LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Edição de Base
Biblioteca Virtual Brasileira
ÍNDICE
O que muito exigiu e muito prometeu
Pedro I e a Confederação do Equador
O jantar em casa de Victor Hugo
Os canaviais de Fernandes Vieira
Quando dona Leopoldina aqui chegou...
Naquele sábado histórico de 21 de abril de 1792 o sol que brilhou no céu foi o mais lindo, o mais puro e o mais festivo sol que Deus já mandou a terra para iluminar uma forca.
Estava feita a vontade do vice-rei. O esplendor e o aparato da festa pública que ele queria dar ao suplício de Tiradentes, começava no próprio céu.
Era a natureza com as suas galas de luz vindo, ao encontro das galas terrenas do oficialismo.
Desde as duas da madrugada que começou pela cidade o rumor sinistro daquelas pompas fúnebres.
Era o movimento de tropas, era o movimento de povo: aos seis regimentos de linha, ao esquadrão de cavalaria e mais a força auxiliar, ordenou-se que, àquela hora matinalíssima, se pusessem em formatura pelas ruas; ao povo ameaçou-se sombriamente que cairia no desamor da rainha quem fugisse de assistir a morte do Inconfidente.
E, quando, mais tarde, o sol rompeu no azul, naquele dia mais vibrante e mais alegre que nas outras manhãs, estava toda a cidade em tomo da festa: vestidos garridos como para uma missa de luxo, colchas nas janelas como para um cortejo real, burburinho de povo como nos faustos cívicos, soldados de roupas novas e florões no peito e festões nas espingardas como para a passagem de um monarca.
Nunca se tinha visto tão grande brilho de tropa e multidão. O regimento de Eivas ou do Moura, com as suas 782 figuras, ao comando de José Victorino Coimbra, alongava-se da Cadeia Velha, até o fim da rua do Piolho; o de Bragança guardava as fortalezas; a artilharia, comandada por José da Silva Santos, formava em alas no largo de S. Francisco; o l.° e o 2. ° do Rio e o Extremos ou Chichorro, na totalidade de 2.352 capacetes, estendia-se, em forma de triângulo, desde o Campo da Barreira de Santo Antônio até o Campo da Polé ou de S. Domingos. Nas ruas engalanadas fervia o povo surpreendido por aquela imponência de festa funerária.
Nunca se tinha visto tanto luxo assim. Apenas, a quebrar a alacridade do céu e das ruas, os sinos das torres de S. José e do Carmo dobrando piedosamente pelos ares.
As 7 da manhã, no Terreiro do Paço, nas vizinhanças da Cadeia Velha, por toda a rua Direita, da Misericórdia e da Cadeia, ninguém se podia mexer. Estava ali o que havia de mais fino, de mais ilustre e de mais prestigioso no serviço da colônia — juízes, ouvidores, militares, religiosos de todas as ordens, escrivães, meirinhos, irmãos da Misericórdia, cortezões e pajens.
Eram 8 horas exatas quando se ouviu sonora e alta a clarinada do regimento do vice-rei. Moveu-se o povo, agitou-se a tropa.
Tiradentes ia sair da prisão a caminho da forca.
A multidão acotovelou-se a porta da Cadeia Velha que dava para a direita, vizinha à igreja de S. José. Era ali, no pavimento térreo, que o pobre alferes havia passado a noite no "oratório”, á confortação espiritual do confessor.
De bandeira desfraldada os irmãos da Misericórdia adiantam-se, penetrando na porta para receber o condenado, segundo a pragmática. Era toda a mordomia dos presos: os dois mordomos da vara, os dois visitadores, o mordomo da botica.
Lá dentro desenrolava-se o cerimonial do estilo. Rodeado de oficiais de justiça, o carrasco acabava de entrar no oratório, para pôr a corda ao pescoço do réu e vestir-lhe a alva que, conforme os usos, a irmandade da Misericórdia, por esmola, trouxera. É todo um ritual arrastado e lento: enquanto desenrola a longa camisa da morte e prepara o nó no barraco, o executor pede ao padecente perdão do que vai fazer. Não é por vontade própria que matará; é a justiça, ela unicamente, que o vai obrigar a tirar-lhe a vida!
Tiradentes beija-lhe as mãos, beija-lhe os pés, num transporte de humildade cristã.
Perdão, perdão! Repete o algoz escondendo sinceramente uma lágrima, pela primeira vez comovido na vida.
De novo o clarim, lá fora, retine nos ares. Ouvem- se os tambores alegres dos regimentos.
Começa-se a formar o préstito. É tudo luzido como nunca se vira requinte igual.
O conde de Rezende, esmerou-se nas minúcias mais surpreendentes. As montarias dos juízes da alçada, dos ouvidores, das altas patentes têm arreios de prata, laços de fitas nas crinas e nas caudas, longas mantas de veludo e seda, com franjas douro. Até de prata mandou ferrar os cavalos que os desembargadores montavam.
A frente de tudo forma-se o clero com paramentos ricos. Aparece em seguida a irmandade da Misericórdia com a bandeira ao vento.
Ouve-se a tristeza de um canto funéreo. São os frades franciscanos que surgem à porta, gemendo ladainhas. Estão vestidos de sobrepelizes e quatro deles com longas tochas acesas em derredor do que carrega o crucifixo.
Há na multidão um sussurro de surpresa e dor.
Tiradentes aparece cercado pelos frades.
Até ali ninguém tinha visto ainda a fisionomia do alferes humilde que ia morrer, com todo aquele luxo da terra e todo aquele luxo do céu.
E ei-lo que assoma á soleira da porta, mais alto do que era, muito mais alto na larga alva de linho, rosto sereno e encovado, olhos ardendo como dois carvões, longos cabelos esparsos a cair-lhe nos ombros, as imensas barbas de dois anos derramadas pelo peito.
De pé, sobre o batente de granito, fita silenciosa e docemente a multidão acotovelada. Não é mais um homem, é um espírito. Há nele como que um ralo que não é da terra.
E, ao fulgir dulcíssimo daquele olhar, o silêncio que se espalha no povo é de pasmo, de contrição e de respeito.
No tempo da inconfidência não se sabia ainda morrer pela liberdade. Daquelas três dezenas de conjurados, só ele, o mais humilde, tivera a nobreza d’ânimo, a dignidade do ideal. Fora, na realidade, clementíssima a rainha Dona Maria I: comutara os onze condenados à morte, menos àquele que tinha forças para caminhar até o patíbulo e tinha coragem de passar à história!
E com um sorriso adejante na palidez dos lábios, o Mártir contorna o olhar pela extensão das ruas, levanta a cabeça e fita o céu. Passa-lhe pelo corpo, agitando-lhe os cabelos, um arrepio de volúpia, arfa-lhe o peito como num trago de alegria, chispam-lhe os olhos radiosamente. Havia tanto tempo que não encarava o sol. Que felicidade augusta a que Deus lhe dava! Era com um sol assim, num dia azul e fulgurante, com alegria na terra e alegria no céu, que sempre desejara morrer!
E Deus lhe dava o que pedira! A cidade enfestoava-se para vê-lo perder a vida e o sol, que Deus mandava naquela manhã suprema em que ia transpor a Posteridade, era o mais puro, o mais lindo, o mais cantante dos sóis que já testemunharam a morte de um Sonhador.
E cravou longamente, enamoradamente, as pupilas no espaço iluminado. Lá estava o sol, límpido, doirado, resplandecente, como era resplandecente, límpido e doirado o seu grande Sonho.
Os tambores acordaram-no do êxtase. Ia começar a marcha.
As mãos amarradas, o crucifixo seguro às duas mãos, Tiradentes baixa o olhar, cravando-o na imagem torturada de Jesus. E pisa serenamente a laje fria da calçada da prisão.
Atrás aparece o carrasco. É o negro Capitania que a cidade inteira conhece e odeia. Segura a ponta do baraço que cinge o pescoço do Mártir e, cercado de meirinhos e oficiais de justiça, caminha a passos tardos.
Em seguida, os “homens do azul”, da Misericórdia. Vestidos de opa carregam cestos de frutas, doces, pão de Lot e vinhos, para confortar o réu durante a caminhada. E logo atrás, montados em cavalos tão ricos que até são de prata as ferraduras, forma-se o grupo dos magistrados
E o desembargador-escrivão da alçada Luiz Alves da Rocha que vai, por lei, testemunhar o sacrifício; José Feliciano da Rocha Gameiro, desembargador do crime; o ouvidor da câmara José Antônio Valente e o presidente do Senado da Câmara — o juiz de fora Balthazar da Silva Lisboa. Segue a segunda companhia do esquadrão do vice-rei e atrás, a vanguarda da cauda popular, um carro sinistro, tirado por doze galés. É a carreta que voltará mais tarde da forca com o corpo do Mártir, esquartejado.
Marcha-se. O pregoeiro, porém, faz parar o préstito para ler em voz alta, palavra por palavra, a sentença.
E devagar, passo a passo, sem pressa nenhuma, torna a seguir a procissão. Os frades, em coro, a voz dolente, vão cantando a ladainha que o condenado só pode repetir até o versículo da Santa Maria.
— Ora pro nobis, ora pro nobis! Geme atrás o povo amarguradamente.
Ao entrar na rua da Cadeia ouvem-se, ao longe, os sons consoladores de um coro lacrimoso.
Tiradentes para estático a ouvir.
É uma música simples, triste, comovedora, que lhe entra pela alma como um balsamo. São as recolhidas do Parto, entoando preces por ele.
As ruas cada vez mais fervilham. É a cidade inteira, temerosa do desagrado da rainha, que ali está para festejar a morte. Multidão assim não se tinha visto ainda: gente sem conta nas janelas, nos sótãos, nos telhados, nas árvores e nos morros. E, por toda a parte, tropéis e burburinhos, sons de clarins e rufos de tambores.
E, a quebrar o timbre alvissareiro da cidade, apenas os sinos tangendo a finados, a ladainha dolente dos frades do préstito.
Eram mais de dez horas da manhã quando o cortejo deixou o Campo dos Ciganos para parar no adro a igreja da Lampadosa. Os franciscanos levaram o sentenciado até os degraus de pedra, da soleira do templo.
Tiradentes ajoelhou-se. Lá dentro havia missa e era as praxes ouvi-la o condenado, de fora, de joelhos, á porta, até o “momento de levantar a Deus”.
