Cristais em turbilhões;

E a humanidade inteira ouviu tremendo

O brado heroico que rasgara o peito

Do gênio das solidões!

 

Após insano esforço, ergueu-se ingente

Calcando aos pés a algema espedaçada

Da luta no estertor,

E o Amazonas foi dizer aos mares,

E os Andes se elevaram murmurando:

"Eis-nos livres, Senhor!"

 

Tu foste meiga estrela que fulguras,

Apontando o caminho ao pegureiro

Exposto ao vendaval;

Rosa orvalhada de divinas lágrimas,

Que o colo purpurino reclinaste

No sólio de Cabral;

 

Liberdade gentil, visão dos anjos,

Clícia mimosa balouçada à sombra

Pelo bafo de Deus,

Tu foste, como sempre, a luz d'aliança

Que a santa chama n’alma aviventaste,

Roubando-a aos escarcéus!...

 

Mas não se cinge a escravidão à algema:

A terra que sagrar vieste livre

Do futuro no altar,

Rasgado o seio por voraz abutre,

Vê-se agora entregue à escravidão dos erros,

Sem forças, vacilar!

 

Ah! não te esqueças deste augusto dia!

Ampara o débil povo que se curva

Ante um falso poder!

Desdobra tuas asas refulgentes

Sobre o leito fúnebre em que repousa

O mártir Xavier!

 

E quando os filhos teus tendo por bússola

A crença livre que n'antiga idade

Fundiu tantos grilhões,

Remontarem aos polos do futuro

Enchendo o vazio de um presente inerte

De indústria e aspirações;

 

Serás tu, liberdade sacrossanta

Que cingida de magos resplendores

Nos ungirás de luz!

Serás tu, que voltada para o infinito

Nos guiarás na senda fulgurante

Que à vitória conduz!...

 

Salve! dia feliz, data sublime,

Que despertas o sacro amor da pátria

Em nossos corações!

Salve! aurora redentora que eternizas

A era em que o Brasil entrara ovante

No fórum das nações!...

 

 

A NOITE

 

Eu amo a noite solitária e muda

Quando no vasto céu fitando os olhos,

Além do escuro que lhe tinge a face

Alcanço deslumbrado

Milhões de soes a divagar no espaço.

Gonçalves Dias.

 

Ó Noite, meiga irmã da poesia,

Ninfas em lânguidas cismas balouçada,

Abre-me o seio teu, pleno de encantos!

Oh! Quero em ti fugir à dor famélica

Que me devora o coração sem vida

E os seios de minh'alma dilacera!

Quero a fronte pendida alçar, envolta

Na fímbria imensa de teu manto tétrico!...

 

Debruça-se a nopália enfraquecida

Se o cálice lhe bafeja o Norte adusto;

Desmaia a vaga azul na praia curva

Como um arco indiano, quando céleres

Do favônio indolente os leves beijos

Esfrolam da laguna a nívea opala;

Também meu coração se estorce e sangra

Do sofrimento entre as cruentas fragas!

 

E tu, que as alvas pétalas requeimadas

Alentas com uma lágrima celeste;

Tu, que da espuma da amorosa ondina

Formas na concha a preciosa pérola;

Concede ao peito meu que a mágoa enluta

Ainda um momento de serenos gozos...

Um riso que meus lábios ilumine,

Um só lampejo de fugaz delícia!

 

Ó fonte de ilusões, sobre teu colo

Repousa exangue o desgraçado escravo;

Ao silêncio que espalhas sobre a terra

Implora o triste bardo a estrofe rútila,

Que se expande em torrentes de harmonia!

E o pobre, em áureos sonhos, transportado,

Contempla a messe que promete o estio

Aos filhos desditosos da miséria!

 

Quanto te amo, ó Noite! À mole queixa

Da brisa que adormeces na floresta

Confundo meus tristíssimos gemidos;

À melodia das esferas pálidas

Que as orlas de teu véu sombrio bordam,

Concerto os trenos que o sofrer me inspira

E a gota amarga que me sulca as faces

A um teu sorriso se converte em bálsamo!...

 

Quando na extrema do horizonte infindo

Do sol se apaga o derradeiro raio;

Quando lenta e tardia desenrolas

De teu manto real a tela plúmbea;

Quando vais rociar a lajem tosca

Da fria sepultura com teus prantos,

O murmúrio dos mundos emudece

Ante tua grandeza melancólica!...

 

E se a filha gentil de teus amores

Cingida de palor no éter brilha;

Se a poeira dos astros cintilantes

Do Senhor do universo esmalta o sólio;

Minh'alma desatando os terrenos laços,

De vaga fantasia arrebatada,

Vai pelos raios de formosa estrela

Aninhar-se do elísio na flor cérula!...

 

Ó Noite, meiga irmã da poesia,

Ninfa em lânguidas cismas balouçada,

Abre-me o seio teu, pleno de encantos!

Desse regaço o divinal mistério

Faz-me esquecer a angústia cruciante

De passadas visões! E de meu seio,

Teu morno sopro nas geladas cinzas,

Anima a esperança de um futuro esplêndido!...

 

 

 

VEM!

 

Venez: l'onde est si calme et le ciel est si pur !

Victor Hugo

 

Lírio mimoso dos jardins cerúleos,

Plácido arcanjo de brilhantes vestes,

Vem, Sono, e com teu cetro fúlgido

Fecha-me os olhos.

 

Não vês que as sombras se desdobram tétricas?

Que Éolo geme sem já ter um silvo?

Não vês que os gênios do oceano indômito

Lânguidos choram?

 

Vem, que a fragrância dos junquilhos cândidos

Se casa ao múrmur da fugaz corrente;

Há na folhagem das sombrias árvores

Túrbida queixa.

 

Se ao leito foges em que rola o cético

Turbando a noite com a blasfêmia ímpia,

Tu vens da virgem deferir a súplica

Tímida e pura!

 

E quando baixas, belo ser notívago,

Vertendo orvalhos, mitigando dores,

As magnólias que se alteiam pálidas

Curvam-se n’haste.

 

O pobre escravo num langor benéfico

Recobra forças para a luta insana;

Lasso proscrito, todo o horror do exílio

Mísero! — esquece.

 

A branca pomba, da doçura símbolo,

Oculta a fronte sob as níveas asas;

E o rei das feras nas cavernas líbicas,

Flácido tomba!...

 

O cafre exausto sobre a areia tórrida

Busca a palmeira no Saara erguida;

E goza ao sopro de teu meigo hálito,

Mágico encanto!

 

Oh! mais não tardes, vem ungir-me as pálpebras

Meu ser embala num dourado sonho!

Rasga o véu denso que limita o vácuo,

Mostra-me a pátria!...

 

 

PESADELO

 

A MEU PAI, O SR. JÁCOME DE CAMPOS

 

I

 

À toi ce dur métier,

D’empêcher que le droit ne meure tout entier,

A toi, vers fossoyeur, de déterrer les ombres,

De secouer des morts le spectre gémissant,

De mettre au front du crime une marque de sang !

Jean Larocque.

 

Quando nas horas mortas da noite que se esvai

Me empalidece a face e a fronte me decai,

Eu d'essa vastidão sem fim do mar do mundo

Pulho as raras per'las que dormem lá no fundo

E vejo a luz mostrar-se a custo, fugitiva,

Por entre densas trevas a cintilar cativa.

