LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Harpas de fogo, de Côrrea de Araújo
Edição de Base
Biblioteca Virtual Brasileira
ÍNDICE
À GUISA DE PREFÁCIO
Onde míngua o pão material, míngua fatalmente o pão espiritual, disse-me uma vez Manoel de Bethencourt, quando eu, um dia, cheio do entusiasmo pelas coisas da arte, escolhido pelos meus companheiros de estudo, fui convidá-lo para dirigir uma revista literária.
A princípio revoltei-me contra tal proposição que eu ainda não ouvira de ninguém e em que nunca pensara até, proposição duríssima que dadas as más condições políticas que avassalaram a gloriosa Atenas Brasileira, levava de uma vez todos os sonhos que eu tinha e uma porção de sonhos e fantasias de meus companheiros.
Revoltei-me contra ela e com a inexperiência de minha idade, retorqui a asserção do velho mestre dizendo-lhe que a boa vontade, o querer, o trabalho, enfim tudo isso reunido venceria todas as dificuldades que nos antepusessem.
Ele, porém, calmo o paciente, depois de bocejar longamente, desenrolou-me enorme fieira de fatos que me convenceram logo da veracidade de sua asserção.
Falou-me de Américo Azevedo e de Augusto Brito que muito fizeram por si, mas não encontraram quem fizesse alguma coisa por eles. Falou-me de J. Francisco Gronwell, um causeur magnífico, mas que acabou abandonando a imprensa onde deixou saudades, e abstraiu-se na vida comercial. Falou-me do Euclides Farias um humorista sem jaça, um forte que apesar de perseguido politicamente aqui, retirou- se para Belém do Pará, onde continua a dar provas do seu talento. Falou-me do Pacífico Bessa e Baima de Carvalho dois poetas bons que não conseguiram vencer a resistência do meio, completamente ocupado em coisas mais úteis da vida e falou-me ainda de muitos rapazes talentosos, distintos filhos deste torrão abençoado, que morreram na obscuridade porque o trabalho para a subsistência não lhes deixou tempo preciso para se ocuparem seriamente das letras, e de outros que existem ainda desanimados e alquebrados pela idade e pelas privações.
E, no entanto, todos eles iniciaram criações de revistas, que morriam ao nascer ou que pouquíssimo viviam.
Alguns conseguiram publicar livros que nos deixaram como lembrança do que foram. Mas esses livros não se espalharam e os seus nomes não se aureolaram com os aplausos da multidão.
O que o ilustre polemista me disse dos Brittos e dos Bessas, tem-se passado comigo e com os meus companheiros, diferindo apenas no que diz respeito ao existir — até agora nenhum de nós quebrou o cabo da vida. No mais, passo a passo as dificuldades surgem, os embaraços multiplicam-se, e o desânimo lavra feroz o cruento, enervando muitos espíritos bons, enquanto as necessidades da família arrastam outros para fora do campo das ideias.
Depois os que em minha terra se entregam hoje à literatura, já encontram essas histórias tristes dos Aluizios Porto, dos Autas Pereira, histórias que gelam nas veias o sangue bom e vigoroso desses que as conhecem.
Tais são, pois, as causas dessa espécie de paradeiro que teve a literatura maranhense.
Aderbal de Carvalho escrevendo o livro — o Norte Literário em 1895 — notou o marasmo intelectual da terra de João Lisboa, mas não estudou a causa desse marasmo, ou melhor não o quis dizer.
Talvez, fosse nisso que se apoiasse o Sr. Abdias Neves, para dizer num jornaleco que redige em sua terra, que o maranhense de hoje está intoxicado pela degenerescência da coletividade do meio, além de outros disparates equivalentes e semelhantes.
Mas não! Aqui não há degenerescência, podem crer todos os literatos do Brasil! O que realmente há, é falta de meios, uma instrução pública deficiente e uma política complicadíssima que em tudo mete as unhas, ferindo para a direita o para a esquerda, separando elementos que devem estar reunidos, sepultando nas repartições públicas rapazes de mérito real, esfalfando no comércio, almas verdadeiramente grandes.
Aqui não há degenerescência, repito. O Sr. Abdias Neves enganou-se e enganado está também um Sr. Costa que se meteu a falar do nosso viver intelectual.
Na terra de Gonçalves Dias, há uma mocidade viçosa e robusta que felizmente vai compreendendo que deve romper de vez as peias amaríssimas que a prende e afrontar as intempéries constantes e contínuas mias que assaltam esta terra de algum tempo para cá, na maré cheia da infelicidade.
E entre esses moços citarei: Xavier de Carvalho, o autor das Missas Negras, um dos que mais se têm esforçado para o seu levantamento, animando os estudiosos: Ignácio Raposo, o autor das Protophonias; Costa Gomes, o autor das Flores e Frutos e dos Pântanos, livro de versos que saíra brevemente; Frutuoso Ferreira, um velho desditoso que agora se ergue para as lutas; Napoleão Lobão, um lírico de boa água; Otávio Galvão, Leslie Tavares, Leoneio Rodrigues, Vespasiano Ramos, Caetano de Souza, Rodrigues de Assunção, Maranhão Sobrinho, Gomes Filho, Lisboa Filho, Agostinho Reis, B. Vasconcelos, M. George Gronwell, Mendes Viana e entre senhoras, Dd. M. C. Azedo Matos, Laura Rosa, Blandina Santos, Papilon Bleu, esperançosas poetisas que têm nestes últimos anos colaborado em revistas, periódicos e jornais não somente daqui, como de outros Estados do Brasil.
Como se vê, a geração maranhense que hoje brilha no céu azul das artes, une-se outra cheia de esperança e de viço a qual pertence Corrêa de Araujo o jovem autor deste livro de versos que agora prefacio.
Corrêa de Araujo tem apenas dezoito anos. E filho de Pedreiras onde viveu até o ano atrasado. Do ninho materno saiu trazendo um caderno cheio de poesias, como se fossem elas a sua única riqueza. Atirou-se ao comércio de onde o carrancismo estúpido dos patrões, o retirou em breve. Quis estudar e de fato a estudar está metendo ombros e braços contra todos os obstáculos, aliás, poderosíssimos.
Ei-lo surgindo agora com este livro de versos — Harpas de Fogo — que se divido em duas partes, e por onde se vê perfeitamente as duas faces do seu talento robusto, ardente e impetuoso, cheio de grandes ideias e de grandes pensamentos o que às vezes dá lugar a elevadíssimas imagens, que a muita gente hão de parecer desmedidas e incompreensíveis, o que também dá lugar a algum desalinhamento de estilo que sem dúvida provém da ligeireza e afoitez com que o poeta escreve.
Eu, seu colega e companheiro de trabalho, terminando estas ligeiras e despretensiosas linhas, auguro ao jovem poeta, boa recepção e muito valor para continuar a trilha que tão brilhantemente encetou.
NASCIMENTO MORAIS
(Da Renascença Literária)
CORRÊA DE ARAÚJO
Não é um prefácio que vou fazer. Pretendo, apenas, em poucas palavras, dar-lhe a opinião que me pediste sobre teus versos.
Descendente em linha reta, da grande família intelectual dos Cruz e Souza, já és, com os teus 18 anos, uma das figuras mais simpáticas da geração poética atual.