São quinze minutos, talvez vinte, e o préstito, com a mesma lentidão, parando aqui, ali, adiante, para o pregoeiro ler a sentença, segue para o campo de S. Domingos onde a forca se levanta.
Devem ser onze horas, quando o séquito transpõe o campo do patíbulo. Ninguém diria que ia haver ali o sacrifício de uma vida. Os aprestos davam a ideia de uma parada festiva. Os regimentos, em forma triangular, estendidos em linhas duplas com as costas para a forca e a frente para o povo, luziam nos seus uniformes ricos. No alto de um puro-sangue, magnificamente arreiado, o brigadeiro Pedro Alves de Andrade, cercado do seu estado-maior, ora num vértice, ora noutro, gritava, de quando em quando, uma ordem de comando. Dom Luiz de Castro Benedito, filho do vice-rei, galopava chibantemente por entre turba, no seu ginete de laçarotes esvoaçantes, namoricando as moças. Irmãos da bolsa, cobertos de capas negras, salvas de prata na mão, quebravam a alegria pedindo esmolas para missas “por alma do que ia morrer”.
Tiradentes parou junto do cadafalso, fitando-o de cima abaixo. Um sorriso vago veio suavizar-lhe a palidez do rosto. Era aquela a mais alta forca que se erguia no Brasil — vinte e quatro degraus — mais alta que todas as outras, para que pudesse ser vista pela cidade inteira. Ia morrer ali, lá em cima, mais perto do céu que no fundo de um cárcere.
O carrasco fez-lhe o aceno para a ascensão. Galgou firmemente os degraus, barbas ao vento, impávido, olhos erguidos, até o cimo do patíbulo. Nem um estremecimento, nem uma vacilação. O Capitania aproximou-se, cobrindo-lhe os olhos com o capuz da alva.
Não demores, irmão, depressa com isso! pediu o desgraçado.
Ia o executor dar o empurrão da morte, quando se ouviu a voz do guardião do convento de Santo Antônio, frei José de Jesus Maria do Desterro, subir nos ares. Eram palavras de piedade que ele, ali de cima, dos mais altos degraus da forca, vinha pedir para salvação do que ia sair da vida!
Era um silêncio sem fim o silêncio com que o povo ouvia a exortação. Frei José pede aos homens, às mulheres, às crianças que o acompanhem de alma erguida, na prece que vai levantar ao sentenciado. E recitando frase a frase, vem lentamente descendo, degrau a degrau, a forca.
— Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra...
Creio em Deus Pai, todo poderoso, repete o Mártir claramente, lá de cima e murmura, em coro, o povo aqui em baixo.
Espalhou-se no ambiente a plangência emocionante de uma tristeza-augusta. Os sinos das igrejas dobravam de doer o coração. Uma nuvem toldou naquele instante o sol.
Oreio em Jesus, concebido sem pecado! Clamava o frade a descer, a descer. Creio na comunicação dos Santos, creio na remissão dos pecados, creio na ressurreição da carne, creio na vida eterna...
E a última palavra disse-a já com os pés em terra, foi tudo rápido — um instante — um nada. Um ah! Um grito, um súbito gemido de susto em todo o campo. Tiradentes tinha sido atirado nos ares pelo carrasco. O que se viu foi um esbracejar convulso, duas pernas agitadas tragicamente, um corpo a balançar em estertores, numa corda.
Bateram os tambores fragorosamente em rataplãs alegres, gritaram nos ares os clarins sonoros.
Os sons abafaram a emoção do povo.
Estava consumado o castigo da legalidade.
O triângulo dos regimentos desmanchou-se em filas de marcha. A turba, constringida, começou a dispersar-se pelas ruas.
O sol, que lá em cima se libertara das nuvens, derramou-se a prumo sobre a forca, iluminando-a numa apoteose.
O povo passava, passavam as tropas e ninguém tinha animo de erguer a cabeça para o alto. Ofuscava, cegava os olhos aquela imensa e infinita luz que Deus mandara para iluminar, por toda História, o Sonhador que tivera a coragem do seu Sonho, o Sonho que fizera a nobreza e a gloria de um Sonhador.
A nota sensacional daquele ano pacato de 1743 foi, no Rio de Janeiro, o motim dos carmelitas.
Na história religiosa dos nossos conventos vamos encontrar os frades do Carmo sempre agitados em discórdias intimas, de sangue na guelra, a deflagrar desordens que, de tão grossas e desabusadas, transpunham os corredores claustrais para estrondar, em escândalos aqui fora.
Durante o século atrasado e mesmo no último século, a ordem carmelita viveu em procelas de indisciplinas. Não parecia uma comunidade religiosa, parecia um punhado de bandoleiros em tumulto para a chefia.
E tais eram as turbulências e tão perigosas se tornavam para a tranquilidade da cidade, que, mais, de uma vez, o poder público teve de intervir com força armada, com tropa numerosa, para acalmar e para prender os frades.
A história brasileira está cheia de frades e padres revolucionários. Mas na ordem do Carmo não havia assomos de revolução. Havia motim, havia desordem.
Não se brigava por um ideal humano, brigava-se por politicalha de convento. Não havia ideia política, havia ambição de mando.
Aquele motim de 1743 é um exemplo incrível de audácia desvairada. A tormenta da indisciplina parece que havia varrido das cabeças carmelitas qualquer parcela de bom senso que eles pudessem ainda ter.
A gente, fica com a impressão de que não são pastores de almas que sê chocam em ódios tão acesos, mas sim diabos disfarçados em hábitos fradescos.
Naquele tempo o provincial da ordem era frei Francisco das Chagas. Ao que dizem, o seu defeito era ser menos desleixado e mais cioso de obediência que os provinciais anteriores.
Os frades odiavam-no, hostilizando-o em surdina.
Frei Francisco resolve visitar os conventos da ordem em outras províncias. Mal vira as costas ferve a conspiração nas celas. Fica resolvido que a comunidade não mais o reconhecerá como superior.
Feita a inspeção o prelado volta. Os religiosos recebem-no agressivamente a portaria. Renúncia ou morre!
O velho prior não morre de caretas — matem-no, mas não renunciará. Os frades não têm contemplações: agarram-no, levando-o para a mais estreita e dura prisão do claustro.
Na mesma hora faz-se a eleição: frei Felipe da Madre de Deus é elevado à dignidade provincial. E discute-se (de que eram capazes aquelas santas Almas!) Que morte se devia dar ao superior deposto.
Mas, no convento, um frade, parece que o único, frei Salvador Caetano d’Orte, está ao lado de frei Francisco. Vem para fora e interpõe, perante o ouvidor geral João Alves Simões, uma ação de força para que o prior encarcerado volte, como de direito, á prelazia.
A sentença é favorável. Os frades amotinados vão certamente curvar a cabeça e dobrar os joelhos arrependidos. Não. Embargam a sentença.
Os embargos vão abaixo.
Agora não há outro remédio senão cumprir a ordem do juiz. A cidade, que já vibrava pelo escândalo, supõe que daquilo nada mais podia vir de sensacional.
Frei Salvador volta ao claustro imaginando que o seu superior havia já reassumido as funções. A mesma cousa. Estava ainda no mesmo cárcere, deposto como antes da intervenção do ouvidor.
E o Rio ferveu, assanhou-se, com a novidade surpreendente: os frades carmelitas tinham deixado de respeitar a sentença do juiz.
Frei Salvador vem para a rua, apela de novo para a autoridade judiciaria. João Alves Simões não é homem que consinta no desprestigio á potestade de sua toga. Requer ao governador Gomes Freire de Andrade força para cercar o convento e obrigar os frades ao cumprimento do julgado
O governador imediatamente ordena às tropas que saiam do quartel. Os meirinhos, acompanhados de frei Salvador, encaminham-se para o convento que a soldadesca, em armas, cerca.
A multidão é enorme nas vizinhanças. Numa cidade pacata e bisonha como era o Rio daquelas épocas, um escândalo daquele devia ser um prato saboroso para a curiosidade popular. Daquela vez os frades seriam constrangidos a ceder. Agora não era apenas a força objetiva de uma sentença. Era a sentença blindada pela própria força, — a força material da tropa que foi sempre a força respeitável.
Mas, nas cabeças dos religiosos surgem, às vezes, lembranças que ao próprio diabo não acudiriam.
Uma surpresa e uma decepção esperavam os executores da lei.
Apesar de toda aquela tropa, de toda aquela força, de todas aquelas armas que os soldados tinham sobre os ombros, a figura simbólica da Justiça ou as figuras reais dos meirinhos, não podiam entrar no claustro.
O recurso dos frades era o que havia de mais inesperado e de mais desnorteante. Tinham armado na portaria do convento um altar e, no altar, estava exposto o Santíssimo Sacramento.
É preciso ver a época em que aquilo se passava, em pleno prestigio do catolicismo, na mais estreita união oficial da Igreja com o Estado. Acima da lei estava a Hóstia Consagrada. Diante do Santíssimo Sacramento, baixava a espada inflexível da Justiça. Meirinhos, juiz, tropa, o próprio rei que viesse, teriam que esbarrar, não podiam dar um passo à frente.
Não seria daquela vez que frei Francisco das Chagas sairia do cárcere para assumir as altas funções de provincial.
Frei Salvador é também teimoso como os seus companheiros de ordem. Ha de tirar, de qualquer maneira, o prior da prisão.
Não perde tempo. Corre à procura do ouvidor, trá-lo a verificar o ultraje a majestade divina do Santíssimo.
O juiz vem, desespera-se, mas nada pôde fazer. Não há na lei recurso para a medida infernal dos frades brigões.
Mas, frei Salvador também é frade, também tem recursos do estofo dos de seus colegas. Lembra-se que, do outro lado do convento, há um portão por onde entra o carro de hortaliças e mantimentos para os religiosos.
E se se arrombasse esse portão? Não havia sacrilégio nenhum, não se profanava o Corpo do Senhor exposto na portaria!
O ouvidor concorda. A majestade divina não ficaria arranhada!
E a coice d’armas, arromba-se o portão do carro. Lá dentro os frades fervem como um formigueiro, em altas vozes, protestando. Um deles, aparece na mais alta janela do claustro, clamando para o povo, a excomungar tremendamente a tropa.