 

Da velha idade ao sol... Na Grécia florescente

Caindo o persa audaz, não vê a lava ardente

Que lavra desses peitos nos férvidos vulcões,

Da pátria a queixa rasga os gregos corações:

Levanta-se Milcíades e nas guerreiras lides

Abraça o gênio másculo do integro Aristides!

 

Além folgava Roma em seus festins ruidosos

Berço da ímpia Túlia e régios criminosos, -

E a sanha do Soberbo - rugia sob os véus

De fulgidos zimbórios e lindos coruchéus:

Mas a honra de Lucrécia, por um príncipe ultrajada,

No sangue dos senhores por Bruto foi vingada.

 

Nessas montanhas ínvias, nos alcantis virentes,

Na limpidez dos lagos de ondulações trementes;

No seio d'esse ninho formado de mil flores,

Onde cantam idílios os tímidos pastores,

Eu vejo fulminadas as águias poderosas

Que de Tell desafiaram as iras belicosas.

 

No chão da confusão arquejam parlamentos;

Trêmulo de ardor, reúne esparsos regimentos

E à frente das falanges intrépidas, luzidas,

"Vingança!" brada Cromwell às raças oprimidas.

Com rapidez terrível o gládio soberano

Atira ao pó a fronte do plácido tirano!

 

E vejo um lidador com santo entusiasmo

Tentar roubar a Itália a seu servil marasmo;

Reavivar a chama - a chama amortecida

Na mesa do banquete, na morbidez da vida...

Mas ai! de um fero papa, ao mando assassinado,

Rienzi o invencível caiu sacrificado!

 

E lá quando a Polônia nas garras de seus erros

Se estorce, enchendo em vão de lágrimas os cerros,

Encélado sublime, em frente às invasões,

Destaca-se Kosciuszko erguendo as multidões!...

Escrita estava a sorte: devasta a Prússia a plaga,

E o esforço sobre-humano a Rússia fria esmaga.

 

A filha de Albion ativa repousava

Além do vasto mar, ante a mãe pátria - escrava;

Quebra o patriotismo o leito em que dormia,

Ergue-se o povo herói e a luta acaricia:

Silvando voam balas, o eco acorda os montes,

Livre surge a nação enchendo os horizontes!...

 

II

 

Ton souffle du chaos faisait sortir les lois;

Ton image insultait aux dépouilles des rois,

Et, debout sur l’airain de leurs foudres guerrières,

Entretenait le ciel du bruit de tes exploits.

CASIMIR DELAVIGNE.

 

Salve! Oh! Salve Oitenta-e-Nove,

Que os obstáculos remove!

Em que o heroísmo envolve

O horror da maldição!

Rolam frontes laureadas,

Tombam testas coroadas

Pelo povo condenadas

Ao grito — revolução!

 

Cabem velhos privilégios

D’envolta com os sacrilégios;

São troféus — os céticos régios,

Mitra, burel e brasão!

E os três esquivos estados

Fundem-se em laços sagrados,

Que prendem os libertados

Aos pés da revolução!

 

No pedestal da igualdade,

Firma o povo a liberdade;

Um canto à fraternidade

Entoam a voz da nação,

Que em delírio violento

Fita altiva o firmamento,

E adora por um momento

A deusa — Revolução!

 

Os ódios secam o pranto,

A ira tem mago encanto,

E a morte sacode o manto

Lançando crânios no chão!

Aqui — são longos gemidos

Desses que tombam feridos;

Ouve-se além — os rugidos

Da fera — revolução.

 

Treme a humana potestade

Ante tanta mortandade!

Proclama que a sociedade

Agoniza em convulsão!

Erguem-se estranhas fileiras,

Vão devassar as fronteiras,

Bradando às hostes guerreiras:

— Abaixo a revolução!

 

O nobre povo oprimido

Supõem fraco e vencido;

Medem-lhe o sangue espargido

Nas vestes da confusão.

Não sabem que é mais veemente

Dos livres o grito ingente,

Quando reboa fremente

À luz da revolução!

 

Levanta-se hirta a falange,

E a louca marcha constrange;

Rindo-se aguça o alfange

Tendo por guia a razão!

Ao sibilar da metralha

O obus gemendo estraçalha,

E o vasto campo amortalha

Quem fere a revolução!

 

Cobre a bandeira sagrada

A multidão lacerada,

E da França ensanguentada

Assoma Napoleão;

Surge da borda do abismo

O gênio do cristianismo,

E dos mártires o civismo

Confirma a revolução.

 

III

 

Que palmas de valor não murcha a grande história!

O povo esquece um dia os inclítos varões...

Pedro Luiz.

 

Contempla, minha pátria, sobranceira,

Dessas hostes os louros refulgentes;

E procurando a glória em teus altares

Entrelaça uma coroa a Tiradentes.

 

Viste marchar ao exílio acorrentados

Quais feras que teu seio rejeitava,

Os mais que desprender-te o pulso tentam,

E dormiste sorrindo — sempre escrava!...

 

E quando retumbou no espaço um brado

Tentando sacudir-te a negra coma,

Curvaste-te ao flagício fratricida

E deste ao cadafalso o — Padre Roma!

 

E não contente, após a exímia aurora

De tua amesquinhada independência,

Mais vítimas votaste em holocausto

Sufocando outra nobre Inconfidência.

 

Não bastavam, porém, tantos horrores

Que enegrecem as brumas do passado;

Foi preciso que às mãos de um assassino

Caísse o grande herói — Nunes Machado!

 

Foi preciso que em nome da justiça

De prisão em prisão vagando esquivo,

Acabasse afinal sem glória e nome,

Em martírio latente — Pedro Ivo!...

 

Mas se um dia o porvir abrir-te o livro

Que o presente te oculta temeroso;

Se com a vista medires a estacada

Em que o falso poder se ostenta umbroso;

 

Então, ó minha pátria, num lampejo

Os erros surgirão da majestade;

E arrojarás ao pó cetros e tronos

Bradando ao mundo inteiro — Liberdade!

 

 

 

 

TERCEIRA PARTE

 

A

SUA DEDICADA AMIGA

A Exma. Sra.

D. MARIA AMÉLIA D’IVAHY BARCELLOS

O. D. C.

A AUTORA.

 

 

CASTRO ALVES

 

O livro do destino se entreabre

Deixando ver nas páginas douradas

O seu nome fulgente, glorioso,

Que as turbas admiram assombradas!

Joana Tiburtina

 

Deus quis ouvi-lo.

Deu-lhe um poema no céu — a Eternidade!

Costa Carvalho.

 

Por que convulso geme o pátrio solo,

Dos montes despertando os ecos lúgubres?

Por que emudece o férvido oceano

E à terra, erma da luz, chorando atira

Mil turbilhões de lágrimas amargas?

Por que de sombras tétricas se vela

O firmamento azul? Que mágoa imensa

Enluta os corações e arranca o pranto?!...

 

É que o sono final cerrara os olhos

De um filho das solidões americanas!

 

O sol que avivara a chama augusta

No peito dos titãs do Dois de Julho,

Iluminara o berço vaporoso

Do pálido cantor da liberdade!