Teu livro é uma joia rara de amor e de sonho, um açafate cheio de rosas triunfantes, de cáctus e de verbenas lânguidas; algumas florzinhas silvestres e desmaiadas que, por ventura, deixaste ficar aqui e ali, não conseguiram desmanchar a harmonia fidalga do conjunto dessas flores pomposas e finas reunidas neste livrinho, pelo contrário, deram-lhe um tom de vida mais pitoresco e garrido.
Não te admires, meu caro poeta, se, amanhã ou depois, surgir um crítico, desses que por ali pululam fazendo época em jornalescos de província, acusando-te de falta de unidade no livro.
E quantos poderão, hoje, jogar com essa poderosa força de concentração dentro de uma obra? A quem quiser encontrar sentimentos estranhos, desencontrados, extraordinários, bastará recorrer às obras de Baudelaire, Huysmans, Verlaine. Achar-lhe dentro singulares misturas: a cinza fria do mais exagerado pessimismo filosófico unido à crença do amanhã da vida, a sensibilidade desenfreada correndo parelhas com a religiosidade a mais histérica e sentimental.
Teu livro é um tanto desigual, mas é bom. E, mais do que isto, é honrado. É honrado, isto é, não precisaste descer a sem vergonhice do plágio, muito em moda hoje, para escrever os famosos versos das Haspas de Fogo, e isto constitui, a meu ver, a maior vitória da tua estreia.
Para dar-te uma ideia da impressão que em meu espírito causou o teu livro — basta dizer que já lhe decorei, sem querer, grande parte das poesias.
Tens defeitos, e quem os não tem, principalmente em tua idade?
Publica os teus versos, não te preocupe com os aplausos, nem com as censuras, que, por ventura, recebas; estuda, lê, inspira-te, aperfeiçoa-te, encerra-te como o grande Heredia, na tua torre ideal de marfim, durante muito e muito tempo, para escrever muito poucas e muito poucas poesias — e conseguirás rutilar no céu da literatura maranhense como um astro de primeira grandeza.
Tens talento para isso e basta!
Abraça-te com entusiasmo o confrade e admirador.
XAVIER DE CARVALHO
(Da Renascença Literatura)
ERRATA
Na página 5, soneto Olha-me, no quarto verso do primeiro quarteto, leia-se: Transfigurada em cantos e gemidos; na página 8 soneto, Eden Perdido, no terceiro verso do primeiro quarteto, leia-se: No caminho onde eu levo a cruz dos pesadelos; na página 28, soneto A viúva, no segundo verso do último terceto, leia-se: E Holophernes já ébrio em sonhos adormece; na página 38, poesia Pirilampos, onde se lê: Prende almas de sonhadores, leia-se: Prendem almas sonhadoras; na poesia O Poeta divina, página 47, leia-se: Que os sec’los ao passar rorazes não carcomem; no soneto Orquestra, página 58, no primeiro verso do último terceto, leia-se: Ai! Orquestra feral de trenos roucos; no soneto O Sonho do Eterno, página 74, terceiro verso do primeiro quarteto, leia-se: Um planeta infinito, onde há anjos, cantando.
Sou cavalheiro o menestrel: chorosas
Notas desfiro no arrabil das doros;
Brando a lança de lendas luminosas,
E a guitarra imortal dos trovadores.
Buscando justas e buscando amores,
Veem-me em sonho todas as formosas,
Com uma harpa de pétalas de flores,
Com uma espada de jasmins e rosas.
Seguerei combatendo destemido,
E quando um dia em chagas escarlates
Entre agonias eu tombar vencido,
Oh! Bando loiro em sonhos absorto!
Ponde este gladio tosco dos combates
Na tumba azul do cavalheiro morto.
Longe de ti — a minha vida, em prantos
Se imerge, e eu gemo como um passarinho,
Tantos dias passados, tantos, tantos,
Sem me banhar na luz do teu carinho!
Longe, no lar — abandonado ninho —
Chamas por mim nos teus gorgeios santos!
Só eu posso mudar em flor o espinho
E as tuas máguas transformar em cantos.
D’antes, na infância, quando me afligia,
Mãe! Tu cantavas e a criança outrora.
Se quietava, se o teu canto ouvia...
Pois bem! Não chores mais! Enxuga o pranto!
Tu cantavas pra mim, também agora
Para não ver-te soluçar, em canto!
Que desta vida o íngreme barranco
Seja para ela uma florida estrada
Cheia de um arrulhar de pombo branco
E d'um divino albor de madrugada.
Que nunca a pomba apenas implumada
Voe da dor ao perigoso flanco,
E que vá pela vida imaculada
Meiga voando, num suave arranco.
Se a dor que as crenças dentro d’alma gela
Há de habitar-lhe o coração, n’um bando,
Eu me ofereço pra sofrer por ela.
E o peito em chagas ao martírio abrindo
Irei pela existência soluçando,
— Mas veja sempre minha irmã sorrindo.
Como hoje tu vens tão decotada!
Sentem as flores um deslumbramento!
Há beijos pela aragem perfumada,
Suspiram santos pelo firmamento!
Cai aos teus pés minh'alma fascinada,
Causas a tudo um mágico tormento,
Segue-te o passo oh! Languida adorada!
No teu perfume arrebatado, o vento.
O céu suspira de desejos cheio...
Erram aves em torno, sem abrigo,
Como querendo contemplar-te o seio.
Vê! De mil flores todo o chão se junca!
Que perigo formosa! Que perigo!
Não vistas mais esse vestido, nunca!
Teus olhos — são dois astros que dispersos
De outros, vieram para ti fugidos;
A sua luz fulgura nos meus versos,
Transfigurada em cantos e gemidos.
Como um clarão do aéreos universos,
Rutilam neles prantos escondidos;
Vendo-os minha alma vai por céus diversos
Com uma pomba chorando-lhe aos ouvidos.
Meu coração — um mundo — se ilumina!
Há gorgeios de luz pelos espaços...
Olha-me sempre! Olha-me mais, divina!
Que p’ra pagar tais olhos benfasejos,
Eu beijo a dona e um tufão de abraços,
E abraço a dona e um tufão de beijos!
Morreu Lenira — a pálida morena
Tudo soluça... O seu jardim florido,
Que ela regava de manhã, serena
Também parece e’o ela ter morrido.
Soltam chorando um trêmulo gemido,
O lírio, a rosa, a lânguida açucena,
Por essa que morreu sem ter vivido
A vida de uma flor fraca e pequena.
Toda a manhã no jardinsinho, entro
Nem um raio sequer, um só lampejo,
Dessa florinha que nasceu lá dentro...
E a chorar vendo o orvalho cintilando,
Sobre as rosas parece-me que vejo
Todas as flores do jardim chorando.
Nunca pensei que assim me apaixonasse!
Escuta! Não vás rir das máguas minhas!
Madona do sinal preto na face,
Do grave olhar altivo das rainhas.
Era de tarde, o sol tombava, vinhas
De estranha veste, de um fulgor fugace,
Brilhando, rubra no teu rosto, tinhas,
A cor das rosas, quando a aurora nasce.
Levavas rouxinóis dentro da fala...
Pelo jardim a passear, Tereza
Contemplaste uma flor, e p’ra apanhá-la
Tu te abaixaste em pudicos receios
E oh céus! Pelo decote eu vi... (surpresa!)
Vi... dois rubis pregados nos teus seios.
Ah! Que louco que fui! Tenho dores e zelos
Esse sarcasmo mata! Esse desdém mutila!
No caminho onde eu levo a cruz dos pesadelos
Não mais me guiará o sol d’essa pupila.