Já os soldados tinham posto o portão e mais três portas abaixo e, seguidos dos meirinhos transpunham o pátio, a capela, o corredor e a escada que levavam à prisão do provincial.
Nova decepção. Á porto do cárcere – outro altar, com o Santíssimo Sacramento à vista. Meirinhos e soldados esbarram. Estava tudo perdido, continuaria tudo no mesmo: o prior não podia gozar da liberdade que a lei lhe concedia.
Frei Salvador desce sofregamente as escadas. Ei-lo na rua a falar novamente com o ouvidor.
Para frade outro frade. Há uma janela da prisão, lembra, que dá para o pátio. Não se poderia erguer uma escada até a janela e fazer com que o preso por ela descesse? Não era uma profanação ao Santíssimo, pois que ninguém tocaria na porta em que ele estava exposto! Subtil era a lembrança. O juiz aceita-a.
Corre-se a buscar pelos arredores uma escada, duas escadas. Amarra-se tudo com cordas, arromba-se a janela e frei Francisco desce degrau a degrau aos olhares curiosos da multidão deliciada.
Mas, ao chegar à rua, já na rua estavam os frades amotinados. Saíam em procissão, todos eles com o Santíssimo Sacramento à frente. A Hóstia Consagrada havia sido injuriada, a Hóstia Consagrada havia sofrido ultraje da Força e da Justiça! Aquela procissão era para desagravar a Hóstia.
E marcham pelas ruas cantando, rezando, até o convento de Santo Antônio.
O que eles queriam era desagravar o amor próprio. A procissão era uma retirada do claustro. Os frades mudavam-se para o convento de Santo Antônio para se não sujeitarem à autoridade de frei Francisco.
Mas, tempos depois, como boas ovelhas que voltam ao rebanho, vieram-se chegando, desconfiados, arrependidos, jurando obediência para toda a vida.
O que muito exigiu e muito prometeu
É realmente estranhável que, sendo Colombo um dos homens do seu tempo de mais alta visão pratica da vida, falhasse redondamente da maneira por que falhou, morrendo na miséria, esquecido do mundo e dos amigos.
Ele que teve a paciência incrível de esperar vinte anos que um rei da Europa lhe armasse navios para desvendar o Novo Mundo, que teve a tenacidade de pedir a tantas cortes, e a argúcia, a habilidade sutil de cercar-se de frades para conseguir a proteção da catoliquíssima Izabel de Castela, não teve inteligência para suster nos braços o imenso tesouro de gloria e de prestigio que aquelas qualidades lhe deram.
Com Cristóvão Colombo dá-se este caso surpreendente: começa a falhar no momento em que começa a realizar. E falha tanto, que, nem ao menos, consegue dar o seu nome ao continente que descobriu e morre “sem possuir unia miserável telha, ele que, em Espanha, sempre vivera em pousadas e quase sempre sem recursos para pagar as suas contas”, segundo a amargura de suas próprias palavras, ditas num momento de desespero.
A queda de personalidades do vulto e do valor de Colombo costuma-se atribuir a ingratidão humana. Mas não foi unicamente a ingratidão dos homens que perdeu Colombo.
As causas foram muitas: a sua qualidade de estrangeiro servindo à Espanha, a negação de suas virtudes administrativas, a pouca lisura da corte espanhola, o desconhecimento que ele teve, até a morte, de haver descoberto o continente americano, _ imaginando sempre que, o que descobrira, era a parte oriental da Índia, etc.
Mas causas que mais influíram na sua desgraça não foram além de duas: as exigências e as promessas. Colombo exigia mais do que lhe era permitido exigir e prometeu mais do que lhe era possível dar. Ele que sempre fora comedido na vida, que sempre soube pisar com segurança o terreno que lhe convinha pisar, não teve limites em pedir nem meias medidas em prometer. Tudo isso resultado da sua imensa ambição. Exigiu muito porque a sua insaciável cobiça tudo queria, prometeu demais porque a cobiça delirante fê-lo imaginar que, os tesouros que ia trazer das terras a descobrir eram incalculáveis.
A respeito das exigências de Colombo as crônicas da época são de uma clareza admirável.
Quando o grande descobridor aporta a Portugal, d. João II se interessa, vivamente pelos seus planos de descobrimentos. A corte portuguesa está ainda sob influência dos desvendadores do mar tenebroso. Mas, quando chega o instante de positivar as coisas, de pôr, como se diz, o preto no branco, Colombo pede tanto! Exige tantas regalias para a sua pessoa, tantos títulos, tanta autoridade e tantos lucros, que o negócio malogra. Portugal nunca havia cedido tanto a um português e não lhe ficava bem ceder a um estrangeiro.
Colombo, desesperado, vai bater às portas da Espanha.
As peripécias são inúmeras, os longos anos perdidos são de desanimar uma alma. Mas ele é de uma tempera de ferro.
A rainha promete, dá a sua palavra para quando terminar a guerra de Granada. Em 1492 a guerra - termina. A soberana não pode fugir à sua promessa, mesmo porque Colombo ali está ao seu lado, exigindo com aquela tenacidade que foi uma das suas virtudes maiores.
Izabel decide-se. Chega o momento de serem estabelecidas as condições.
Colombo fala. Em primeiro lugar queria que o investissem das mais altas dignidades de Espanha; queria a categoria e o título de almirante espanhol para si como para os seus sucessores; nobreza para si e para a sua família. Nas terras que descobrisse, exigia para ele uma autoridade pouco menos que soberana, o título de vice-rei dos países novos em que pisasse. E mais: ficava-lhe o direito de propor, para as novas terras, todos os altos cargos e a terça arte dos funcionários do governo; o único juiz de todos os pleitos a que desse lugar o tráfico entre a Espanha e os países descobertos seria ele. E mais ainda: queria a decima parte do que o erário pudesse tirar das pérolas, pedras preciosas, ouro, prata, especiarias e outros artigos de comércio; e, no caso de custear a oitava parte das despesas de armamento de navios mercantes, o direito de receber a oitava parte dos benefícios.
A rainha, dizem as crônicas, ficou estupefata.
Nunca se tinha ouvido um homem abrir a boca para pedir tanto. Era espantoso e muito mais espantoso tratando-se de um estrangeiro! Colombo era genovês. Se lhe dessem aquela autoridade formidável, aqueles títulos, aquelas dignidades excepcionais, era expor a empresa a sérios conflitos que o ciúme natural dos filhos do país fatalmente despertaria.
Izabel quer, de coração, proteger Colombo. Mostra-lhe o excesso de suas exigências, a impossibilidade do governo em aceitá-las.
Mas Colombo não cede uma polegada. Não cede porque vai trazer riquezas incontáveis a Castela. O país que vai descobrir é o mais abundante de ouro que há sob o céu, o mais farto em pérolas, em prata e especiarias.
A rainha é obrigada a romper as negociações. Daquela maneira não!
Colombo retira-se para Cordova. Está fulo de raiva. Vai propor os seus planos ao rei da França.
Mas os frades mexem-se ou ele mexe os frades. O que é certo é que, por influência dos religiosos, a soberana manda novamente chamar Colombo.
Há mais uma tentativa para que ele cerceie as suas exigências. Não cede, não cede um átomo.
Aquela teimosia, aquela formidável convicção em afirmar que vai enriquecer Castela, impressiona a rainha. Se ele não quer ceder, é porque tem a certeza de que vai realizar o que promete.
Quem se curva é Izabel. O erário público está esgotado com a guerra de Granada. Mas a soberana tem as suas joias. Empenha-as a Luiz de Sant Angel, que lhe adianta 5.300 ducados para as despesas da expedição.
Quando uma rainha chega a despojar-se de suas joias para ajudar um estrangeiro numa aventura da ordem da de Colombo, é que espera tudo dessa empresa, Colombo tinha conseguido tocar a fibra sensível de Castela, no momento — o ouro. As aperturas do governo eram horríveis; a corte viu em Colombo, na sua viagem, nas suas promessas, a salvação do erário.
Quando, em 1493, o navegador volta à Espanha não há motivos para a corte desanimar. Colombo tinha realmente descoberto terras até ali desconhecidas, tinha, segundo ele afirmava, tocado na índia decantada das riquezas e das especiarias.
Trazia um séquito de gentios, madeiras e umas belas lâminas de ouro, com dois dedos de espessura e o comprimento de uma mão, que Martim Alonso Pinson, o comandante da Pinta, adquirira por um laco de fita, na ilha de Babeque.
A amostra dessa primeira viagem era excelente. Colombo atravessa a Espanha vitoriosamente, carregando os seus troféus até Barcelona, onde estão o rei e a rainha. Os monarcas recebem-no maravilhosamente, fazendo-o sentar-se ao seu lado, em audiência pública, honra que só era permitida aos grandes do reino.
O que o descobridor conta a corte, naquela audiência, é enlouquecedor. Havia fundado uma colônia de espanhóis no Novo Mundo e, ao voltar, contava encontrar uma tonelada de ouro.
Uma tonelada de ouro! No estado em que se achava o tesouro de Castela, aquilo fez delirar a cabeça da corte. E a 28 de maio de 1493 os monarcas confirmam todos os títulos, regalias e dignidades que Colombo havia exigido.
A segunda viagem é colossal. Armam-se 14 caravelas, 3 navios grandes de transporte e embarcam 1.200 homens de armas e mais cavalaria, vários animais domésticos, cereais, legumes, videiras, etc.
A nobreza espanhola entusiasma-se: Alomso de Ojeda, João Ponce de Leão, Diogo Velasquez e João de Esquivei seguem na expedição.
A Espanha fica à espera da imensa riqueza que Colombo lhe vai mandar
Mas no ano seguinte, 1494, chegam ao reino, sob o comando de Antônio Torres, 12 navios de Colombo. Não trazem a tonelada de ouro de que ele falara, vêm carregadinhos de doentes.
A decepção devia ter sido forte para a corte e para o povo.
E além disso, nas colônias que Colombo funda nas terras descobertas fervem discórdias. Acusam-no de perseguir os espanhóis por ser ele estrangeiro. As acusações chegam até aos ouvidos dos monarcas. Ele sente-se na necessidade de ir ao reino justificar-se.