As dulcinosas brisas lá do Norte,

Ao ensaio dos passos vacilantes,

Traziam-lhe os queixumes, despertando

Um mundo de harmonias em sua alma!

 

E a dileta criança estremecia

Sentindo em si a seiva do futuro.

 

Mais tarde a fronte nobre, cismadora,

Volvia ao céu para escutar-lhe os votos

E muda, à terra, revolvia pávida

Como o profeta que a missão sublime

Das mãos de Deus recebe; desmaiava

Como desmaia a flor da magnólia

Aos ardores do estio. E radiosa

A pátria contemplou-o embevecida!

 

Já não era a criança temerosa

Do confuso murmúrio das florestas;

 

Era o poeta cuja lira de ouro

Erguia do sepulcro o vulto ingente

Do apóstolo Pedro Ivo; cujos trenos

Derramavam lampejos fulgurantes

De um róseo amanhecer: ora risonhos

Como as límpidas pérolas que entorna

A roçagante alvorada, ora profundos

Como os cavos rugidos do Oceano!

 

Estranha confusão de riso e pranto,

De luz e sombra, mocidade e morte!

 

Depois, cisne de amor, deixou os lares

Demandando as campinas rociadas,

Onde ecoara o brado altipotente

De Independência ou Morte. Ali desdenha

As três irmãs que lhe apontavam gélidas

O porvir do poeta; vê o gênio

A marchar, a marchar no itinerário

Sem termo do existir, morto de inveja!

 

"E o mísero de glória em glória corre

Buscando a sombra de uns frondosos álamos."

 

"E queria viver, beber perfumes

Na flor silvestre que embalsama o éter;

Ver sua alma adejar pelo infinito

Qual branca vela na amplidão dos mares;

Sentia a voraz febre do talento,

Entrevia um esplêndido futuro

Entre as bênçãos do povo; tinha na alma

De amor ardente um universo inteiro!"

 

"Mas uma voz lhe respondeu sombria:

— Terás o sono sob a laje tosca!"

 

E nessas regiões sempre formosas

Onde acenava-lhe o farol da ciência,

O louco sonhador dos Três Amores

Colheu o fatal germe destrutível

Que minou-lhe a existência; quebrantado

Volveu às plagas que deixara outrora

Por pressentir, como única esperança,

Um túmulo entre os seus, no pátrio ninho.

 

E as almejadas palmas do triunfo

Converteram-se em louca mortuária!

 

Mas... não morreste, não, condor brasileiro,

Que nunca morrerão teus puros versos!

Não, não morreste, que não morrem Goethes,

Não morrem Dantes, Lamartines, Tassos,

Garrets, Camões, Gonçalves Dias, Miltons,

Azevedos e Abreus. Teus belos cantos

Cortarão as caliginas das idades

Como de Homero os divinais poemas!

 

E lá da eternidade onde repousas,

Acolhe o canto meu que o pranto orvalha!...

 

 

A. CARLOS GOMES

(no álbum do maestro)

 

N’harpa estalada ao dedilhar primeiro

Não acho um canto para erguer-te ao mundo!

Não acho uma asa para erguer-me a ti!

Teixeira de Mello.

 

Nas ondas de aplausos que rolam-te às plantas

Mil anjos em flux,

Derramam-te n'alma delícias bem santas!

Circundam-te a fronte que altiva levantas

Coroas de luz!

 

A glória envolveu-te na faixa fulgente,

De puro esplendor,

No seio aqueceu-te, mostrou-te contente

A senda bordada de louro virente,

De prantos sem dor.

 

O gênio brilhou-te na testa inspirada

Com vivos clarões;

A pátria escutou-te sorrindo enlevada;

A fama cantando na tuba dourada,

Levou-te às nações!

 

E em meio de chuvas de louros, de rosas,

Surgiu — Guarani. —

O céu recamado de auroras formosas,

As auras, as flores, as nuvens mimosas

Sorriram-se aqui.

 

Avante! E se longe da pátria encontrares

Mimoso louvor;

Descantem teus lábios à luz dos luares,

Saudades das filhas dos pátrios palmares,

Dos anjos de amor!

 

 

VISÃO

 

À HELENA KISCHER

 

Esperança... e o símbolo do faturo,

o caminho incessante para o saber,

para a riqueza, para o céu.

Jácome de Campos.

 

Uma noite em que a febre da vigília

Escaldava-me o crânio e a fantasia,

Das regiões da luz e da harmonia

Eu vi baixar uma gentil visão;

Tinha na fronte ebúrnea, em vez de pâmpanos,

Grinalda de virgíneas tuberosas,

E trazia nas alvas mãos mimosas

O sagrado penhor da redenção.

 

E perguntei: - Quem és, arcanjo fulgido,

Que vens iluminar-me a noite escura?

Quem és, tu que derramas a frescura

No pudibundo cálice da flor?...

Serás acaso a ondina teotônica

Envolta das espumas no sudário?

Serás um raio vindo do Calvário

Para trazer-me vida e crença, e amor?...

 

"Vida... Não tentes, querubim empírico,

Reanimar a chama extinta hoje!

Sinto que o círio da razão me foge

Da treva eterna no assombroso mar!

Crença... Em vão a pedi com longas lágrimas!

Em vão a clama meu sofrer profundo,

Como clamava Goethe moribundo

Luz! Às sombras silentes de Weimar!...

 

Amor... Límpido aljôfar que das pálpebras

De Cristo rola fecundando o solo!

Amor... Suave bálsamo, consolo

Que implora a humanidade ao pé da cruz!...

Oh! Sim, aponta-me a miragem cândida

Que mostra ao crente o paraíso aberto;

Estrela de Israel, que do deserto

Aos braços da Vitória nos conduz!...

 

Mas quem és, tu que vens erguer do pélago

A aurora funeral de meu futuro?

Fala! Quem és, que um ósculo tão puro

Depões em minha fronte de mulher?!"

"Sou a Esperança, disse; em minha túnica

Brilha serena a lágrima do aflito;

Tenho um sólio no seio do infinito,

E banha-me o clarão do rosicler!

 

Abre-me o coração pleno de angústias,

Conforto encontrarás em meu regaço;

Criarei para ti mundos no espaço

Onde segredo amor aura sutil!

Onde em lagos azuis de areias áureas

Se embalem redivivas tuas crenças,

E à meiga sombra das lianas densas

Vibres cismando as notas do arrabil."

 

"Curvo-me, ó anjo, a teu acento plácido:

Já nem me punge tanto o sofrimento!

Sinto em meu peito o divinal alento

Que verte na alma teu cerúleo olhar!

A meus olhos se rasga atro sudário,

Fito o incerto porvir mais calma e forte:

Já tenho forças pra lutar com a sorte

E voto a minha lira em teu altar!"

 

 

A FESTA DE S. JOÃO

RECORDAÇÃO DA FAZENDA ESPERANÇA

 

À EXMA. SRA.

D. MARIANNA CÂNDIDA DE M. FRANÇA

 

I

 

Ó noite plena de celeste encanto,

Fonte sagrada de abusões suaves,

Deixa que eu prenda a teu cendal meu canto;

Deixa que eu libe teus harpejos graves,

Ó noite plena de celeste encanto!