Não mais me cobrirei na dor que me aniquila
Com o doirado lençol basto dos teus cabelos
Irei triste a cumprir a pena que me exila
E os martírios fatais... Não poderei sofrê-los.
As carícias em flor... Quero embalde esquecê-las!
Lúcifer — a pisar flores n’um paraíso
Quis subir para o céu e pisar sobre estrelas...
E caí... e eis-me aqui cheio de mais desejos,
Dá-me outra vez a luz do teu sorriso
Semea-me outra vez as lavas de teus beijos.
Quando a morte vier em sinistros lampejos,
Cortar d’um golpe só d’esta existência os laços,
Eu levarei na face os teus últimos beijos,
E a benta extrema unção dos últimos abraços!
E as azas surgirão... Em rápidos adejos,
Vendo perto passar deuses pelos espaços,
Iremos pelo azul como um rumor de harpejos,
E ao nosso olhar os sóis hão de tornar-se baços.
Astros hão de chorar no espaço comovidos,
Ao ver triste passar em lânguidos voejos
A tu’alma em botão coberta de gemidos...
E os anjos fugirão ao sentir os meus passos,
E ao ver-me a fulgurar coberto de mil beijos
Ir entrando no céu c’uma mulher nos braços!
II
Eu um ninho farei sobre as nuvens chorosas,
Oásis — que ilumine esse eteral deserto;
E me rirei do pó, de jaulas tenebrosas
A correr pelo azul como um leão liberto.
O chão pode tremer e abrir fauces gulosas
O mar, que eu te terei, anjo da guarda, perto,
Estrelas sobre nós desfolharão mil rosas,
E Deus nos mostrará o firmamento aberto.
Vendo as noites passar, vendo passar os dias,
Veremos cá embaixo o leito dos abrolhos
Deitados então lá num leito de harmonias.
E alegres a escutar os bandolins dos mundos,
Iremos derramando a luz dos nossos olhos
Pelos olhos sem luz dos astros moribundos.
III
Arrancarei do céu vialácteas acesas,
Para te coroar como para os noivados,
E andaremos guiando estreladas Venezas,
Sobre os mares de luz dos astros povoados.
Tornarei em batéis as estrelas surpresas,
Navegando a sonhar por mundos azulados,
Como as fadas gentis, como as loiras princesas
N’um lago de cristal, nos reinos encantados.
E sempre a te adorar, alma de passarinho!
Oh! Ser da cor da luz! Carne da cor do lírio
Farei em cada sol e em cada estreita — um ninho!
E os sóis se quebrarão cheios de mil assombros!
E Deus há de chorar ao ver-me n’um delírio
A fugir pelo azul levando o céu nos ombros!
Medita a viscondessa tristemente,
E o olhar concentra em lágrimas saudoso;
Adeja pela alcova suavemente
Um aroma sutil, voluptuoso.
Arfa-lhe o seio, a carne em flor, ardente
Freme em anceios sensuais de gozo,
Ruge-lhe o sangue impetuoso e quente
Forte, febril, indômito, ansioso.
Leva-lhe a mágua o espírito absorto...
Viúva — a carne lúbrica e travessa
Lembra-lhe os beijos do consorte, morto.
E o pranto rola dos seus cílios d’oiro,
Dorme...e sonhando a bela viscondessa
Vê-se casada com um visconde loiro.
É um delírio, Deus, quando ela passa!
Se pisa a terra todo o chão palpita!
Pasmo de tanta formosura e graça
Tudo murmura: que mulher bonita!
E segue... O ramo trêmulo se agita
Cai uma rosa, um pássaro esvoaça,
E a luz a beija e em frêmitos crepita,
E o vento doido num delírio a abraça.
E vai entre surpresas e entre assombros...
Veem num doce e cândido gorgeio
Os passarinhos lhe pousar nos ombros:
E rindo, corre numa fuga louca
Com um rouxinol a lhe beijar o seio,
E um colibri a lhe beijar a boca!
Tem febre. Por seu corpo entorna-se uma chama
Que se alastra e se estende e a queima e a lamber e a morde
Extremece-lhe o seio, a carne se lhe inflama
E treime, qual num ninho um pássaro que acorde.
Quer dormir, e debalde! O sono foge e entorna
Dentro de si um mal, que cresce, e se dilata...
E ela fica a fitar a claridade morna,
Que derrama na alcova a lâmpada de prata.
Se inocula em seu sangue, e vai de veia em veia,
Um fogo se estendendo, uma chama abrasando,
E essa chama mais cresce, e o fogo mais se ateia,
Como um igneo oceano em sua carne entrando,
E medita, e suspira... O cabelo sem laços
Se estende sobre o alvor do perfumado leito...
Ah! Se viesse alguém para tomar nos braços!
E apertar e apertar muito de encontro ao peito!
Alguém que lhe magoe a carne ardente e louca
E os seus beijos de amor beba num bruto anseio!
E lascivo e sensual beije-a dos pés a boca,
Os braços, o pescoço, a face, a fronte, o seio.
E olhando a alcova azu! — Triste como um retiro —
Cai exausta a chorar, por sobre o travesseiro!
E adormece a gemer n’um último suspiro,
Pomba meiga a arrulhar chamando o companheiro.
II
Eis o amante afinal! Ei-lo sempre ao seu lado!
E aperta-o mais e mais de encontro a carne nua...
Que volúpia ao beijar-lhe o bigode aloirado,
E em ter aquela mão presa dentro da sua!
E murmura a sorrir dentro dos seus abraços:
Eu guardei para ti os meus beijos em flor!
Tu jamais sairás do mundo de meus branços,
Como eu não sairei do céu do teu amor!
E treme... Sente um lábio umedecer-lhe o lábio,
E uns braços enlaçando-os assim como as serpentes;
E ao beber esse vinho e ao sentri-lhe o resabio,
Mostra rindo os punhais pequenos de seus dentes.
E em frêmito de febre, a carne incendiada
Arfante o seio nu, ebúrneo, e voluptuoso
Após caí, após tombar exausta e alucinada
A agonizar de amor, a extremecer de gozo.
E sorri sastifeita... O lábio entreaberto...
E uma pomba de luz arrulhando no olhar,
Formosa e tentadora, o seio descoberto
Pequenino e gentil como a querer voar.
E emudece lembrando, o breve gozo morto,
Os espaços azuis por onde andou voando;
E fica distraída, o espírito absorto,
A boca sorridente, o peito suspirando.
E sentindo uma boca a procurar a sua
Todo o corpo ao prazer entrega prisioneiro,
E delirante goza... acorda... e vê-se nua
Apertando no peito um fofo travesseiro.
Ah! Quando ela nao mais sorriu, tristonhos
Gemeram colibris por muitos dias;
Houve soluços nos pombais risonhos,
E nos jardins, diversas agonias:
As pombas, nunca mais tiveram sonhos,
A rosa, nunca mais teve alegrias;
Riram somente, os ciprestes medonhos,
Riram somente, as catacumbas frias.
No dia em que morreu (lendas piedosas).
Também morreram setecentos lírios
Mil beija-flores e quinhentas rosas...
E o seu caixão de penas e de arminhos,
Para a tumba, sem rosas e sem lírios
Foi levado por quatro passarinhos.
O teu corpo é um mar! Nele, o estrelado hiate
De meu beijo navega e áureo e galhardo apita...