Não está bem verificado se foi esse o motivo que o fez abandonar as terras do Novo Mundo em direção da Espanha. Um outro parece mais importante. O governo espanhol, deslealmente, havia permitido a toda expedição mercantil particular de buscar novas terras no Oceano e traficar em todas as partes, menos no Haiti.
Talvez descrenças nas realizações de Colombo, desilusão provocada por aqueles 12 navios carregados de enfermos.
A permissão do governo de Castela lesava profundamente os privilégios do descobridor. Colombo ia também protestar pelos seus direitos lesados e, talvez só por isso, se abalasse até ao reino. Deixa o seu irmão Bartholomeu como Adelantado e parte, em março de 1496, com 2 navios, 200 colonos doentes e sem recursos e 30 índios do Haiti.
De Cadiz até a corte, a sua passagem é festiva. Tem a habilidade de enfeitar os seus índios com esplendentes joias de ouro.
Mas, na corte, as coisas estão mudadas. Izabel, preocupada com o casamento de seus filhos d. João e d Joanna, não pode ouvi-lo com cuidado
Tudo está frio. Os cortezões não o atendem mais como dantes. Ha já quem diga que a Espanha não pode continuar gastando somas pesadíssimas para Colombo dissipar em expedições sem proveito.
Mas o navegador é pertinaz. Mexe os seus frades.
A luta para formar uma nova esquadra é terrível. Castela, na guerra com a França, esgotou-se. Não há dinheiro. Só em maio de 1498 consegue ele partir com 6 nãos. Outra dificuldade embaraça os seus passos ninguém quer mais ir às novas terras. No Novo Mundo já estava em voga o juramento espanhol: - “Assim me leve Deus outra vez a Castela”.
Colombo pede condenados para povoar as colônias.
Ao chegar ao Haiti a situação e gravíssima. O magistrado do governo, Francisco Roldão, está à frente dos elementos em discórdia. Colombo e os seus irmãos Bartholomeu e Diogo são acusados de inimigos dos espanhóis.
Abre-se a luta entre o magistrado e o descobridor. Roldão retira-se dá colônia e chefia a desordem. Os episódios são terríveis e não vêm ao caso narrá-los aqui.
Afinal, Colombo consegue que o governo espanhol demita o magistrado. Vem um novo juiz do reino -- Francisco Bobadilla. É a desgraça do navegador.
O rei, ou porque Colombo não mais lhe merecia, ou porque lhe quisesse cercear a autoridade diante das acusações de inimigo dos nacionais, investe o novo juiz de poderes independentes, superiores aos poderes do desvendado do Novo Mundo.
No dia em que Bobadilla chega a S. Domingos - estão armadas na praia sete forças e, nas forças, dependurados sete cadáveres de espanhóis. Seis dias antes, para sufocar uma revolta, Colombo fora obrigado aquele golpe extremo.
Bobadilla salta, entre na cadeia, interroga os presos, aloja-se na casa de Colombo, embarga-lhe os bens, apodera-se-lhe dos papéis, mete-o em ferros, atira-o no convés de um navio e o manda-o para a Espanha.
Quando o descobridor chega ao reino, acorrentado como um bandido, Castela inteira se agita. Era uma vergonha! Por mais culpa que aquele homem tivesse, ninguém podia negar que ele havia dado novas terras a Castela!
Colombo era amigo íntimo da ama de leite do infante d. João. Escreve-lhe uma carta contando a injustiça que estava sofrendo. A carta chega ao conhecimento dos reis antes das acusações de Bobadilla.
A corte está em Granada. Quando o rei e a rainha sabem que o desvendador do Novo Mundo está em Espanha, metido em cadeias de ferro, ficam profundamente envergonhados.
E imediatamente mandam ordens para que o soltem e enviam-lhe 2.000 ducados para que se apresente a corte de acordo com as suas dignidades.
A cena é de um grande cunho dramático. Colombo entra no salão em que está reunida a corte e cai de joelhos aos pés dos reis, sem dizer uma palavra, sufocado pelas lágrimas. Os monarcas dão-lhe todo o apoio.
Mas a infâmia e a calúnia deixam sempre os seus borrões, os soberanos não lhe restabelecem a dignidade de vice-rei do Novo Mundo.
Pode-se dizer que, daí por diante, se apaga a figura do grande homem. Ninguém mais confia nas suas promessas, Vasco da Gama, a serviço de Portugal, havia voltado das índias carregado de especiarias e ele nada dera a Espanha!
Mas, uma tenacidade daquelas, sempre consegue alguma coisa. Convence aos reis que poderá chegar às índias de Vasco da Gama. Os monarcas, ou porque acreditem na promessa ou porque desejem prestigiar Colombo depois do escândalo da prisão, auxiliam a empresa.
Bobadilla é demitido e nomeado para o seu lugar, Nicolau de Ovando, homem reto e absolutamente imparcial.
A última viagem do descobridor do Novo Mundo é de uma infelicidade horrível. Perde o tempo a procura de um canal que o leve às índias portuguesa, sofre tempestades, ataque dos índios, febres, fome, o diabo. Querendo aportar em São Domingos, não o consegue porque Nicolau Ovando, o juiz, não lhe consente, para evitar perturbações da ordem.
Cansado, doente, sem dinheiro e sem esperanças, volta em 1504 a Espanha. Nem os navios que levou, pôde trazê-los. A sua grande amiga, a rainha, morreu.
Os inimigos assanham-se. Nada mais consegue.
Mas ele insiste em querer os seus títulos, as suas dignidades. A "Junta de descargos” propõe-lhe a renúncia, dos seus direitos ao vice-reinado, em troca de propriedades e de títulos em Castela. Repele. Nunca! O máximo que pode fazer, é renunciar os privilégios e dignidades das índias em favor do seu filho Diogo. Quem não aceita isso é o governo.
E Colombo insiste. Em pouco deixa de ser um grande homem para ser um importuno, cacete, de quem toda gente foge.
Doente, gasto, abandonado, ainda um raio de esperança lhe vem iluminar o espírito. É quando chega à Castela, vindos da Flandres, os monarcas Felipe e Joanna, esta filha de Izabel.
Manda o seu irmão Bartholomeu receber os reis, pois ele, de doente, já não pode andar. Os soberanos prometem fazer alguma coisa, mas depois.
Mas, no dia 21 de maio de 1506, em Valladolid, na hora em que os sinos das igrejas repicavam para a festa da Ascensão, o extraordinário navegador morre em plena miséria, inteiramente esquecido.
As duas maiores razões da sua queda foram certamente aquelas: ter exigido muito e ter prometido de mais.
Colombo não soube conhecer-se. Ele não estava na altura das dignidades de que foi investido. Não tinha fortuna nem prestigio para lidar com tão altos títulos. Além de tudo, era estrangeiro, e havia contra si os ciúmes dos espanhóis na própria Espanha a que ele servia.
Prometeu de mais, prometeu imenso numa época em que Castela andava faminta por ouro. É sempre um mal prometer a quem precisa muito.
Castela viu em Colombo, na sua empresa, a salvação do seu erário. Ele não correspondeu às suas esperanças. Ela própria o derribou.
Pedro I e a Confederação do Equador
Em história brasileira não há nada mais desnorteante que o estudo da personalidade do nosso primeiro Imperador.
A aferição das almas foi sempre difícil nos homens, principalmente quando eles caminham pela existência arrimados a muleta poderosa de um cetro.
Mas, no proclamador da nossa independência, a complexidade é mais trabalhosa de destrincar que nas outras figuras da história pátria.
Nos primeiros passos do estudo daquela curiosa personalidade tem-se a exata impressão de que Pedro I nada mais foi do que um grande maluco aquela diversidade de estados da alma, os altos e baixos do seu temperamento, as ações nobres ao lado das ações indignas, a taciturnidade que sempre lhe vinha após as explosões de alegrias juvenis, a imunda vida de pai de família, as acentuadas inclinações lascivas, as inconsequências e incongruências dos atos, são fatores que, somados, convencem a gente de que, se ele não foi um epiléptico, como, certos cronistas afirmam ter sido, foi, pelo menos, uma criatura de parafusos frouxos ou completamente desaparafusada.
As crônicas estão cheias de altos e baixos do caráter de D. Pedro. Dois ou três factos são suficientes para avaliar-se a anormalidade daquele tortuoso temperamento. A imperatriz Leopoldina morreu de um pontapé que o imperador lhe dera no ventre, na borrasca de uma cena de ciúme no palácio de São Cristóvão, cena em que, a pobre esposa humilhada, lhe pedira contas da escandalosa afeição pela marquesa de Santos.
Numa revista de tropas na Praia Vermelha (é o caso contado por Bosch) D. Pedro, sentindo os apertos de uma necessidade física, trepou num muro e, quando satisfazia a necessidade, mandou que as tropas continuassem a desfilar à sua frente.
No período mais vivo da sua paixão pela capitosa Domitila leva-a para o paço e obriga a imperatriz a nomeá-la primeira dama do palácio
No dia seguinte ao 7 de abril, já na fragata Warspire, à mesa do jantar (narra o Barão de Daiser, citado por Figueira de Mello) como a segunda imperatriz, a linda Dona Amélia, a mulher que ele amava perdidamente naquela quadra, lhe pedisse auxílios para alguns dos seus, D. Pedro berrou grosseiro para toda a mesa ouvir: - “Não posso. O nosso casamento só me tem custado muito dinheiro. É tudo quanto tenho tido até agora”.
Ao lado disso um ou outro gesto fidalgo. Uma tarde, como viesse pela estrada de Mata Porcos e encontrasse dois marinheiros franceses socorrendo a um companheiro desmaiado e ferido pela queda do cavalo, apeou-se e, sem nomear os seus títulos, prestou, pelas suas próprias mãos, socorro à vítima.
Ele que foi capaz de pisar o ventre da própria esposa, ao sabe-la finada, chora-lhe abundante e arrependidamente a morte. Ele que, em fases anteriores, arrostara as maiores iras do povo, ao receber uma imposição popular para recompor o ministério, abdica inesperadamente o trono em duas linhas rápidas de papel.
Até aí temos o inconsequente, o estrabulegas, o doido, o maluco, o pobre neuropata que, ao lado dos bons assomos, tem deflagrações impetuosas de neurastenia ou de epilepsia a arrasta-lo aos maus declives
Até aí temos o Pedro I - impetuoso.