Quando do empíreo te debruças linda

Que doce paz no coração entornas!

Com a flor mimosa da saudade infinda

O peito enfermo do proscrito adornas,

Quando do empíreo te debruças linda!

 

De teu bafejo ao perfumoso afago

O cacto abre a virginal corola

E a ondina paira sobre o azul do lago!

Da brisa o treno no infinito rola

De teu bafejo ao perfumoso afago!

E tudo, tudo quanto vive ama

Bebendo as lendas que teu manto espalha;

De Vênus brinca a vaporosa flama

Com o facho humilde do casal de palha,

E tudo, tudo quanto vive ama!

 

Em derredor de uma fogueira ardente,

Qual tribo inquieta de falenas loucas,

Dançam moças sobre a gleba algente;

E o riso entreabre coralíneas bocas

Em derredor de uma fogueira ardente.!

No chão resvalam como orvalho de ouro

Fátuas centelhas recortando o espaço;

Da laranjeira o doce fruto louro

Da luz cedendo ao languescido abraço,

No chão resvala como orvalho de ouro!

 

Corre o tambor a extravagante escala

Seguindo o canto que murmura o escravo;

Negra crioula a castanhola estala,

E à voz robusta que levanta um — bravo!

Corre o tambor a extravagante escala.

Ó noite plena de celeste encanto,

Fonte sagrada de abusões suaves,

Deixa que eu prenda a teu cendal meu canto

Deixa que eu libe teus harpejos graves,

Ó noite plena de celeste encanto!

 

II

 

Rasgou-se a faixa noturna

Que a natureza envolvia,

E a aurora rubra derrama

Torrentes de poesia;

Das cascatas, da floresta

Ergue-se um hino de festa

Nas harpas da viração;

E o sol — Vesúvio sublime —

Nos crânios vastos imprime

A lava da inspiração!

 

Erguendo ao Senhor hosanas,

Curva-se no altar o levita,

E a bênção concede à turba

Que genuflexa palpita.

Da fé, à chama divina,

Cada cabeça s'inclina

Banhada de etérea luz;

De cada lábio rubente

A prece voa fervente

Ungindo o pé da cruz!

 

A criancinha dileta

Rindo recebe o batismo

E isenta de culpas, entra

No templo do cristianismo!

A celeste unção é gládio

Que vence o crime, paládio

Contra a heresia infernal;

Abate as seitas erguidas

E leva as almas rendidas

À pátria celestial!

 

Sim! quando em berço de infante —

Ninho de crenças mimosas —

Onde o amor brota em ondas,

Onde rebentam mil rosas,

Resvala a gota sagrada

Que verte na fronte amada

A luz das constelações,

O povo abraça a esperança

E a Deus eleva a criança

Nas asas das saudações!...

 

Por isso da celeste estância

Num raio de caridade

À terra baixou radioso

O anjo da liberdade;

Que a fortes pulsos escuros

Unindo seus lábios puros

Partiu um grilhão atroz;

E de infelizes escravos

Fez talvez dez homens bravos,

Talvez dez outros heróis!

 

Oh! bendita a mão femínea

Que o empíreo entreabre ao precito,

Que ao cego aponta um caminho,

E à pátria leva o proscrito!...

Oh! bendita a mãe formosa

Que, olhando o filho ditosa,

Manda o cadáver viver!

A oração do liberto,

Subindo no vento incerto,

Faz o céu graças chover!

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

III

 

É noite, é noite de magia e enleio!

Buscando asilo em palpitante seio

Voa o pólen da flor!

Do ar sereno as vibrações eólias

Perfumam-se nas alvas magnólias,

Que languescem de amor!

 

Na sala festiva pelas janelas

Céleres rolam catadupas belas

De fulgidos clarões;

Vênus surpreende, da azulada esfera,

Um raio de langor verte severa

Por entre as cerrações.

 

Os perfumes sutis causam vertigens;

Transborda de fulgor o olhar das virgens,

Da madona ideal;

Como a planta a boiar sobre a corrente,

Adeja do mancebo o sonho ardente

Num colo de vestal!

 

E cada riso anima uma esperança!

Aos sons da tentadora contradança

Esquece-se o sofrer...

O hálito da bela o ar aroma,

E o rubor que na face nívea assoma

Traz íntimo prazer.

 

Dos lábios de uma loura formosura,

Enchendo o espaço de harmonia pura,

Desata-se a canção:

Para ouvir-lhe a fala maviosa, a lua

Que no páramo intérmino flutua

Penetra no salão!...

 

Canta, canta, formosa peregrina,

Que a tua melancólica cavatina

Acalma anseios meus!

O mundo é vário, pérfido oceano...

Quando o deixares, cisne soberano,

Gorjearás nos céus!

 

O turbilhão da valsa o moço arrasta,

E à tez rubente da donzela engasta

A baga de suor...

Só eu, meio à turba que doudeja,

Sou como a Esfinge que o Atbára beija

Sem vida... sem calor...

 

Ó noite divinal, plena de odores,

Que estendes sobre a terra um véu de flores

Abertas ao luar,

Verteste em meu sombrio pensamento

O orvalho sideral do esquecimento!

Oh! deixa-me te amar!...

 

 

RECORDAÇÃO

 

À ADELAIDE LUZ

 

...........que distância

Não vai d’hoje àqueles dias

De nossa risonha infância!

TEÓFILO BRAGA.

 

Lembras-te ainda, Adelaide,

De nossa infância querida?

D’aquele tempo ditoso,

D’aquele sol tão formoso

Que dava encantos à vida?

 

Eu era como a florinha

Desabrochando medrosa;

Tu, alva açucena do vale,

Entreabrias em teu caule

Da aurora à luz d’ouro e rosa.

 

Nosso céu não tinha nuvens

Nem uma aurora fugia,

Nem uma ondina rolava,

Nem uma aragem passava

Que não desse uma alegria!

 

Tu me contavas teus sonhos

De pureza imaculada;

Dilúvios de poesia,

Trenos de maga harmonia...

Eras sibila inspirada!...

 

E a nossos seres repletos

Desse amor que não fenece,

Como sorria a existência!

Quanto voto de inocência

Levava ao céu nossa prece!

 

Hoje que apenas cintila

Ao longe a estrela da vida,

Venho triste recordar-te

Esse passado, abraçar-te,

Minha Adelaide querida!

 

 

O SACERDOTE

 

AO REVM. SR. VIGÁRIO

FELIPPE JOSE CORRÊA DE MELLO

 

C’est un ange venu sur la terre ou nous sommes,

C’est l’homme presque Dieu consolant d’autres hommes.

Guiraud

 

Ente sagrado que sereno calcas

Os bravos cardos do terreno horto,

Erguendo os fracos que chorando prostram-se,

Entre a miséria a derramar conforto;

Dizei, que arcanjo te sustenta, oculto,

Do mundo falso sobre as cruéis paixões?

Quem deu-te a crença que a sorrir espalhas

Às multidões?

 

Quem deu-te aos olhos a celeste chama

Que alenta a vida e purifica a alma,

E o lábio ungiu-te do melífluo verbo

Que tanta ardência, tanta sede acalma?...