Branco mar — em que o sangue em mil ondas tirita
Deixanda uns rubros tons de rosa e de escarlate
A volúpia — a bramir numa borrasca, aflita,
Nele, trava, feroz, um rutilo combate,
E procelosa, brame, estruge, ulula e late,
E a carne em fogo torce, e a carne em chama agita.
Branco mar! Alvo mar cheio de mil delírios!
Em ti arrebatada a minha alma náufraga
Num abismo de luz cheio de bons martírios.
Ruja embora faminta a vaga de teu beijo
Que galharda e serena irá cortando a vaga
A grande nau de guerra azul de meu desejo.
Vai banhar-se. No banheiro
Ao vê-la tudo delira...
Parece que o ar estremece,
E que todo o chão suspira:
O banheiro se embebeda
Ao sentir o seu perfume;
E as rosas rubras do jarro
Parecem sentir ciúme.
Tudo em redor se embevece
E anseiando se alucina,
Sabendo assistir em breve
Aquela cena divina.
E ela inocente e casta
A bata desabotoa
E um perfume embriagante,
De todo o seu corpo voa.
E surgem brancos e rijos
Pequeninos e gentis,
Dois meigos pombos ariscos
Com biquinhos de rubis.
E arranca a bata... Oh surpresa!
É um delírio sem fim!
Em redor tudo entre pejos
Se torna cor de carmim.
O sol entra com mil raios,
Do banheiro pelas frestas
E lhe beija a boca e o seio
Enchendo-a toda de festas.
A brisa douda e amorosa
Vendo o sol cheio de zelos,
Rouba de leve um perfume
Das azas de seus cabelos.
O ladrilho escandaloso
Entre volúpias cruéis
Sentindo-as pisá-lo, louco
Se põe beijando-lhe os pés.
E ela fica perturbada
Por entre um nimbo de pejos
Temendo que o sol e o vento
A possam matar de beijos.
Apressada abre a torneira
E a água desce apressada
Em cobrir de mil afagos
Aquela carne rosada.
E n’uma lasciva louca
Mas cheia de mil receios
Lhe beija o rubi da boca
E os dois corais de seus seios.
E o espelho brilhando, perto
Em sonhos extravagantes
Reflete uma mulher nua
Sob chuvas de brilhantes.
Te ter, te ter nos braços só uma hora
Não me basta! Não mato este desejo!
Embora voe um dia inteiro, embora
Nas duas azas brancas de teu beijo.
Essa carne que um sangue novo enflora
É a espera ideal por onde adejo
Vê: o meu lábio por teu lábio chora
— Rubro paz que entre venturas vejo
Ébrio de beijos, como um novo Nero
Quero te ver oh! Roma do passado
Ardendo dentro de meus braços! Quero
Subir do goso os luminosos flancos...
E após cair de goso espedaçado
Sobre os teus seios — dois abismos brancos.
De trovas e canções se enche o nosso caminho.
Uma hamonia estranha em cada folha adeja:
Há dentro em nosso amor cantando um passarinho
E o olhar da primavera em tudo relampeja.
Escuto pelo azul como o chilrar de um ninho,
E o meigo suspirar de um casal que se beija,
Mas sobre tudo fulge o sol do teu carinho
Como uma santa d’oiro em derrocada egreja.
Vê tudo canta e ri! O espaço imenso e mudo
Vibra ao ruflo de uma aza, e um lábio de demônio
Risonho e tentador se nos depara em tudo!
Que campinas gentis! Paramos para vê-las! ...
E dentro o nosso amor como um loiro campônio
Vai derramando luz, vai semeando estrelas!
Ninguém vai ao castelo abandonado...
Nele don’Alva irmã dos brancos lírios
Chorando a morte do seu noivo amado,
Foi-se finando em múltiplos martírios.
Dizem, que a noite no salão doirado,
Ouve-se a voz da louca entre delírios:
Todo o castelo brilha iluminado
Dos raios baços de sinistros círios.
E, das haspas aos lânguidos arpejos,
Passam funéreos ao luar, os vultos
De dois amantes em sonoros beijos...
E após, as luzes somem-se apagadas,
E então, deslizam pela noite, ocultos
Dois esqueletos a jogar espadas.
No beijo, no primeiro, oh! Quanto gozo!
Gozo — que deixa rastros de saudades,
E sobre a carne — mar tempestuoso
Sonoramenle espalha tempestades.
A gente vai num bergantim formoso
Em mil volúpias e sensualidades
Singrando um céu dourado e luminoso,
Singrando um céu de flavas claridades.
O coração bate com força; aceso
O olhar fulgura lúbrico, vibrando
Num grande e doce arroubamento preso...
Há pela carne um florescer de brasas
E as almas sem sentir cantam, voando
Arrebatas por milhares azas
Te vejo e fico enlevado...
A carne se me estremece,
Fitando o esplendor divino
Dessa carne que amanhece;
Dessa carne virgem inda
— Branco tigre enfurecido —
Que ruge indômito e salta
Na jaula do teu vestido.
Se passas — com que volúpia
Te fito — com que lascívia
Não beijaria em mil gozos
Essa mão pequena e nívea
Ah! Formosa! Ah! Tentadora
Quisera em longos abraços,
Subir os Andes do gozo
Nas escadas de teus braços!
Se fôras minha! ... Se fôras! ...
A volúpia me treslouca! ...
Ah! Se penetrar pudesse
Nesses céus que tens na boca!
E de gozo embriagado
Ir após num doce arranjo,
Beijar-te as nódoas de sangue
Dos bichos do seio branco!
E louco e mudo amordaço
A carne que em fogo estua,
Num lascivo arroubamento
Te ponho aos meus olhos nua.
E minha alma delirando
Saí de um vulcão de desejos,
Sonhando morrer queimada
Na larva azul de teus beijos.
Quisera que esses teus seios
Mignons planetas rosados
Dos poetas de meus beijos
Fossem p’ra sempre habitados:
Quisera provar-te o néctar,
Vinha do gozo, animada!
Oh! Fruto, nunca mordido!
Oh! Carne nunca beijada!
Noite. Pelo arraial a grande festa explende...
Vão despertar o azul rudes canções num coro,
Por todo o claro céu da Palestina estende
Um dormente luar, o longo pálio d’ouro.
Corre a brisa a gemer num doloso choro,
Pelos campos em flor mais o luar se acende
A brilhar, a fulgir, palidamente loiro,
— Grande flor que no espaço as pétalas desprende.
Ao longe, a soluçar corre o Jordão sagrado
E sereno, ao luar que rola, resplandece,
O mar morto a dormir como petrificado.
Erra tristre na sombra o espectro de David
E Holopernes já ébrio em sonho adormece
Aos beijos sensuais dos lábios de Judith.
II
Vem no levante o sol... Jerusalém desperta...
Vasta toda a vibrar como uma grande lira,
No templo onde medrosa a turba se acoberta,
Flameja do holocausto a incendiada pira.
Súbito há um rumor pela cidade alerta:
Vibram sons de clarins. A multidão delira...
Psalmos vão ressoar pela amplidão deserta...
O fero e sitiador exército fugira...
Por entre a multidão que aclama e se alucina
Olhos azuis, no céu, num beijo de aliança
Segue, triste Judith — a gloriosa assassina...
E enquanto, flavo, o sol o firmamento doira
Sobre os muros de pedra, erguida n’uma lança
Banhada em sangue, fulge, uma cabeça loira.