Mas quem fizer um mergulho mais fundo no estudo daquela estranha personalidade, verificará que o nosso primeiro imperador não foi apenas um homem de impulsos irrefletidos. Verificará, com pavor, que dentro daquela alma de maluco, havia também a alma de um monstro.
Aí está a revolução do Equador. É o acontecimento máximo para se aferir segura e definitivamente o caráter do nosso primeiro monarca imperial.
Na rebelião de 1924 D. Pedro não se desenha o impulsivo que não pode nortear a harmonia de seus atos. É, ao contrário, frio, refletido, meditado, premeditado, como nenhuma outra passagem de sua vida. É, desgraçadamente, é tudo isso para revelar uma imensa perversidade, uma impassível e requintada monstruosidade de coração.
Para punir os infelizes confederados que Paes de Andrade chefiava, não se pode dizer que se houvessem organizado tribunais, organizou-se uma carnagem.
Foi a revolução brasileira que maior, número de mártires deu à história. Foi a revolução nacional em que a legalidade mais se deleitou em ser carniceira e mais abusou do cadafalso.
E não se diga que tivesse sido aquela em que as iras do governo se justificassem pela dificuldade de debela-la. Talvez tivesse sido a que mais facilmente se garroteou. Desde os primeiros choques, as forças imperiais tiveram vitórias decisivas; com três ou quatro embates estavam sufocados definitivamente os elementos republicanos.
E, apesar da vitória fácil, apesar do aniquilamento completo dos germens revolucionários, Pedro I não perdoou, não perdoou ninguém, não teve a generosidade de perdoar um só, não teve ouvidos bondosos para atender a uma suplica. Mandou matar a todos, a todos os chefes e até aqueles que não tinham prestigio para chefiar cousa alguma.
Na Inconfidência mineira só uma figura subiu ao patíbulo — Tiradentes. Na revolução de 1817, naquela em que na frase de Oliveira Lima, os brasileiros aprenderam a combater e morrer pela liberdade, os tribunais executaram muitos dos chefes do movimento. Mas só morreram os chefes, e não todos, e muita gente se salvou e pôde depois sair dos cárceres para a propaganda da Independência. E os tempos eram outros e o governo absoluto e o monarca um velho
Pela Confederação do Equador as ideias liberais tinham avassalado o, mundo, o monarca se dizia constitucional e tinha apenas 26 anos de idade.
Antes dos 30 anos as almas são claras, brilhantes - translúcidas, refloridas de sentimentalismo, de arroubos de amor e arroubos de generosidade.
Nenhuma dessas virtudes ressalta em D. Pedro. Tem-se a impressão de que, ali, não-está um moço na idade vulgar dos sentimentos nobres, mas uma fera irritada.
D. João VI, com todos os seus defeitos, consentia ser mais clemente do que ele.
Na Inconfidência mineira e em 1817, a legalidade matou, mas apenas o que, à época, o juízo palaciano chamou “o menos possível”; na revolução do Equador o que houve foi a pletora de penas extremas.
D. João VI ainda consente que os cárceres punam as subversões das cabeças republicanas. D. Pedro, friamente, inabalavelmente, acha que, só com perda das cabeças, se devem castigar os que se rebelam contra o seu mando.
E ordena a morte de todos que lhe cabem nas mãos.
O ano funesto de 1825 ele o ensopa no sangue dos mártires. De janeiro a novembro, desde a primeira execução que é a de frei Caneca, a 13 do primeiro mês do ano, à de João Viegas Frazão, a última, a 9 de novembro, vive a nação um arrepio de angustia a cada cabeça que rola decepada.
Os patíbulos estão armados em Fortaleza, na vila Icó, no Recife e no Rio de Janeiro. São nada menos de vinte mártires sacrificados. Até um pobre diabo, o meirinho José Felix, até o ex-escravo Felix, um joão-ninguém, o tribunal executa com as pompas que se dão aos grandes rebelados.
E o que espanta em tudo isso é a inflexibilidade sinistra de Pedro I. Ao pronunciar-se a sentença de morte de frei Caneca o clero inteiro do país agita-se a provocar a clemencia imperial. Chovem as suplicas mais aflitas e mais prestigiosas.
Ele não cede, não cede uma linha. E depois, em documento para a comissão militar de Pernambuco, classifica as rogativas do clero de “louca e incurial pretensão”.
No Recife, na véspera do sacrifício do grande frade republicano, o cabido vai em peso à comissão militar pedir que retarde a execução, até que chegue o indulto do Imperador que toda gente tem como infalível. A comissão, que certamente tem instruções secretas, expulsa e repreende os sacerdotes, e, ao que nos conta Ulysses Brandão, considera aquele ato uma nova forma de rebeldia.
À proporção que as penas de morte vão sendo impostas, chegam às mãos imperiais os rogos de perdão. O Ceará implora a favor do padre Mororó, Pernambuco invoca os sentimentos piedosos do soberano em prol de Nicolau Martins Pereira e Agostinho Bezerra Cavalcanti, major dos pretos.
Para estes dois últimos a munificência do príncipe é contada como certa. Nicolau era o patriota arrojado da Independência, conhecido pela bravura indômita quando foi da expulsão das tropas portuguesas do Rio e da Baia. Agostinho, quando o povo do Recife, enfurecido, quisera queimar as casas dos comerciantes estrangeiros, tivera força e prestigio para conter o povo. Era o comércio inteiro a pedir por ele.
Mas D. Pedro não se comove. Nega e nega sempre.
E em vez de recomendar benevolência, põe-se a enviar ofícios e ofícios ao conselho de guerra, ordenando que sejam apressadas as execuções e censurando-o por perder tempo em esperar o seu indulto. Não perdoará ninguém! Quem for condenado à pena máxima, que seja morto imediatamente!
A censura produz tal efeito no ânimo do conselho, que Agostinho Bezerra, com espanto de todo o mundo, é executado na Semana Santa, na tarde da procissão dos Passos.
Um abalo profundo produziu no país inteiro a morte de frei Caneca. As circunstâncias de que se reveste o momento trágico da execução sacodem as almas mais indiferentes: não se encontra quem puxe a corda da forca para sacrificar o grande frade: o carrasco recusa-se, recusam-se dois ou três presidiários que se vão buscar nas cadeias com a promessa de liberdade, e, na impossibilidade de morrer no patíbulo o pobre frade morre fuzilado.
Diante de todos esses incidentes dramáticos a nação inteira arrepiava-se comovida.
Apenas uma pessoa não se sensibiliza. É D. Pedro. Continua surdo às implorações e não cede a pedido nenhum.
Ressoa de norte a sul um grande clamor de piedade pelos desgraçados que morrem e pelos que vão morrer.
E, entre essas vozes, há uma que impressiona pelo nobre tom de angústia insopitada. É a voz do brigadeiro Francisco de Lima e Silva, o presidente da sinistra comissão militar encarregada do julgamento sumario dos réus. Os seus ofícios ao governo são gritos de revolta contra aquela carnificina e mãos súplices erguidas em favor das vítimas. Se for executada, a rigor, a última carta imperial, seria preciso condenar à morte mais de cem pessoas, diz ele em circular ao Conselho de Estado.
E está sempre a aconselhar moderação, “mais humanidade que severidade”. Mostra ao próprio conselho de ministros que, o “rigorismo bem longe de firmar a integridade do Império e consolidar a paz, promoverá o adio e acenderá de novo o facho da discórdia.” E propõe que os revolucionários, em vez de conselho de guerra, sejam julgados por “tribunais de justiça, os quais, em todos os tempos, não são tão odiosos”.
A sua voz é um constante apelo a bondade imperial. E dia a dia vai-se tornando mais alta, mais clara e mais audaciosa. Numa circular aos membros do governo aconselha suavidade nos julgamentos, lembrando a revolução de 1817, em que os criminosos “depois de justiçados foram julgados inocentes”.
Numa outra clama fortemente: "V. Ex. (presidente do Conselho de Estado) como sábio experimentado nos grandes negócios, estará bem certo quão dificultoso e classificar e punir crimes da opinião”.
Um homem desse não pode servir. Ele próprio tem coração aos engulhos, dando a vida para que o tirem dali. Pede demissão e dão-lhe imediatamente. É o brigadeiro Bento Barroso Pereira quem o substitui. As execuções continuam.
A implacabilidade do monarca não tem alteração. No Ceará, o almirante Cockrane, para aplainar dificuldades, oferece anistia a Tristão de Alencar Aranpe e José Pereira Filgueiras. O imperador vai às nuvens, desautora publicamente o marinheiro inglês, anula anistia, dizendo em documento oficial que o almirante se excedeu em anistiar os revoltosos, pois “para isso não estava autorizado nem podia estar quando a causa ultrajada era toda nacional”.
Em todo o lance amargo que foi para o país a Confederação do Equador, D. Pedro revelou-se uma crueldade e de uma abjeção clamorosa".
O caso de Ractcliff é de arrepiar cabelos.
Ao que se diz (não pude ainda verificar em fontes autorizadas) Ractcliff veio para o brasil instigado pela diabólica Dona Carlota Joaquina, para criar dificuldades à Politica imperial. Chega a Pernambuco ao deflagrar da revolução. Paes de Andrade confia-lhe o comando de pequenina esquadra revolucionária. Fracassado o movimento, vem Ractcliff para ser julgado aqui no Rio. Diante de tanta dor que abala o país, parece haver, no Tribunal, uma certa repulsa em condenar a morte o agitador português.
O Conselheiro Torres Homem, no “Libelo do Povo”, conta a profunda infâmia do imperador. D. Pedro manda chamar os desembargadores, pede, insta. Quer a cabeça de Ractcliff! Quer que ele seja condenado à morte para ter a gloria, o prazer, a volúpia de per- doá-lo!
Vem a condenação e, com surpresa, o perdão não vem.
Os mordomos da Santa Casa de Misericórdia e a maçonaria agitam-se para conseguir a piedade imperial. Nada. D. Pedro, desaparece. quela gente do passado, com toda a sisudez de costumes e toda a circunspecção de palavras e gestos era capaz de exagerar e de mentir como qualquer de nós.