Símbolo do Cristo, tu entornas bálsamos

Do peito aflito sobre o chão revel;

Quanta nobreza não disfarça avaro

Negro burel!

 

Teu doce império se revela exímio

Onde do déspota o poder falece,

Ao céu teu ser em sacrifício sobe

Nas brancas asas da singela prece.

Banha-se o crente, a teu suave acento,

Nas ondas loiras da caudal da fé;

Caem por terra mil errôneas seitas

Ontem de pé!

 

O braço inerme protetor estendes

Da virgem pura à candidez sublime,

Enquanto ao seio piedoso apertas

O réu, remido do negror do crime!

Após teus passos vão seguindo as bênçãos

Do pobre enfermo que estendeu-te a mão;

Ao ímpio mesmo que blasfema, atiras

Doce perdão!

 

E quando exausto, para o vil patíbulo,

Caminha um homem que a justiça esmaga,

Sustendo a fronte que o terror desvaira

Ainda lhe mostras a sideral plaga:

Contrito escuta o condenado a lenda

Das longas dores que sofreu Jesus,

E quando pende-lhe a cabeça, expira

Beijando a Cruz!

 

Prossegue sempre nessa trilha augusta;

Para onde adeja a funeral desgraça!

Mas não te afastes dos festivos grupos,

Quebra-se em breve do prazer a taça!

Se o frio cético ao rolar no abismo

Fitar sombrios os tristes olhos teus,

Verá rasgar-se do sepulcro as sombras,

Julgar-te-á Deus!...

 

Tais são, ó mártir de uma ideia, as luzes

Que opões à treva tumular do mundo;

Ai! nunca invejes o bulício inglório

Das loucas turbas no labor profundo!

Embora o gênio da desdita envolva

Nosso destino em funerário véu,

Por entre os prantos te veremos sempre

Próximo ao céu!...

 

 

AMOR DE VIOLETA

 

As violetas são os serenos pensamentos, que o mistério e a solidão despertam na alma verdejante da esplêndida primavera.

Luiz Guimarães Junior.

 

Esquiva aos lábios lúbricos

Da louca borboleta,

Na sombra da campina isolada, formosíssima

Vivia a violeta.

 

Mas uma virgem cândida

Um dia ante ela passa,

E vai colher mais longe uma faceira haste alva

Que à loira trança enlaça.

 

"Ai! geme a flor ignota:

Se pela cor brilhante

Que tinge a linda rosa, a tinta melancólica

Trocasse um só instante;

 

Como sentira, ébria

De amor, de mando enleio,

Do coração virginal as pulsações precípites,

Unida ao casto seio!"

 

Dardeja a criança pálida

Na relva perfumosa,

E a meiga violeta ao pé mimoso e célere

Esmaga caprichosa.

 

Curvando a fronte exânime

Soluça a flor singela:

"Ah! como sou feliz! Perfumo a planta eburnéa

Da minha virgem bela!..."

 

 

O AFRICANO E O POETA

 

AO DR. CELSO DE MAGALHÃES

 

Les esclaves.  .  .  .  .  Est-ce qu’ils ont des dieux?

Est-ce qu’ils ont des fils, eux qui n’ont point d’aïeux?

Lamartine

 

No canto tristonho

De pobre cativo

Que elevo furtivo,

Da lua ao clarão;

Na lágrima ardente

Que escalda-me o rosto,

De imenso desgosto

Silente expressão;

Quem pensa?—O poeta

Que os carmes sentidos

Concerta aos gemidos

De seu coração.

 

— Deixei menino

Meu pátrio valado,

Meu ninho embalado

Da Líbia no ardor;

Mas esta saudade

Que em túmido anseio

Lacera-me o seio

Sulcado de dor,

Quem sente?—O poeta

Que o Elísio descerra;

Que vive na terra

De místico amor!

 

— Roubaram-me feros

Aos férvidos braços:

Em rígidos laços

Sulquei vasto mar;

Mas este queixume

Do triste mendigo,

Sem pai, sem abrigo,

Quem quer escutar?...

— Quem quer? O poeta

Que os térreos mistérios

Aos pássaros sérios

Deseja elevar.

 

— Mais tarde entre as brenhas

Lutei mil searas

Com as bagas amargas

Do pranto cruel;

Das matas caíram

Cem troncos, mil galhos;

Mas esses trabalhos

Do braço novel,

Quem vê? — O poeta

Que expira em harpejos

Aos lúgubres beijos

Da fome cruel!

 

— Depois, o castigo

Cruento, maldito,

Caiu no proscrito

Que o simum queimou;

Coberto de chagas,

Sem lar, sem amigos,

Só tendo inimigos...

Quem há como eu sou?!...

— Quem há?... O poeta

Que a chama divina

Que o orbe ilumina

Na fronte encerrou!...

 

— Meu Deus! ao precito

Sem crenças na vida,

Sem pátria querida,

Só resta tombar!

Mas... quem uma prece

Na campa do escravo

Que outrora foi bravo

Triste há de rezar?!...

— Quem há de?... O poeta

Que a lousa obscura,

Com lágrima pura

Vai sempre orvalhar!?

 

 

SADNESS

 

Still visit thus my nights, for you reserved.

And mount my scaring soul to thoughts like yours.

James Thomson.

 

Meu anjo inspirador não tem nas faces

As tintas coralíneas da manhã;

Nem tem nos lábios as canções vivazes

Da cabocla pagã!

 

Não lhe pesa na fronte deslumbrante

Coroa de esplendor e maravilhas,

Nem rouba ao nevoeiro flutuante

As níveas mantilhas.

 

Meu anjo inspirador é frio e triste

Como o sol que enrubesce o céu polar;

Traz-lhe o semblante pálido - do antiste

O acerbo meditar!

 

Traz na cabeça estigma de saudades,

Tem no lânguido olhar a morbidez;

Veste a clâmide eril das tempestades,

E chama-se - Tristeza!...

 

 

O BAILE

 

Esta fingida alegria,

Esta ventura que mente,

Que será delas ao romper do dia?...

Gonçalves Dias.

 

A noite desce lenta e cheia de magia;

A multidão febril do templo da alegria,

Invade as vastas salas.

O mármore, o cristal, a seda e os esplendores,

Do manacá despertam os mágicos olores,

A languidez das falas.

 

Ao rutilar das luzes as dálias desfalece…

Roçando o pó as vestes das virgens se enegrece,

Enturva-se a brancura…

O ar vacila tépido… a música divina

Semelha o suspirar de uma harpa peregrina…

É a hora da loucura!

 

Pela janela aberta por onde o baile entorna

No éter transparente a vaga tíbia e morna

Do hálito ruidoso,

Da vida as amarguras espreitam convulsivas

O leve esvoaçar das frases fugitivas…

O estremecer do gozo!…

 

E tudo se inebria: o lampejar de um riso

Acende n’alma a luz gentil do paraíso,

Arranca a jura ardente!

E mariposa incauta, em súbita vertigem,

Arroja-se a mulher crestando o seio virgem

Na pira incandescente!

 

Aqui, na nitidez de um colo a coma escura

Se espraia em mil anéis, enlaça a fronte pura

Auréola de rosas;

Da valsa ao giro insano, volita pelo espaço

Do cinto estreito, aéreo, o delicado laço,

As gazes vaporosas.