(Aos seios morenos de Camerea)
Seios, por quem o meu desejo chora
Neste martírio que me suplicia!
Seios morenos que o meu beijo implora
Nas ânsias sensuais desta agonia!
Quando surgis, como surgis agora,
Dentre esse ninho, que a vós pombos cria
Os meus beijos, em música sonora,
Soltam, vibrante e estranha melodia.
Na árvore — a carne — rubidos, nascidos,
Sois o meu goso e o meu suplício eterno,
Oh! Tentadores frutos proibidos!
O meu desejo ao ver-vos não se acalma...
Sinto na carne crepitando o inferno
E um paraíso espedaçado na alma.
És tolo Carlos! És tolo!
Quão cedo da escola vens?!
Ah! Se em pequeno tivesse
Uma mestra como tens! ...
Te juro! Não estudava
Somente para ficar
Preso na aula, ajoelhando
Bem perto do seu olhar.
A tua mestra — meu caro
Para mestra é demais bela,
A gente a lição esquece
É bastante olhar pra ela!
Que éden, que paraíso,
Seria a escola pra mim,
Se quando, quando, em criança,
Tivesse uma mestra assim!
Que discípulo não aceita
Um bolo por sua mão!
Um bolo, que vá ardente
Inflamar o coração.
Dela a rir aceitaria
Os castigos mais cruéis,
Passava um ano, te juro,
De joelhos aos seus pés.
Não pode estudar! Não pode!
Quem tem mestra assim simpática!
Me dize: o que tu preferes
Olhá-las, ou ler a gramática?
Maganão! Tu não me enganas!
Teu olhar nada me esconde,
Vejo teus olhos dizer-me
Que isto nem se responde.
Se vais estudar, a mestra
Logo no livro aparece,
Suave, como um suspiro,
E meiga como uma prece.
E absorto, o olhar brilhante,
Do livro, as folhas a abrir,
Surge logo, em cada folha
A imagem dela a sorrir.
Estudar... não! Não estuda!
Não te importa das lições!
Ficar preseo junto dela
É a mais doce das prisões!
Como és feliz! Tu que podes
De bem perto contemplar,
As pombas do seu sorriso
E os anjos do seu olhar!
Quando a vejo — há tanta graça
Pairando em torno de si,
Que nesses momentos breves
Eu tenho inveja de ti;
Mas, o que mais me acabrunha,
O que mais me desconsola,
É não ser eu mais, criança
P’ra também ir à escola!
Este amor, este amor, meiga Dolores,
Doce, celeste, iluminado e forte
O mais puro, o mais santo dos amores,
Há de por certo suplantar a morte;
E espedaçando a clamide das dores,
De nos levar num lânguido transporte,
Ao céu — jardim de luminosas flores,
Para fruirmos, uma nova sorte.
Que nos importa a vida passageira
Que nos algema a híspida poeira!?
Deixa que a morte num só sopro mate-a!
E então, o céu dos anjos habitando
Iremos pelo espaço vagueiando
Ambos deitados sobre a vialáctea.
Quer um conselho? Os seus passeios cessem!
Ninguém se livra da traição infida!
Mal vem rompendo o sol, mal amanhece
Vai ao jardim, cantando, distraída.
E a minha alma de medo empalidece
Vendo nas rosas gestos de homicida,
Don’Áurea! O bando de inimigos cresce! ...
As flores podem lhe tirar a vida!
Dizem todos, que quando canta ou falta,
Na sua voz há tão doces odores
Que vence o aroma que o rosal exala...
Ouça pois! P’ra aplacar essas procelas,
Não fale mais quando estiver com flores
Nem cante mais quando passar por elas.
A vida para mim és tu, e o teu afago,
— Luminosa piscina onde enfermo me banho —
Tu és, o campo azul, onde eu pastor divago,
Dos meus sonhos, guiando o alvacento rebanho.
Nessa carne a raiar brilha um vergel estranho,
Há um vinho do céu que eu bebo e me embriago,
Irei tomar em ti um estrelado banho
Oh! Luminosa fonte! Oh! Rutilante lago!
Vem a mim enquanto eu tenho volções no sangue!
E quando um dia atroz, na velhice vencida
Já sem ânsias tombar desfalecido e exangue:
De orgulho hei de sorrir, ao ver já sem desejos,
Toda essa carne em flor, que eu tanto amei, comida
Pelo branco leão faminto de meus beijos.
Nas tuas crenças albentes,
Nos teus sonhares azuis,
Há rolas cor de luares,
Suspiram pombas de luz.
Dentro do teu peito virgem
Donde foge a dor de rastros
O amor desce — iluminado
Num flavo dilúvio de astros.
E a descrença — dragão negro
De mil formas esquisitas
Cai aos teus pés — impotente
Quebrando as azas malditas.
E a tua boca vermelha
Sorrindo de tudo zomba...
Nasce um lírio em cada sonho
E em cada lírio uma pomba.
II
Os teus olhos cintilantes
— Duas grandes pérulas pretas —
Prende, almas de sonhador.
Em duas áureas grilhetas.
São dois ninhos pequeninos
Feitos de treva e luar,
Com uma ave luminosa
Em cada um a cantar.
São dois lagos fulgurantes,
Dois firmamentos serenos,
Dois abismos estrelados,
E dois vesuvios pequenos.
A tua boca, formosa
É uma gruta rosada
Aonde habita a carícia
— Uma princesa encantada —
É uma taça vermelha,
Lendária como um troféu,
A transbordar teus beijos
Divino licor do céu.
E os teus seios — róseos frutos,
Que sempre me dão ao vê-los
Umas ânsias de beijá-los
Uns desejos de mordê-los.
São dois demônios formosos
São dois morangos rosados,
São dois pombinhos de neve
De bicos ensanguentados.
E os teus braços lactescentes
São duas serpentes níveas
Famintas, doidas, nervosas,
Repletas de mil lascíveas.
Suas duas escadas curtas
De um branco mármore liso,
Que entram por um inferno
E acabam num paraíso.
E os teus pés... Não os descrevo...
Basta dizer, sem bosquejos
Que já eu fiz para ambos
Dois sapatinhos de beijos.
Quando nós formos pelo azul, ah! Quando
Na terra, não pisar teus pés pequenos...
Tu levarás nas azas d’oiro, um bando
De rouxinóis e pássaros, em trenos.
E eu, levarei os lábios amargando,
Inda cheios dos rabidos venenos,
Triste — que, vai da vida soluçando,
Sem ter o lírio de um carinho ao menos.
Eu, peceador com a alma quase morta
O que farei quando pra ti, criança
Do céu dourado, descerrar-se a porta?
Irei gemendo para o inferno em brasa?
Não! Entrarei no ninho da esperança,
Escondido na luz das tuas azas!
Cavalheiro do amor — na arena desce
Em busca a lança de um olhar que o mate...
Quando galhardo e intrepido aparece,
Os inimigos fogem do combate.
Dizem, que o viram de joelho em prece
Ante uns lábios de vivido escarlate,
Que ele tão forte, treme e empalidece,
E ao fraco olhar de uma mulher se abate.
Por sobre montes e por sobre fraguas,
Galopa sempre bravo o destemido
Vencendo dores e matando máguas.
E indiferente, as súplicas e ao rogo,
Arrasta o sonho — triste herói vencido,
Preso na cauda de um corcel de fogo.
À minha mãe
Esta vida sem ti — é um trilho infindo
Por onde a mágua me persegue os passos!