Moreira Pinto conta a cena miserável do dia da execução. Uma comissão maçônica, tendo à frente o Dr. Domingos Ribeiro Guimarães Peixoto, vai em procura do monarca no palácio de Boa Vista. Não está. Deve estar no largo do Rocio, em casa da amante, Dona Domitila, A comissão corre à casa da linda paulistana. Ela própria já se condoeu da sorte de Ractcliff e vai conseguir o perdão do imperador. E bate no quarto em que este está trancado. Nunca D. Pedro lhe havia recusado um pedido. Mas D. Pedro, lá dentro do quarto, não responde. Ela insiste, nervosa, agitada. A porta não cede. Afinal, depois de muito tempo, um papelinho aparece por baixo da porta. Dona Domitila devora-o com os olhos. Eram apenas duas palavras secas escritas pelo monarca: — “É tarde”
Desgraçadamente era tarde. Ractcliff havia sido executado naquele instante.
Ele esperava tranquilamente lá dentro do quarto que os minutos passassem, que a hora do sacrifício se extinguisse, para não ceder, para não perdoar.
E infâmia maior (não se verificou ainda a exatidão) contam as crônicas. D. Pedro mandou decepar a cabeça de Ractcliff, pô-la dentro de um barril salgou-a e enviou-a a mãe, a D. Carlota Joaquina, para que ela visse em que estado se encontrava o agitador que enviara para perturbar a sua política.
A Confederação do Equador é a trena aferidora do caráter de Pedro I. Não foi apenas um maluco foi muito mais do que isso (pelo menos naquela fase) — um monstro.
Tem um imenso sabor de curiosidade e o sabor particular das velharias curiosas aquela página do 5° volume da Revista do Instituto Histórico, em que um cronista anônimo descreve, em 1641, as solenidades estrondosas com que a heroica cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro festejou a aclamação de D. João IV ao trono restaurado de Portugal.
Para nós outros que vivemos no Rio fascinador da atualidade, nesse Rio moderno, babilônico, ruidoso e resplendente, o Rio das avenidas, palacetes, automóveis e eletricidade, é sempre interessante saber-se o que era isto há quase três séculos, o que, há quase três séculos, eram os nossos respeitáveis e sisudos avós.
Ao que diz o cronista remoto, as festas foram excepcionais e, de tal maneira ricas e de tanta e tanta fulguração, que “na mais opulenta cidade não podiam ser mais lustrosas”.
A crônica inteira é um regalo. Regalo pelo precioso tom engalanado com que o cronista empantufa o estilo, regalo pela expressão ingênua das sumptuosidades que ele descreve, regalo pela bizarria dos costumes que os séculos afastaram.
Que podiam ser as tais festas que o escritor seiscentista, no seu exagero imaginoso, volta e meia classifica de luzidas e lustrosas?
Em 1641, o Rio de Janeiro, de cidade só tinha o nome. Não era mais que uma aldeia, escorrendo pelo morro do Castello abaixo, com algumas linhas de casas ao sopé do monte e chácaras com cercas de varas onde hoje os palácios se elevam e a multidão burburinha.
A rua do Ouvidor, a fiar-se a gente no que narra Macedo, apenas havia deixado de ser a vereda longínqua a que se chamava Desvio do Mar, para ser a rua de Aleixo Manuel, com casinholas de sapé, com cabras e cabritos pastando no matagal espesso.
Onde está hoje o templo da Candelária era mar. Todo esse vasto trecho que Vai da direita do atual largo de S. Francisco ao Campo de Santana, abrangendo a zona de S. Domingos, rua Marechal Floriano e Prainha, era uma imensa várzea pantanosa, cortada de valas e lagoas. No Catete talvez houvesse uma ou outra chácara. Botafogo, Andaraí, Tijuca eram pleno sertão.
A municipalidade rendia uma joalheria — trezentos e sessenta mil réis por ano, ou menos talvez, pois em 1678, segundo conta Moreira de Azevedo, a Câmara reclamava ao rei que, com aquele rendimento, não podia custear o aluguel anual de cento e cinquenta mil réis da casa do governador.
Que festas podiam ser aquelas que o cronista de 1641 descreve com tanta pompa de estilo e impressão tão deslumbradora?
A capitania era governada por Salvador Corrêa de Sá e Benevides, aquele ilustre varão brasileiro que, por três vezes, teve as honras do governo da cidade. Foi a 10 de março do ano seguinte da restauração que o governador recebeu a primeira notícia do formidável acontecimento.
Ao receber a grande nova da parte do vice-rei o Márquez de Montalvão, - Salvador de Sá manda que D. Antônio Ortiz de Mendonça, sargento-mor e governador da gente de guerra da cidade, convoque os oficiais da Câmara, às autoridades civis, eclesiásticas e militares para tratar de assumpto importante no Colégio dos Jesuítas.
O assumpto ficou, em segredo. O governador temia manifestações hostis da gente espanhola e dos que pudessem ser simpáticos à Espanha. E, a cada pessoa que ia entrando no Colégio, Salvador de Sá chamava a parte, comunicava o acontecimento e recebia a adesão e, quando minutos depois, fez a comunicação oficial, os seus vivas a D. João IV foi entusiasticamente correspondida por todos.
Ao som dos vivas o povo juntou-se a porta do Colégio, sem saber porque, como, nem a quem se vitoriava tanto.
O governador empunha o pendão real da Câmara e, acompanhado das autoridades, sai pelas ruas em procissão, a dar vivas ao novo rei. Ao mesmo tempo, com todos tambores do presidio, manda lançar o bando pela cidade, comunicando aos povos a restauração do reino português. O bando ordenava que, naquela noite e nas duas seguintes (nas outras não, porque ia entrar a semana santa) pusesse o povo luminárias nas janelas e os navios e fortalezas dessem salvas de artilharia.
À noite, era a cidade um deslumbramento. O cronista descreve com tal calor a iluminação festiva, que a gente insensivelmente sorri diante tanta exageração. “Viu-se aquela noite a cidade toda ornada de luzes, tão brilhante de invenções, tão lustrosa de fogos e tão inquieta de vivas pelas ruas, e artilheira nos navios e fortalezas, que de uma parte parecia que o céu, havia transladado as estrelas nas janelas e de outra que a abraçada Troia se representava na confusão das vozes e repetições da pólvora”.
No dia 19 de março havia festa no convento de S. Bento. Eram 4 da tarde, estava a igreja cheia, o governador assistindo as cerimonias e Frei Manuel pregando, quando o templo se alvoroçou com a entrada precipitada de um ajudante do governo que vinha acompanhado pelo mestre de uma caravela naquele momento chegada do reino.
Trazia o mestre do navio duas cartas para Salvador Corrêa. Eram do rei. O frade suspende o sermão. O governador põe-se de pé, abre as cartas, “beijando e pondo sobre a cabeça a real firma que nelas viu”, lê para toda igreja a comunicação que D. João IV lhe fazia de ter subido ao trono de Portugal.
Um viva ao novo monarca reboa no templo. O governador abraça o emissário e, para dar-lhe um testemunho tangível da alegria que lhe ia n’alma, ali mesmo diante dos altares, dispensa-lhe os impostos do vinho que a caravela trazia.
Frei Manuel, que exaltava as santas virtudes do padroeiro do convento, dá outro rumo ao sermão, para louvar as virtudes humanas do ex-duque de Bragança.
Foi no último dia de março, dia de pascoa, que começaram as grandes festas. “A cidade se viu tão ornada de luminárias, - diz -fogosamente o cronista, que não fazendo falta o brilhante esplendor do Planeta Monarca, e substituídas as estrelas nas janelas e ruas formavam tantos cambiantes, tornassóis no vario das invenções, que se enredou o pensamento nas luzes, e se confundiu no número, pois o limitado do lugar parece que se dilatava com elas nesta ocasião”.
Aquela gente do passado, com toda a sisudez de costumes e toda a circunspecção de palavras e gestos era capaz de exagerar e de mentir como qualquer de nós.
O cronista seiscentista não se satisfez em afirmar como lá acima que as luminárias de copinho de azeite (não podiam ser outras naquela quadra) davam a impressão de que “o céu havia transladado as estrelas nas janelas”. Achou pálida a imagem e, com a maior sem-cerimônia desta vida, afirma que o sol, que ele bizarramente chama “Planeta Monarca”, nenhuma falta fazia diante do esplendor de tanta luz.
As festas começaram por uma encamisada. Era uma nota típica daquelas épocas. Nada mais que farsas representadas ao ar livre por criaturas fantasiadas conforme natureza do acontecimento comemorado.
A encamisada compunha-se de 116 cavaleiros e percorreu todas as ruas da cidade.
Deviam ter sido um sucesso sem par esses 116 cavaleiros andando carnavalescamente pelas ruas.
O cronista, com aquele exagero bem-aventurado, conta que eles se mostraram “com tanta competência luzidos, e tão lucidamente lustrosos, e tão lustrosamente custosos que nem Milão foi avaro, nem Itália deixou de ser prodigamente liberal, desejando cada um não somente exceder ao outro, mas ainda avantajar ao mais poderoso”.
A encamisada tinha, por chefes o capitão Duarte Corrêa Vasqueanes e o sargento-mor D. Antônio Ortiz de Mendonça. O próprio Salvador Corrêa de Sá e Benevides não faltou a ela. Lá estava encamisado também. Vestia de tela branca, “tão bizarro como alegre”, diz o escritor e, de pedaço a pedaço, em cada canto, em cada rua, agitava no ar o chapéu emplumado, berrando vivas ao rei.
Atrás ia a música em dois carros forrados de seda e enfeitados de flores. O cronista descreve a novidade com as pompas maiores do seu estilo ostentoso: “E para maior alegria se lhe agregavam dois carros ornados de sedas e aparatos de ramos e flores, e tão prenhados de música, que em cada princípio de rua parecia que o coro do céu se havia humanado; ação do licenciado Jorge Fernandes da Fonseca, e obrada com seus filhos únicos nesta arte, e que mereceu o louro, assim da invenção, como do sonoro”.
Como se vê os únicos músicos da cidade eram o licenciado Jorge da Fonseca e seus filhos.
Muito poucos; mas isso revelava já um progresso formidável, pois em 1584, ao que conta Fernão Cardim, nas Narrativas, só existia no Rio um musico apenas o noviço Barnabé Telo, que tocava berimbau!
A crônica descreve um por um os dias festivos. Na segunda-feira, primeira oitava da Pascoa, fizeram-se simulacros de combates. Tomaram parte nas escaramuças dois esquadrões postados no campo de Nossa Senhora da Ajuda e uma companhia de flecheiros com 118 homens. Comandavam-nos o próprio Salvador, vestido de tela encarnada e D. Antônio Ortiz de Mendonça.