 

Ali, na meiga sombra indiferente a tudo,

Imerso em doce cisma um colo de veludo

Ondula deslumbrante:

Que fogo oculto, ignoto, em suas fibras vaza

Vivido ardor que faz tremer-lhe a nívea asa

De garça agonizante?…

 

Além, meus olhos tímidos contemplam com tristeza

As penas da mulher, dessa — ave de beleza —

Calcadas sem piedade!…

Esparsas pelo solo as laceradas rendas…

As flores já sem viço… abandonadas lendas

Da louca mocidade!

 

A festa chega ao termo; a harmonia expira;

A luz na convulsão final langue se estira

Pelo salão deserto;

Há pouco — o doudejar da multidão festante,

Agora — o empalidecer da chama vacilante,

Ao rosicler incerto!

 

Depois — a razão fria contando instantes ledos

De castos devaneios, de juramentos tredos

Ouvidos sem receio…

Num corpo languescido o espírito agitado…

E a febre da vigília ao doloroso estado

Ligando vago anseio…

 

A vida é isto: hoje cruel grilhão de ferro;

Talvez d’ouro amanhã, mas sempre a dor, o erro,

Aniquilando o gênio!

Passado — áureo friso num mar de indiferença,

Presente — eterna farsa universal, suspensa

Do mundo no proscênio!

 

 

FANTASIA

 

À BRANDINA MAlA

 

A emanation it is of rainbow:

— All beauty and peace...

Byron.

 

É bela a cecém do vale

Quando desponta mimosa,

Sobre o caule, melindrosa,

Ao rutilar do arrebol;

Quando a gota etérea e pura

Que chora o céu sobre a terra,

O lindo seio descerra

Aos frouxos raios do sol.

 

É bela a meiga criança

Sorrindo à luz da existência,

Com a alma — toda inocência,

E a face — todo rubor!

Os róseos lábios ungidos

Por mil acentos — suaves

Como o gorjeio das aves,

Como um suspiro de amor!...

 

Des’brocha o lírio, mais alvo

Que o tênue floco de neve;

A viração fresca e leve

Lhe oscula as pétalas — f’liz;

Ternos carmes lhe murmura

A namorada corrente,

Que se deriva indolente

Por sobre o flóreo tapiz.

 

Assim a virgem formosa

Torna-se mais sedutora,

Quando a poesia enflora

Sua beldade ideal!

Quando no brilho fulgente

Dos olhos vividos, belos,

Sua alma ardente de anelos

Mostra candor divinal!

 

Então, se a fita a miséria

Sente no seio a esperança;

A um seu sorriso a criança

Ligeira tenta sorrir;

Aos lábios — casto delírio

Implora a audaz borboleta;

O mesmo altivo poeta

Pede-lhe um raio de amor!

 

E tudo, tudo o que a cerca

De medrosos juramentos,

Vê, nos vagos pensamentos

A candidez que seduz!

E tudo, tudo o que sofre

Vê que, à imagem de Maria,

A virgem — flor de poesia —

Deus fez repleta de luz!

 

Que o Senhor a ti, ó virgem,

— Símbolo de amor e candura —

Poupe a taça da amargura

Que a meu lábio não poupou!

Que se desdobre nitente

A fita de tua vida,

De tantos sonhos tecida

Quantos o céu me negou!

 

 

JÚLIA E AUGUSTA

 

Quanto há no mundo de ilusões fagueiras,

De perfume e de amor, guardam no peito;

Quanto há de luz no céu mostram nos olhos,

Quanto há de belo na alma.

Gonçalves Dias.

 

São duas rosas se expandindo rúbidas

No brando caule com suave encanto;

São duas nuvens deslisando túmidas

Do campo aéreo no azulado manto.

 

São duas ondas marulhosas, flácidas,

Que o tíbio sopro do favônio frisa;

São duas conchas deslumbrantes, nítidas,

Do mar na praia refulgente e lisa.

 

São duas auras, perfumosas, tépidas,

Beijando as pétalas de uma flor pendida;

São duas rolas resvalando tímidas

No dorso curvo do escarcéu da vida.

 

Duas auroras ressurgindo límpidas

Por entre as trevas que a tormenta encerra;

Graças libradas sobre o espaço, fúlgidas,

À cuja sombra se conchega a terra!

 

Uma — os rutilos das pupilas vívidas

Vela nos prantos de gentil ternura;

Na cor mimosa da Moema indígena

Concentra o ardor da tropical natura.

 

Outra, revela nos olhares lânguidos

Toda a pureza da celeste estância;

À tez formada de açucenas úmidas

Rouba o outono a festival fragrância!

 

Ambas — cingidas de virgínea auréola

Firmes caminham na escabrosa trilha!

Feliz daquele que sorvesse em ósculos

O afeto imenso que em seus olhos brilha.

 

 

NOTURNO

 

Oh! quelle joie dans la fraicheur de cette belle nuit d'été ! Comme on sent dans le calme ici tout ce qui rend l’âme heureuse !

GOETHE.

 

Languesce a calma ardente:

Nos ares, levemente,

Desdobra-se tremente

Da noite a coma escura;

Do zéfiro o adejo

Envolve em longo beijo

O símbolo do pejo,

— A rosa da espessura.

 

A límpida marulhosa

Dolente, langorosa,

Estende-se chorosa

Num leito de luar;

Além um canto soa,

Por sobre a espuma voa

Ligeira, uma canoa

Cortando o azul do mar.

 

Do espaço eis a princesa:

Na gélida beleza

Que doce morbidez,

Que angústia calma e funda!

E cada flor nevada

Que dobra-se queimada

Na haste recurvada,

Com a branca luz inunda!

 

Planetas fulgurantes

Se velam, por instantes,

Nas rendas flutuantes

Das nuvens de algodão;

Sacode a noite o manto,

Na terra chove pranto...

Que vaporoso encanto

Embala a criação!...

 

O Elísio tem fulgores,

A terra orvalho, flores,

E místicos amores

Que velam descuidados;

Mas, ah! quanto lamento

Não sobe tardo, lento,

Na voz do sofrimento,

No — ai — dos desgraçados?

 

Ao mísero infeliz

Envia, ó Deus piedoso,

Um raio esperançoso

Que abrande a intensa dor!

Na vaga que delira,

No euro que suspira,

Na casta e santa pira

Lhe infunde teu amor!

 

 

A ROSA

 

Que impia mão te ceifou no ardor da sesta

Rosa de amor, rosa purpúrea e bela ?

Almeida Garrett.

 

Um dia em que perdida nas trevas da existência

Sem risos festivais, sem crenças de futuro,

Tentava do passado entrar no templo escuro,

Fitando a torva aurora de minha adolescência.

 

Volvi meu passo incerto à solidão do campo,

Lá onde não penetra o estrepitar do mundo;

Lá onde doira a luz o báratro profundo,

E a pálida lanterna acende o pirilampo.

 

E vi airosa erguer-se, por sobre a mole alfombra,

De uma roseira agreste a mais brilhante filha!

De púrpura e perfumes - a ignota maravilha,

Sentindo-se formosa, fugia à meiga sombra!