Como aromas de flor se entreabrindo
Guardo na alma teus últimos abraços...
Sem ter teus olhos sobre mim fulgindo,
Sou como a nuvem errante nos espaços...
Oh! Mãe! Meu sonho mais brilhante e lindo
Que dor se eu não morresse nos teus braços!
Já vem a morte a derramar abrolhos! ...
Mão — que os olhares dos humanos cerram
Vejo-a espelhando sonos nos teus olhos...
Quando eu for descansar no santo abrigo,
Mãe! O teu corpo ficará na terra,
Mas a tua alma levarei comigo!
SEGUNDA PARTE
Deus é o gênio do azul, a alma alcandorada
A cujos pés, a luz, vai se humilhar, de rastro...
Quando, estrelando o céu, a musa loira, o inspira,
Ele toma nas mãos a formidável lira
E solta um canto — um astro.
O século ao passar, estático, ajoelhado,
Beija os degraus do céu, — O Partenon bendito.
E o homem, o — deus da terra —
o verme iluminado, —
De joelhos, se curva, ao ler, amesquinha,
Esse livro de luz aberto no infinito.
E embora um cataclismo essa obra gigantesca,
Reduza toda a pó, destroce-a, desbarate-a,
Pra torná-lo imortal, basta ficar brilhando,
Essa grande canção, cheia de almas chorando,
Semeadas no céu chamado — vialáctea.
Inda pela amplidão ressoava em clamores,
Os uivos de Lusbel na encarniçada guerra,
Quando ele um dia, só, no azul da imensidade
Inspirado se ergueu, grande como a verdade,
E fez um poema — a Terra.
Conta a lenda imortal de uma fada divina,
Que os anjos uma vez acharam-no a chorar,
E assim foi que ele fez, de convulsões sombrias,
De prantos e de dor, de mágoas e agonias,
Essa tragédia — o Mar.
Uma vez de repente iluminou-se o espaço,
Rodeiava o infinito um estranho arrebol.
A imensidade azul toda, resplandecia,
E o velho Deus surgiu, tendo na fronte o dia,
E apertando na mão, essa epopeia — o Sol.
E mil versos jorrou, grandioso e fecundo
Na página de luz, que na amplidão flutua:
As estrelas compôs — rimances doloridos,
E arrancando do peito, um milhão de gemidos
Fez-a balada — a Lua.
E compôs mil canções — a brisa, o aroma, o ninho,
O suspiro, o sorriso, o passarinho, a flor,
Mas onde, o grande Deus brada, ruge, ribomba,
Ora torna-se tigre, ora torna-se pomba,
É na poesia — o Amor.
Escreveu a saudade — um’aria soluçante,
Escreveu a agonia — um trágico poemeto —
O gozo — um ditirambo — um soneto.
E por fim contemplado essa obra fabulosa
Que os sê-los, ao passar vorazes não carcomem
Coroado de sóis, eterno, refulgindo,
N’um santo e alegre humor, ele escreveu sorrindo,
Uma sátira — o Homem.
Descrença! Oh! Serpe venenosa! Oh! Fera
Que tens as almas presas nos teus dentes!
Mão assassina que espedaça e úlcera,
Algoz dos brancos sonhos inocentes!
Nas tuas garras curvas de pantera
Vivem gemendo as crenças dos doentes:
— Bico adunco e fatal que dilacera
E rasga e fere os corações dos crentes —
Minha alma altiva que a sorrir te escuta
Firme, serena, impávida, triumfante,
Suspira e anseia pronta para a luta! ...
Eis-me na liça: enfronta-me colosso!
Que no combate, te acharás diante,
Do espírito forte e sonhador de um moço!
Tu és o anjo bom, sonho meigo e piedoso,
Desta vida — onde a mágoa, impera, soberana:
Rutila ao teu olhar, o palácio faustoso,
Resplandece aos teus pés a mísera choupana.
Sempre de lar em lar, sempre de pouso em pouso,
Sem descanso, a fulgir dentro da treva humana,
Mostras, brilhando ao longe os Oásis do gozo,
— Beduíno da fé de crente caravana —
Anjo meigo a sorrir sobre este pó de brasas!
Vai sonhando o mortal do berço a sepultura,
Levado sem sentir nas tuas grandes azas!
Pode a vida se encher de trevas e de abrolhos,
Que tu guiando o passo, a humana criatura
Sempre terás um céu para vender-lhe os olhos!
A humanidade
Este mundo — é a prisão, o carcer negro, a treva,
Que te cega e te prende e te acabrunha e aterra!
Um destino feroz te arrebata e te leva
A correr pelo mar a vagar pela terra.
Em vão buscas quebrar a jaula que te encerra,
Nesse universo estreito onde a morte se ceva,
Nos suplícios da dor, nas voragens da guerra
Pagarás um por um todos os crimes de Eva...
Ora gargalhas e ri, ora soluça e clama,
A sofrer e a chorar perenemente aflita...
Tudo é debalde! És lama e hás de tornar-te em lama.
Folgues embora a rir no gozo e no delírio,
Sempre ante ti verás, essa visão maldita,
Um esquife, uma cruz, uma mortalha, e um lírio!
A vida?! Eis o castigo, o cárcere, a masmorra,
Onde anseia o mortal na desventura extrema...
A terra?! Mais semelha uma vasta Gomorra,
Onde o bêbado vício a vagueiar blasfema.
Quero a luz! Quero o azul! Onde minha alma corra,
Arremessando ao nada esta maldita algema,
Onde viva a ilusão, nunca a esperança morra,
E o fantasma da dor não soluce e não gema!
Mas, ah! Porque não tenho asas em vez de braços?!
Pela terra pequena em delírios errando
Heide sempre encontrar o sinal de meus passos! ...
A ave a mais pequena erra no céu dos astros
Enquanto eu o perfeito, eu o Homem, chorando,
Heide viver na lama e heide morrer de rastros! ...
Carne em flor! Carne em flor! Rosa das impurezas!
Rainha universal, despótica e sombria!
Usurpaste o poder das cândidas princesas
Castidades do céu de vestes cor do dia!
No teu carro triunfal em rábida ironia
Arrastas pelo gozo as almas sem purezas;
Fera branca — a rugir nos grábatos da orgia,
Mostras a torpe as perolinas presas.
Sobre os ombros servis,
dos homens do Universo,
Surges nua a cantar, resplandescente e nívea
No teu trono real, despótico e perverso.
E entre rubros troféus, entras no céu sagrado,
Cingindo, a fronte impura, a coroa da lascívia,
E empunhando na destra o cetro do pecado!
Há nos édens de amor, floras eternizadas,
Harmonias de luz, de verdes primaveras,
Ali vão suspirar almas enluaradas
Sob a árvore ideal dos sonhos e quimeras.
Vozes de querubins, jorram, pelas esferas,
Melodias azuis, de estranhas alvoradas,
Como um manso rebanho andam brincando as feras,
E a chilrar pelo espaço, andorinhas douradas.
Mas a noite ao luar, numa canção sonora,
Pelo éden se escuta uns gemidos dolentes,
Uns soluços sem fim, de alguém chorando fora...
E que vai a fugir, gemendo em desafogo,
Ao fitar, entre as mãos de anjos resplandescentes,
O sinistro fulgir das espadas de fogo.
Irmã da morte, inimiga da esperança,
Vai pela vida, a derramar negrores;
Levando, as teses da desesperança,
Aos lábios sem canções dos pecadores.