Foi um lindo dia; muito povo, muitos soldados muitos tiros e muitos vivas.
No dia seguinte correram-se touros e o cronista julga indispensável dizer que se não deu nenhum desaire, nenhum desgosto.
Á quarta-feira houve jogo de carros.
Os jogadores dividiram-se em duas quadrilhas de quinze figuras cada uma, comandadas por Salvador Correa e Duarte Vasqueanes.
O dia que o povo esperava com ansiedade maior era o de quinta-feira. O programa oficial anunciava luxuoso espetáculo num teatro armado numa praça que a crônica não diz qual seja.
Mas a chuva desabou tremendamente. Apesar disso houve função, não no teatro, mas na sala mais vasta da casa do governador. Qual a peça? O narrador falia apenas em uma comedia, sem aludir ao título. Conta que houve “loa de muitos vivas a El-Rei Nosso Senhor” no começo e no fim da representação. Apesar disso foi um dia perdido: muita gente voltou para casa por não caber na sala da casa governamental.
“A sexta-feira, falia a crônica, foi força interpolar a festa, porque choveu tão rigorosamente que não, deu lugar a nada”.
Mas, no sábado, o céu limpou. O governador e povo vieram para as ruas ver correrem as manilhas, por vinte opositores.
O capitão Duarte Corrêa devia ter deixado em toda aquela gente uma impressão profunda. O cronista, contando-lhe as façanhas, diz que em todas as festas ele “luziu bizarro e bizarreou lustroso”.
O domingo foi o dia mais alegre de todas aquelas solenidades. Tudo quanto foi gente de posição e gente de dinheiro saiu às ruas em ruidosa mascarada, “vestida dê gracioso burlesco com notável regozijo”.
Só na segunda-feira as festas terminaram.
Terminaram com “um alardo que os estudantes ordenaram, dando mostras de que também, quando fosse necessário em serviço de Sua Majestade, saberiam disparar o arcabuz, como construir os livros”.
E aí está o que foi o imenso esplendor com que o Rio, em 1641, festejou a restauração de Portugal e a ascensão da casa de Bragança ao trono português.
A nós outros no século contemporâneo, do Rio maravilhoso da atualidade, o cronista anônimo, contando ingênua e exaltadamente aquelas maravilhas do seu tempo, fez-nos sorrir, como certamente, daqui a três séculos, os nossos vindouros sorrirão das descrições que fazemos das maravilhas de hoje.
Nenhum outro vassalo mais nobre e mais fiel poderia ter tido d. João IV, no Brasil, que aquela encantadora figura da história paulista que se chamou Amador Bueno. Pôde-se mesmo dizer que foi a mais bela fidelidade que o trono português, em todos os tempos, encontrou em terras brasileiras durante os séculos pesados do seu domínio: Até mesmo se pode dizer que foi a mais exemplar abnegação que uma metrópole já teve na política de uma colônia.
Na velha e aventurosa história de São Paulo, Amador Bueno é o homem de mais fascinadora originalidade – o que não quis ser rei, o que não foi rei porque não quis, recusando e repelindo a coroa que o povo lhe entregara, pura e unicamente pelo respeito e pela fidelidade ao seu monarca.
Tudo e tudo nesse singularíssimo episódio da nossa vida de colônia é novo e original: Amador Bueno não é somente o homem que se vê na estranha contingência de desembainhar a espada para defender-se do povo que o quer pôr no trono, e que foge, correndo pelas ruas, para escapar da multidão que lhe quer pôr a cabeça uma coroa de rei.
E não se pode dizer que a aclamação de Amador Bueno tivesse sido um desses lances de aventura de uma minoria audaciosa. Foi uma conspiração tramada com todas as regras e com todas as probabilidades de êxito que sempre tiveram as revoluções em que se insufla a vaidade popular. Quem saiu à rua para aclamar um rei paulista não foi um grupinho de amotinados, mas toda a população da capital São Paulo, orgulhosa já dos seus primeiros ensaios de arrojos pelo sertão e convencida do seu papel de povo que já pôde governar-se.
Ninguém dirá que Amador Bueno, recusando a coroa que lhe quiseram dar, receasse o malogro da revolução que pretendia eleva-lo ao trono. Era um homem inteligente, rico, já idoso, da mais alta estirpe e, certamente, conhecia como às palmas da mão o momento que se desenrolava. Sabia, de certo, que, se colocasse a cabeça a coroa de rei, ninguém lhe tiraria.
A situação geográfica de São Paulo era uma barreira a qualquer tentativa da metrópole para sufocar o novo reino. Fechado o porto de Santos, facilmente obstruível, nunca as tropas portuguesas chegariam acima, no planalto. Teriam pela frente não só a audácia aventureira do gênio paulista, que já naquele tempo se ensaiava para o grande lance das “bandeiras”, como a serra do Cubatão, ali atravessada qual muralha intransponível.
E, mais do que isso, havia a situação precária de Portugal. Em 1641, quando se deu o episódio de Amador Bueno, o reino português atravessava um dos períodos mais melindrosos da sua vida. Tinha acabado de libertar-se do jugo espanhol, e a preocupação, única, era solidificar a sua situação de país restaurado
Nas ocasiões difíceis atira-se, nos navios, a carga ao mar. A situação de Portugal era a de desdenhar a carga, para conseguir salvar a náo do Estado. Pernambuco, onde tanto sangue português foi derramado, no momento da ocupação flamenga, esteve para ser atirado às ondas. Na corte de, d. João IV pensou-se a sério em desistir dos direitos da capitania do Norte, em favor da Holanda, inimiga da Espanha. E, só não se realizou a desistência porque Pernambuco, na envergadura daço dos velhos heróis do Arraial de Bom Jesus, levantou-se para a guerra restauradora, após a saída de Maurício de Nassau.
O reino paulista não teria contra si embaraços sérios. Amador Bueno reinaria tranquilamente. E só não reinou porque não quis. E, a não ser nas razões de profunda obediência que, no tempo, os homens tinham pela entidade então divina dos soberanos, nenhum outro motivo se encontra para explicar a recusa do aclamado pelo povo de S. Paulo. Amador Bueno, apesar de paulista, era filho de d. Bartholomeu Bueno da Ribeira, espanhol. Sangue português tinha apenas o de sua mãe, da nobre família dos Pires.
Não só se pode também dizer que ele se tivesse acostumado a uma imperturbável obediência ao monarca de Portugal. D. João IV acabava de subir ao trono e havia sessenta anos que o reino português tinha a coroa subjugada pela Espanha.
Só mesmo um excepcional respeito à entidade do rei, respeito que lhe apagava o orgulho e as ambições, poderia ter influído na alma do velho fidalgo paulista para desistir da coroa que, a força, os seus patrícios lhe quiseram erguer a cabeça.
A cena, narrada por frei Gaspar da Madre de Deus, tem um sabor de curiosidade impressionante.
Ao dar-se, em Portugal, a revolução restauradora de 1640, os espanhóis que viviam em S. Paulo sentiram-se logrados. Iam perder os empregos, iam perder as posições e a Espanha perderia aquela maravilhosa região americana de fronteiras ainda desconhecidas.
E surgiu-lhes o plano admirável — declarar a independência da capitania, formando o reino de São Paulo.
O terreno parecia, de proposito, preparado para o êxito. A alma paulista, num caldeamento galopante, já tinha os germens de todas as qualidades e defeitos que a fizeram depois a grande raça brasileira: o arrojo, a resistência, a ambição, o orgulho, a vaidade, a constância, o pendor pelas grandezas e pelas aventuras.
E os espanhóis atiraram-se a estimular a vaidade do povo.
Não lhes, convinha aparecer. O movimento devia ter um caráter puramente nativista. A revolução devia brotar da própria terra, do próprio orgulho do povo.
E tudo foi feito engenhosamente para sacudir os brios dos futuros bandeirantes. S. Paulo era grande os filhos de S. Paulo tão grandes como a terra! Tinha vida própria, riqueza própria, sentimento próprio e não mais devia estar ao jugo de ninguém! Um povo com aquele arrojo, com aqueles dons de vitalidade, era um povo que podia governar-se! Já que a fatalidade o tirava do domínio da Espanha, por que voltar ao domínio português?! Por que não ser livre? Por que em vez de reconhecer os direitos de d. João IV não se entregava o cetro a um rei paulista, um rei que fosse dali que sentisse como o povo, que estivesse ao contato do coração popular? Por que não ser independente? Receio de Portugal? Ah! Ali hão chegariam nunca as tropas lusas! Bastava entupir a estrada de Paranapiacaba para que nenhuma hostilidade se temesse lá de cima, no planalto!
O fogo foi se alastrando no peito paulista.
E quem devia ser o rei?
Ai a habilidade espanhola culminou - Amador Bueno. Amador Bueno da Ribeira era, no tempo, uma das figuras mais preeminentes da capitania. Nobre riquíssimo, com estadão de fidalgo, de uma família numerosa e toda ela opulenta, o povo respeitava-o pelos seus títulos, pelo seu bom senso e pela sua riqueza.
Mas não foi nada disso que influiu no espírito dos espanhóis. Foi esta circunstância mais importante: Amador era filho de d. Bartholomeu Bueno da Ribeira, da nobreza sevilhana e sogro dos irmãos d. João Matheus Rondon e D. Francisco Rondon de Quevedo, fidalgos espanhóis que passaram ao Brasil quando, em 1625, vieram na armada castelhana que arrancou a Bahia do poder dos holandeses.
O nome de Amador Bueno tinha que ser recebido alegremente em toda a extensão da capitania.
Lançados sorrateiramente os germens da revolta, os espanhóis recolheram-se à sombra. O entusiasmo flamejou no coração paulista. Aquilo que se queria — deu-se: o movimento tomou a feição de puro nativismo.
Uma manhã o povo em massa corre a casa de Amador Bueno.
— Viva o nosso rei! Viva o nosso rei!
O fidalgo paulistano chega à escadaria exterior do seu solar para saber daquele rumor e da significação daqueles gritos.
— Viva Amador Bueno, nosso rei! Clama delirantemente a multidão, ao vê-lo.