 

Ai, louca! Procurando o sol que abrasa tudo

Grácil se desatava à beira do caminho;

E o sol, ébrio de amor, no férvido carinho

Crestava-lhe o matiz do colo de veludo!

 

A flor dizia exausta à viração perdida:

"Ah! minha doce amiga abranda o ardor do raio!

Não vês? Jovem e bela eu sinto que desmaio

E em breve rolarei no solo já sem vida!

 

"Ao casto peito uni a abelha em mil delírios

Sedenta de esplendor, vaidosa de meu brilho;

E agora em vão invejo o viço do junquilho,

E agora em vão imploro a candidez dos lírios!

 

"Só me resta morrer! Ditosa a borboleta

Que agita as áureas asas e paira sobre a fonte;

Na onda perfumosa embebe a linda fronte

E goza almo frescor na balsa predileta!"

 

E a viração passou. E a flor abandonada

Ao sol tentou velar a face amortecida;

Mas do cálice gentil a pétala ressequida

Sobre a espiral de odores rolou no pó da estrada!

 

Assim da juventude se rasga o flóreo véu

E do talento a estátua no pedestal vacila;

Assim da mente esvai-se a ideia que cintila

E apenas resta ao crente — extremo asilo — o céu!

 

 

AVE-MARIA

 

SOBRE UMA PÁGINA DE LAMARTINE

 

Ma l’aere imbruna, e il bronzo della sera

C’invita alla preghiera.

Il Guarany.

 

O rei do dia vacilante, incerto,

Abandona seu carro de vitória,

E reclinado em rúbida alcatifa

Adormece no tálamo da glória!

A cortina de nuvens cambiantes

Guarda o róseo vestígio de seus passos;

À imensidão em luz, a terra em sombra,

Prendem milhares de púrpuros laços!

 

Como esplêndida lâmpada de ouro

Do crepúsculo suspensa à fronte nua,

Ondula lá na fímbria do horizonte

De palor ideal cingida — a lua!

A catadupa flácida dos raios

Repousa sonolenta sobre a relva,

E o negro véu que cai sobre a campina

Mais densa torna a negridão da selva!

 

A natureza envolve-se nesta hora

Em faixas siderais de poesia,

Vendo sumir-se o resplendor divino,

Vendo cair da noite a lousa fria!

E murmurando a colossal estrofe

De um poema de célica linguagem,

Ao Criador que o sol formou da treva

Oferece a magnífica homenagem!

 

Eis o imenso holocausto do universo

Da terra a vastidão tendo por — ara!

Por dossel — a safira do infinito!

Por círio — os mundos que o Senhor aclara!

Os flocos purpurinos que vagueiam

Na planície do ar, do poente à aurora,

São colunas de incenso que embalsamam

Os pés do Deus que a natureza adora!...

 

Porém é mudo o gigantesco templo!

Do céu é mudo o manto peregrino!

Donde rebenta o celestial concerto?

Donde se eleva o sacrossanto hino?

No harmônico remanso só escuto

Pulsar meu coração, ora ofegante...

A voz augusta é nossa inteligência

Que no éter flutua irradiante!...

 

Nos rubores da tarde que agoniza,

Sobre as asas balsâmicas do vento,

Nosso ser, sobranceiro à térrea urna,

— Sutil essência — sobe ao firmamento!

E prestando uma fala a cada ente,

Trépido eflúvio a cada flor rasteira,

— Ave de amor — para a serena súplica

Com seus hinos desperta a terra inteira!

 

Os páramos silentes do deserto

Parecem escutar a voz do Eterno!

As multidões contritas buscam ávidas

Um só fulgor de seu olhar paterno!

E Aquele que ouve os salmos das esferas,

Que contempla perene a luz do dia,

Neste instante solene, ao som dos sinos,

Faz subir uma prece — Ave-Maria!

 

 

 

OS DOIS TROFÉUS

VICTOR HUGO

 

Tem visto, ó povo, esta época

Teus trabalhos sobre-humanos,

Viu-te altivo ante os tiranos

Calcar a Europa assombrada;

Criando tronos hercúleos,

Despedaçando áureos cetros,

Das coroas - vis espectros -

Mostraste o potente nada!

 

Em cada passo titânico

Semeavas mil ideias;

Marchavas: iam-se as peias

Que o torvo orbe prendiam;

Tuas falanges incólumes

Eram vagas do progresso:

Transbordadas de arremesso

De cimo a cimo erguiam!

 

Vias a deusa da glória

Cingir-te a fronte de louros;

Derramavam-se tesouros

De luz, por onde passavas!

E a Revolução flamígera

Arremessava à Alemanha

Danton; a quem, sobre a Espanha

Com Voltaire triunfavas!

 

Como ante os filhos da Hélade,

Curvou-se o mundo aos franceses;

Soberbo em frente aos reveses,

O crime caiu-te às plantas!

As trevas da Idade Média,

A pira do Santo Ofício,

O inferno, o erro e o vício,

Com um lampejo quebrantas!

 

De teus esplendores límpidos

Estava a terra juncada;

Fugia a noite assustada

Ao reboar de teus passos!

Enquanto a senda estelífera

Trilhavas, ébrio de crenças,

Da história as folhas imensas

Prendiam-te entre seus laços!

 

Cem vezes pairando impávido

Nos campos que o sol descerra,

Curvaste a face da terra

A um teu aceno arrogante;

Do Tejo, do Elba a vitória

Ao Nilo, ao Ad’ge corria,

E o povo titã jungia

O mesmo chefe gigante.

 

E os dois monumentos típicos

Dali surgiram um dia:

A coluna - ingente e fria,

O arco - poema ousado!

Ambos, ó povo, são símbolos

De teu poder infinito:

Um talhado de granito,

Outro de bronze amassado!

 

São dois fantasmas terríficos

Dos passados esplendores;

Doutra idade vingadores

Se os vê, a Europa estremece!

Por eles velando túmido

Nosso amor, sempre sombrio,

Nas almas acende o brio

Quando o vigor lhe falece!

 

Se nos ultrajam estólidos

Ei-los aí, testemunhos,

Do valor de nossos punhos,

Nos acenando à vingança:

No metal, no altivo mármore,

Tentamos dos veteranos

Ver os sábios, livres planos,

A nobre perseverança.

 

Na hora da queda horrenda

Mais vivo o orgulho cintila;

Aumenta a palma que oscila

O refulgir dos troféus;

As almas no fogo vívido

Acendem a sacra chama,

E o povo em luto brama

No estrugir dos escarcéus!

 

Outrora a falange célere

Passava em pleno lampejo;

Como um cavo, longo arpejo

Rolava o trovão nos montes!

Desses peitos magnânimos

Que resta? O trabalho ingente

Que à mocidade indolente

Mostra os negros horizontes!

 

As raças de hoje, mais pálidas

Que os finados de outras eras,

Dessas virtudes austeras

Nem mesmo a imagem possuem!

E se eles tremem nos túmulos,

É teu alvião que soa,

Tua bomba que reboa

Contra os portentos que aluem.

 

* * *

 

Horríveis dias são próximos,

Que sinais aterradores!

Clamam — "Bastai!" — os pensadores

Como Lear à procela!