Na bastilha da dor, imensa e franca,
Ela encarecera num funéreo bando,
Todos aqueles corações que arranca;
Como um gladio brandindo desconfortos
Vai o planeta do viver povoando
De crenças loucas e de sonhos mortos.
Fujas da terra e vás pelos espaços
Buscar asilo... O encontrarás em tudo!
Sinistro e eterno, há de seguir-te os passos,
Esse fantasma, horropilante e mudo.
Tremerás, a filar-lhe os olhos baços,
Num frio intenso de pavor, agudo,
Mil vezes dormirás sobre seus braços,
E despertando hás de encontrá-lo em tudo.
Na luz do olhar, nas cans de teu cabelo,
O sentirás feral se aproximando
Alma covarde! Hás de tremendo, vê-lo!
E após da vida, ao derradeiro cúmulo,
Faça com ele, rolarás, chorando,
Na boca aberta e irônica do túmulo.
Mudos e tristes, trêmulos, perdidos,
Vão pela vida — os híspidos desertos,
Tendo de pranto os olhos, doloridos
Ante a visão dos túmulos abertos.
De pó de apodo e maldição, cobertos
Sob a noite lendária dos vencidos,
Chorando vão, pelas soidões, incertos,
Desdobrando o pendão dos seus gemidos.
Almas fracas fugidas do combate —
Vendo as estátuas dos heróis, fulgindo,
Como de inveja o coração lhes bate.
Ashaveros da vida — sem alardes,
Seguem, tristonhos, pela terra, ouvindo,
A voz dos homens murmurar: covardes!
Alma de pedra! Teus nos teus olhares,
O fero olhar do lobo sanguinário!
Fecham-se ao ver-te com pavor os lares,
Fogem te ouvindo o nome legendário.
Matas, num riso irônico e nefário
Nessa feresa fria dos jaguares,
Erras, tremendo, louco e solitário,
Perseguindo de espectros tumulares.
Abres ao crime, desvairado, os braços...
Por onde vais impávido e execrável
Tintos de sangue deixas os teus passos!
Tu’alma, o vício secular, denigre,
E matas, matas... deixas miserável
De ser um homem para ser um tigre.
Orquestra universal desafinada
Simbolizando gozos e tormentos!
Em ti soluçam trágicos lamentos
Em ti sinistra brame a gargalhada!
Teus sons me ferem como aguda espada
Ou pontas rubras de punhais sangrentos,
Bramir te escuto, no vibrar dos ventos,
Pelas teclas da esfera constelada.
Ouço-te os gritos, ouço-te os rugidos!
Em caravana, ríspidos, ferozes,
Passam gemendo pelos meus ouvidos.
Ai! Orquestra feral dos thenos roucos!
Tu mais pareces as confusas vozes
De uma infinita multidão de loucos!
Vais. De um veludo esmeraldino esmalta,
Teu sonho, as duras fragoas dos caminhos,
Sobre cardos — na febre, que te exalta,
Julgas pisar as plumas dos arminhos.
Tua alma canta: o coração mais salta,
Louco, ao beber desses estranhos vinhos,
Vendo, da torre de teus sonhos, alta
A terra, cheia de pombais e ninhos.
E o peito anseia, o coração anseia...
Tua alma sobre um lago de fulgores,
Canta e desliza de luares, cheia.
E vais, pulando escarpas e declívios;
Voando para a terra dos amores,
Nas azas doiro de teus sonhos níveos.
Voltaste já?! Como mudaste tanto!
Treme-te o corpo, treme incerto o passo,
No olhar — a lua de cristal, do pranto,
Chora um clarão amortecido e baço.
Tremendo vens, parando a cada canto,
Num doloroso e intérmino cansaço,
A fronte de uma palidez de santo,
Toda ferida por espinhos de aço.
Lá na terra do sonho — a Palestina —
Foste, buscar confortos, peregina,
Cantando e rindo pelos trilhos francos...
Voltaste — trazes na alma a noite espessa
Um cajado na mão e na cabeça
Uma coroa de cabelos brancos.
Lá no reino, sinistro, das tristezas,
No reino — onde jamais teve luares,
As nostagias — pálidas princeas —
Vivem reinando lúgubres solares.
Sob noites de lágrimas acesas,
Sem ter amores e sem ter sonhares,
Pelas ruas de fráguas e asperesas,
Erram seres vestidos de pesares.
De um Marmor negro, reluzente, hirsuto,
Funéreos, se erguem, vastos edifícios
Todos cobertos de perene luto.
Ao vir da noite, um bando de esqueletos,
De tristes, vai cantando os seus suplícios,
Choras as portas dos palácios pretos.
Cobrem-te a alma, as noites do pecado,
A lascívia te prende e martiriza,
Numa espinhosa cruz, crucificado
O amor, dentro em teus sonhos agoniza.
A serpente do mal — monstro dourado,
Pelo teu seio impudico desliza:
Tua honra — cadáver mutilado,
A sociedade num sorriso pisa.
Por teu passado canta o vício, em fúria
Vai pela vida — num febril arranco,
Sobre o dragão de chamas da luxúria...
Te amedronta a velhice — o pesadelo...
Delira dentro do teu corpo branco
Uma alma preta com o teu cabelo.
Mensageiro do inferno — em negra faina
As doutrinas fatais do crime, prega;
E o íngreme sendal da vida, aplaina
Mostrando o gozo a humanidade cega.
Cristo do mal — a tempestade, amaina
Sobre o oceano humano em que navega:
Loucos, seguem beijando-lhe a sotaina,
E a cruz de prata estranha que carrega.
Rei — a vil turba alucinada o elege
Mas outros vendo-o, hipócrita, descalço,
Cobrem de pedras esse louco hereje...
Fero sarcasmo de ironias mudas —
Para vender esse Messias falso,
Não aparece sobre a terra um Judas!
Aos nunca amados
Bando do olhar piedoso e gemebundo,
De onde a desgraça em lágrimas, se evola!
Um eterno carrasco, furibundo,
Vossos sonhos, em cânticos, imola!
A soluçar atravessais o mundo,
E o pranto sempre em nossas feces rola!
Oh! Mendicante bando moribundo
Nunca tereis uma pequena esmola!
No único alívio, santo dos enfermos
Ides gemendo, e vossos mil gemidos
Vão derramados se perder nos ermos...
Famintos, ides pelas más estradas...
E não podeis tocar, os proibidos
Frutos de luz das árvores douradas! ...
Enlevada num íntimo transporte,
A flébil voz, do sino funerário,
Nele, desliza, a pávida eohorte,
Dos expulsos da vida e do calvário.
O favorito a quem protege a sorte,
O condenado do destino vário,
Mudos e brancos do palor da morte,
Vão por ele, com o mesmo itinerário.
Entre tristonhos funerais e hinos,
Quando eles surgem no sendal sombrio,
Se ouve gemer e soluçar os sinos.
E todos seguem sobre o mesmo trono,
De mãos geladas pelo mesmo frio,
De olhos fechados pelo mesmo sono.
Oh! Dor! Oh! Dor! Oh! Trágico oceano,
Em tempestade em rabidos furores!
Inflando o dorso altivo e soberano
Geme e soluça oh! Mar dos amargores.
Nos gemidos, na voz, do ser humano
Eu escuto os teus fúnebres clamores...
Une também nesse concerto insano
Os gemidos em flor das minhas dores!
Nesse teu seio em vagalhões aflitos,
Onde sintilam lágrimas de tantos.
Também soluça a vaga de meus gritos!
Como te ouvindo sonhará, sem ais,
Esse que dorme e que não tem mais prantos,
Esse que dorme e que não geme mais!
A propósito da morte de Severo
Em vão buscas voar! O pó te prende,
E ao seu seio te atrai e te aguilhoa!
Louco! Fitas o azul que além se estende
E queres azas pra voar atoa.
Fulgindo, longe a vialáctea explende
Errando na amplidão que o sol povoa,
E ao ver a estrela que no céu se acende
O sonho eterno te murmura: voa!
E vais (da glória ouvindo a estranha tuba)
A ver o espaço — esse leão que encerra
Mundo, astros dentro da juba...
Sobes e cais, mas tens herói bem-dito!
Na queda — a glória de figir da terra
E de morrer nos braços do infinito.
Reine a guerra cruel — monstro satanizado,
Num oceano de sangue, a terra transformando,
E o oceano braveje, imenso, encapelado,
Brancos Andes de espuma aos céus, arremessando...
Role um astro do azul no chão, espedaçado
E a terra em mil vulcões, ruja de vez em quando,
Rasgue-se o firmamento, eterno, constelado
E o homem assistirá essas cenas, zombando...
Mas, suprema irrisão! Grande sarcasmo infindo!
Ele que tudo vê num sorriso de goso
E essas cenas aplaude, e contempla-as sorrindo;
Covarde, tremerá sob um pavor funéreo,
Se ouvir, uma só vez, uma só vez, nervoso,
Uma enxada cavar no chão de um cemitério.
Para aquele que vai de delírio em delírio,
Tristonho a soluçar, numa existência escura,
Vendo o martírio atrás, vendo adiante o martírio,
E o tormento de um lado, e de outro a desventura;
Sem ter para guiar-lhe um pequenino círio,
Sem nos ombros sentir, as azas da ventura,
A morte, mais profunda e horrenda sepultura.
Uma — mostra no sejo, a paz, o esquecimento,
Um leito onde adormeça, e um sonho que o conforte,
E a outra — a mágoa sem fim, o pranto, o sofrimento...
Ah! Para esse infeliz, sem sonho e sem guarida,
Esta vida cruel, esta existência, é a morte
E a morte tão medonha — a verdadeira vida.
Oh esperança! Oh! Mãe dos Oprimidos!
Noiva da dor vestida de luares!
Tu derramas canções nos meus gemidos,
E soltas rouxinóis nos meus pesares!
A vagueiar por édens destruídos,
Por ínvias terras e por ínvios mares,
Vais sobre os tristes corações feridos
Desdobrando o pendão dos teus olhares!
Tu, que me guias, nesta vida o passo,
E levas-me, ante a dor — bravia fera —
A sorrir amparado no teu braço;
Hás de mostrar-me o céu branco e risonho,
Quando morrer-me a última quimera,
Quando expirar meu derradeiro sonho!
I
Criar um novo mundo, eterno e formidável,
A cuja face o sol seja um astro obscuro,
Eis seu último sonho, imenso, inegualável,
Que põe um outro céu dentro do céu escuro.
Contemplando a amplidão, vasta, muda, impalpével,
E a terra árida e tosca, e, o mar negro e perjuro,
Os tem como uma obra, informe e detestável,
Ao compará-la a si, e ao seu mundo futuro...
E nas azas sem fim de gigantes ideias,
Fica louco, febril, grandioso, tremendo,
A desenhar na mente, esboço de epopeias...
E lembrando, os milhões de selos, que correram,
Adormece a fitar, junto aos seus pés, gemendo,
Os espectros senis dos sóis que já morreram.
II
E o seu mundo ideal, surge, ante si, brilhando,
E se avoluma e cresce, aos seus olhos pasmados;
Um planeta infinito, onde há anjos, cantando,
Cheia de árvores d’oiro e lagos azulados;
Em torno, um mar de luz assoma, arremeçado
Aos rochedos de prata, os vagalhões dourados,
Mil ilhas de coral, surgem, róseas, em bando,
Onde habitam somente, alvos reis encantados.
E a sonhar, e a sorrir naquele sonho lindo,
Acorda, e mudo vê, colérico, surpreso,
Somente a terra agreste e o velho mar, rugindo;
E então, fero e cruel, sarcástico esquesito,
Olhando a torre e o mar, num gesto de desprezo,
Cospe estrelas e sóis na face do Infinito.
Como um deus, derramando claridades,
Vem, e sereno, intrépido, valente,
Passa por entre o uivar das tempestades,
Jorrando, sonhos, luminosamente;
E surgem logo impérios e cidades,
Do mar se rasga o coração plangente,
E a aeronave, nas imensidades,
Leva o mortal aos pés do Onipotente.
Mas ele, que do mar, desce as entranhas,
Alto titan terreno, que se atreve,
Quebrar os Andes, derribar montanhas...
Oh! Ironia sempre viva e nova!
Inda não pode erguer a tampa leve,
Que o prende dentro desse abismo —a cova —.
O poeta — é um Deus piedoso e iracundo
Que rouba olhos à luz e os dias dá a escuridão
E atravessa a existência, iluminando o mundo
Com um sonho em cada olhar e um astro em cada mão
Desterrado titã, do Olimpo moribundo,
Trouxe dentro no crânio, uma constelação,
Um antro de leões e um pombal gemebundo
Os suspiros de um lago e as febres de um vulcão.
Na batalha da glória áurea, infinita e bruta,
Entra e no turbilhão, imenso e iluminado
Rutila o seu perfil entre os clarões da luta.
E glorioso após volta entre milhares de hinos,
Erguendo o pavilhão do Verso, ensanguentado
Desse sangue de luz dos Combates Divinos.
Ah! Se ele para a dor, nunca existisse,
Na terra má não vibraria um canto,
Não haveria um lado só, que risse,
E nem uns olhos de mortal sem pranto.
Mostra ao mortal o seio imenso e farto,
E dá-lhe o trigo, o diamante, a opala,
Mostra-lhe a vida, que do pão rebenta,
E maternal — em zelos, o alimenta
Para depois ele ir alimentá-la.
Oh! Sarcasmo de agudas e sangrentas
Garras de fogo eternas, luzidias!
Do lábio humano, indômito, rebentas,
Numa explosão de gargalhadas frias!
Vejo-te, dando punhaladas lentas
E derramando mortes e agonias,
Cavalgando em bonanças e tormentas
O vermelho corcel das ironias.
Te ouço na voz dos sinos nos enterros
E em toda parte vejo-te fulgindo
Manél Texel Pharé dos ímpios Erros!
E os que te veem nesta vida escura,
Acham-te após irônico, sorrindo,
Dentro das trevas de uma sepultura!
Quando o dilúvio vier — a morte — e irosas
Tempestades jorrar no meu céu núveo,
No espaço abrindo faces horrorosas
Mil fontes vomitar, como um vesúvio.
Quando do meu amor — paz de rosas —
Matar o cataclismo, o santo eflúvio,
E as suas vastas capitãs famosas
Se afogarem nas águas do dilúvio.
Meu verso! Deixa que esse abismo trague-as!
E ao vires do meu sonho, triste bando
Morrendo as pombas e morrendo as águias...
Então as azas a fulgir de máguas,
Desdobra, e fica rútila, boiando:
Arca de um sonho, a deslizar nas águas.