Não pode morrer um século

Sem que um outro além desponte;

Do porvir — no germe insonte —

Quem ousa manchar a tela?

 

Oh, vertigem! Paris fúlgida

Nem sabe quem mais a esmaga!

Se um poder que tudo estraga,

Se outro que tudo fulmina!

Assim lá no Saara tórrido

Lutam contrárias tormentas,

Vibrando às ondas poentes

Do raio a chama divina!

 

Erram, ó povo, esses abismos!

O firmamento que freme,

O rijo solo que treme,

Conjuntamente censuro!

Esses poderes coléricos

Cuja sanha cresce ignara,

Um tem a lei que o ampara,

Outro o direito e o futuro!

 

Tem Versalhes — a paróquia,

Paris ostenta — a comuna;

Mas, além dessa coluna

Desata a França seu manto!

Quando devem verter lágrimas

É justo que se devorem,

Sem que a desdita deplorem,

Sem que vertam negro pranto?!

 

Fratricidas! Gemem férvidos

Canhões, morteiros, metralha;

Além o vândalo espalha

Do inferno as fúrias vis!

Aqui, campina Caríbdis,

Lá, Cila avulta arrojada!

De teu fulgor ofuscado,

Ó povo, vão-se os loureis!

 

Ai! nestes tempos infaustos

Em que inglórios vivemos,

Dois fortes domínios vemos

Estranhamente rivais!

Um toma o arco mármoreo,

Outro a pilastra imponente;

E o malho, e o obus fremente

Tornam-se forcas fatais!

 

Mas, vede: é a França exânime

Que esses colossos sustentam!

Nosso valor representam

Embora aí Bonaparte!

Sim, franceses, se frenéticos

Derrubamos essa herança,

Que restará da provança?

Onde as honras do estandarte?!

 

Se o senhor condena indômito,

Mais forte o povo aparece;

Nobre a Esparta resplandece

Através do despotismo!

Abatei de um golpe a árvore,

Mas respeitai a floresta:

Quando chora a pátria mesta

Mais belo fulge o heroísmo!

 

E tantas almas intrépidas

Nas espirais balouçadas,

Enchem naus almirantadas,

Fossos, paióis e campinas;

Franqueiam muralhas sólidas,

Longas pontes, torres altas,

Saudando o porvir que assaltas

Com mil armas peregrinas.

 

Em vez de César grandíloquo

Colocai, justiça, Roma;

Ver-se-á que vulto assoma

Nesse cimo sobranceiro!

Condensai nesta pirâmide

A turba infrene, compacta;

Que o direito a estátua abata

Do assombro do mundo inteiro!

 

E que este gigante estrênuo

O — Povo — aclarando a estrada,

Tenha na mão uma espada,

De auroras cingido o busto;

Respeito ao soldado árbitro!

A seus pés o ódio expira!

Do vingador da mentira

Nada iguala o talhe augusto!

 

Surge — Oitenta e Nove — atlético

Ganhando vinte batalhas!

Marselhesa, és tu que espalhas

Medo e assombro à velha idade!

Se o granito aqui ostenta-se,

O bronze avulta em rugidos,

E dos troféus reunidos

Salta um grito: — Liberdade!

 

* * *

 

Quê! Com nossas mãos alígeras

Da pátria o seio rasgamos,

E o duplo altar laceramos

Pelos teutões invejado!

Pois quê! Nos padrões egrégios

A multidão delirante

Ceva a clava flamejante,

Agita o facho abrasado!

 

É aos nossos golpes válidos

Que a franca glória vacila;

Seus louros virgens mutila

Nossa maça ensanguentada!

E sempre a esfinge da Prússia!

Que horror! A quem foi vendida,

Ai! pobre pátria perdida,

Tua invencível espada?...

 

Sim! foi por ela que inânime

De Ham o nome caíra;

Ante a Reischoffen expira

De Wagram o grito ovante!

Riscado Marengo inclito,

Waterloo apenas resta...

E sob a folha funesta

Rasga-se a lenda brilhante!

 

Uma bandeira teutônica

Enluta nosso horizonte;

Sedan enegrece a fronte

Que a Austerlitz deu renome!

Vergonha! A rajada freme

É Mac-Mahon que vibra;

Forbach a Iena equilibra,

E o fogo as glórias consome!

 

Onde os Bicêtres, ó Gália?

Os Charentons denodados?

Dormem os grandes soldados

Em teu leito de Procusto.

De Coburgo, de Brunópolis,

Onde estão os vencedores

Com seus sabres vingadores,

Correndo areais adustos?

 

Rasgar da história uma página

Não é um crime inaudito?

Não será negro delito

Manchar vultos que tombaram?

Sufocar a voz dos mártires

Que nunca clamaram — basta —

E sempre de fronte casta

Papas e reis cativaram?

 

* * *

 

Ai! após tantas misérias

Mais este golpe cruento!

Este delírio sedento

Que na paz mesmo abre chagas!

E tantos combates trágicos!

Com Estrasburgo queimada,

Com Paris atraiçoada,

Que valem hoje estas plagas?!

 

Se da Prússia o orgulho frívolo

Vendo seu negro estandarte

Vencedor por toda a parte,

Com Paris a suas plantas,

Nos clamasse: "Quero rápida

A vossa glória obumbrada:

Abaixo a pilastra ousada

Com que aos orbes espantas!

 

Abaixo esse arco insigne —

Emblema do império falso! —

Quero aqui — um cadafalso,

Ali — obuses em linha;

Contra um — fogo mortífero,

Canhão, bombarda, escopeta;

Contra outro — a picareta!

Cumpri: a ordem é minha."

 

Que vulto erguera-se esquálido

Bradando às turbas "soframos"?

Oh! nunca, à morte corramos!

Lutemos, que o insulto é novo!

Que importa mais cruas mágoas?

Que importa um revés de mais?

Curvar-nos? Jamais! Jamais!

— E vós o fizeste, ó povo!

 

 

 

 

FIM

 

 

 

 

NOTAS

 

 

O ITATIAIA

Pátrio ponto culminante.

O Itatiaia, ramo da serra da Mantiqueira, é realmente o ponto culminante do Brasil. Segundo o Dr. Franklin Massena mede 2.994 metros de altitude da raiz até a base das Agulhas Negras, maravilhoso feixe de pilastras de granito que coroa um de seus mais arrojados píncaros.

 

 

VINTE E CINCO DE MARÇO

As duas primeiras estrofes d’esta poesia aludem ao projeto de constituição elaborado pelos membros da constituinte em 1823, no qual todos os grandes princípios da liberdade, eram solenemente reconhecidos.

 

 

A RESENDE

... “Com nobre empenho

Penetrei no sagrado santuário”.

Refiro-me n’estes versos, á ofilcina do nosso eximio pintor, o Dr. Pedro Américo de Figueiredo e Mello. Alli passei agradavelmente algumas horas admirando os mais bellos trabalhos do philosopho-artista.

 

 

RECORDAÇÃO

À Adelaide Luz, à companheira dos folguedos infantis, à moça inteligente e estudiosa em cuja fronte fulgura a tríplice coroa da beleza, do espírito e da bondade, devia eu a minha primeira produção poética. Alterar agora a linguagem íntima e singela desses versos, seria uma profanação.