Amador surpreende-se. É a única criatura que não conhecia os fins da agitação.
O seu rosto fecha-se, enrugado.
— Que quer isto dizer?
Avança a comissão dos chefes da revolta. O povo de S. Paulo não prestaria obediência ao duque de Bragança, elevado a rei de Portugal; tinha resolvido fazer a sua independência, constituir-se em reino próprio! Naquele momento, acabava de escolher o seu rei! E vinha aclama-lo, a ele Amador Bueno, rei de São Paulo!
— A mim?!
A multidão novamente repetiu o seu nome unido ao novo título que lhe davam.
A fisionomia de Amador fechou-se mais. Fez um gesto para falar. O povo silenciou, atento.
— Não quero ser e não serei rei! Viva d. João IV nosso soberano e senhor!
A onda popular estremeceu, num choque. Com tudo poderia contar, menos com aquilo. Pois havia alguém, no mundo, que recusasse uma coroa? Certamente a modéstia, as regras da galantaria, mandavam o aclamado esquivar-se no primeiro momento.
E o povo insistiu num brado uníssono:
— Viva Amador Bueno, nosso rei!
O fidalgo tornou a pedir silêncio.
— Não serei rei, já disse! Viva d. João IV, nosso senhor!
A multidão, enraivecida, avança até junto à escadaria de pedra. Ferve o tumulto. Uns querem chegar até perto de Amador para agredi-lo, outros a aclama-lo. Mas a onda hostil vai crescendo.
— Ou a coroa ou a morte!
Amador Bueno compreende a gravidade do momento. Recolhe-se ao interior da casa e fecha as portas e janelas.
Mas a onda continua a ulular aqui fora.
— Viva o rei Viva Amador Bueno!
Passam-se minutos, passam-se horas.
O povo continua a exigir a presença do fidalgo paulista.
Amador, lá dentro, percebe que não poderá continuar naquela situação aquela gente acabará por perder totalmente a paciência e agredi-lo ou matá-lo.
O remédio ali é fugir.
E, desembainhando a espada, esgueira-se a parede e escapa pelo portão do quintal.
Um homem do povo reconhece-o no momento da fugida e avisa aos companheiros. A multidão inteira desloca-se e segue o encalço do fugitivo, gritando:
— Viva Amador Bueno, nosso rei!
O velho paulistano estaca no meio da rua bradando com todas as suas forças:
Viva o senhor d. João IV, nosso rei e senhor, pelo qual darei a vida!
A onda popular investe a insulta-lo. Ele corre, corre. Lá adiante está o Mosteiro de S. Bento. Some-se pela porta do Mosteiro a dentro, fechando-a.
A multidão estaca diante das janelas, rugindo. O abade do convento, seguido da comunidade, desce para entender-se com o povo. Amador Bueno desiste da excelsa honra de ser rei. É leal, é fiel e acha que deve prestar obediência ao duque de Bragança, aclamado em Portugal com o nome de d. João IV! Que ninguém queira perturbar a nobreza, forçar a linha de conduta de um vassalo que deseja ser fiel ao seu rei!
O povo exasperou-se o abade manda chamar os sacerdotes mais respeitáveis da vila. Vêm todos. Com habilidade e palavras mansas serenam os ânimos populares. O rei é rei pela vontade divina! Foi Deus quem elevou ao trono o senhor d. João IV, pelos direitos sagrados da sereníssima casa de Bragança! É Deus quem não quer a coroa na cabeça de Amador Bueno!
O povo começa a dispersar-se contrariado, resmungando.
Ao fim do dia está tudo terminado. Os espanhóis tinham perdido a cartada.
Amador Bueno não foi rei porque não quis preferiu a fidelidade e a obediência ao seu monarca á grandeza sempre fascinadora de um trono.
Foi certamente o mais belo exemplo de fidelidade que já houve no mundo.
Quando, em 1664, Molíère escreveu Le mariage forcé, não lhe podia ter passado pela cabeça quanto f vinte e oito anos depois, num país remoto, de existência política ainda duvidosa, viesse a sua comedia servir de afronta aos sentimentos de um povo, no dia da morte do mais belo mártir da sua liberdade.
Ao guiar-se a gente pelo que conta Pires de Almeida foi aquele pequeno ato burlesco do maior poeta cômico francês que na noite de 21 de abril de 1792, a do sacrifico de Tiradentes, subiu a cena, para festejar a execução do grande rebelado.
A Inconfidência Mineira foi para o Conde de Rezende o resto de um banquete opíparo. O melhor das iguarias havia sido comido pelo Visconde de Barbacena e pelo vice-rei Luiz de Vasconcelos. O primeiro em Minas, o segundo no Rio, fartaram-se nos pratos ricos que os inconfidentes lhe davam, para subir no conceito da corte de D. Maria I, com a exibição de solicitudes exagerada, na jugularão dos crimes contra o trono.
Quando o Conde de Rezende chegou ao Brasil só havia migalhas sobre a mesa.
Mas o fidalgo vinha faminto. Aqueles restos serviam-lhe. E esmerou-se em quanto pode para mostrar a metrópole que, mesmo a simples sobejos, ele sabia dar tons de grandeza.
O que lhe caiu nas mãos, da Inconfidência, foi apenas a execução da sentença. Sobras de sobremesa...
Mas procurou comer o prato com todas as honras, com toda a sofreguidão e toda a gulodice de quem está estalando de fome.
O suplício de Tiradentes só teve aquela pompa aparatosa porque o vice-rei, invejoso das glorias do antecessor, quis mostrar a corte até onde ia o primor do seu zelo pelas cousas do Estado, o requinte dos seus ódios quando se ofendia a Coroa.
E foi subtil, e foi terrível nas minúcias beneditinas com que revestiu o espetáculo da morte. Mas apareceu um contrarregra escrupuloso de palco opulento que a autoridade máxima da realeza no Brasil.
Nada esqueceu e quase tudo inventou. A forca que deu ao alferes revolucionário tinha vinte e quatro degraus, a mais majestosa e mais alta forca que já se levantou sob os céus brasileiros. Não lhe bastaram as tropas de linha para dar a cidade, na manhã do sacrifício, o tom de alacridade dos festejos populares. Serviu-se ainda das forças auxiliares. Pareceu-lhe pouco que os magistrados montassem ginetes de raça. Marido ferrar de prata as cavalgaduras, cobri-las de mantas ricas e arreios próprios de nababos.
Nem ao menos das caudas dos cavalos se esqueceu andou enfeita-las de laçarotes esvoaçantes e de fitas cor de rosa.
Não se satisfez em engalanar de ramos as ruas. Obrigou o povo a enchê-las, a dar uma expressão de festa diante da forca do grande Mártir.
Achou pouco o “Te-Deum” solene que, á tarde mandou cantar no Carmo, em regozijo da morte dó que “conspirou contra a rainha”! Achou pouco o sermão de frei Fernando de Oliveira Pinto sob o tema o — Não traias teu rei e senhor, porque as águas do monte, os passaras do céu e os ventos da terra virão denunciar teu crime. Achou poucas as luminárias que fez Balthazar da Silva Lisboa, como presidente do Se \ nado da Câmara, ordenarão povo que pusessem nas janelas. Achou tudo isso insignificante e lembrou-se, e um espetáculo, onde a população inteira rebentasse em gargalhadas, na hora em que o corpo do inconfidente reduzido a postas, estivesse amontoado na carreta, para seguir para Minas.
E foi, ao que conta Pires de Almeida, com aquela peça de Moliére Le mariage forcé que se fez a grande afronta ao povo.
No Rio de Janeiro, naquela época, havia apenas um teatro, a Casa da Opera dos Vivos, ou Casa Nova da Opera, no largo do Carmo.
Ao que dizem os cronistas, a denominação Opera dos Vivos, servia para distinguir o teatro dos teatrinhos de bonecos que existiam pela cidade.
A Casa Nova da Opera havia sido criada por Manuel Luiz, que, no tempo dos vice-reis, exercia a função de porta-toalhas. Manuel Luiz veio para o Brasil com D. Luiz de Vasconcellos. Era apenas cabeleireiro, porém, tais jeitos tinham, tais maneiras e palavras, que se fez favorito de D. Luiz. O vice-rei era dado a mulheres. O cabeleireiro alcovitava.
Ou pelas virtudes da alcovitice ou por qualquer outra virtude, Manuel Luiz tinha no paço um prestigi0 excepcional. A Casa da Opera dos Vivos é uma consequência desse prestigio. Era o teatro chic frequentado pelos grandes e até pelos vice-reis.
Vieira Fazenda enumera as figuras do elenco a Lapinha, a Marucas, o José Ignácio da Costa, com o apelido pouco lisonjeiro de Capacho, e o Ladislau, o cômico querido e festejado da plateia, aquele que a fazia vir abaixo em estrondos e aplausos quando, de violão ao peito, se punha a cantar e a dançar no palco.
Naquele tempo (que luxo!) O paladar do público exigia Molière. O repertório de Antônio José cheirando a Alecrim e Mangerona já não satisfazia ao bom gosto da gente grada.
Quando o Conde de Rezende pensou em acrescentar às festas com que ia matar Tiradentes, uma representação teatral, foi do teatro de Manuel Luiz que se lembrou.
Mas a Casa da Opera dos Vivos era pequena para o aparato que o vice-rei queria dar ao espetáculo.
Fronteiro a capelinha da Lapa dos Mascates, nos fundos da atual igreja da Cruz dos Militares, existia um terreno vago que se prestava lindamente a um palco ao ar livre.
Manuel Luiz lembrou-se dele. Armou se o tablado com taboas e sarrafos oferecidos pelos madeireiros da travessa do Paço dos Governadores, puseram-se palmas e bandeiras por toda a extensão da área baldia, enfeitou-se o palco com cortinas de seda adamascada e sanefas de cetim-Macau oferecidas “pelos mareantes das índias, aqui estacionados em despejos de suas embarcações”.
À tarde, enquanto o vice-rei e a esposa e as altas dignidades assistiam aí “Te-Deum” que se cantava no Templo do Carmo, saia a rua o bando anunciador do espetáculo da noite Eram "três as principais figuras do entremez o gracioso e dois barbas, o primeiro vestido de arlequim e os segundos enfronhados em negro camisolão, burlescamente sarapintado, tendo ambos na cabeça um longo chapéu afunilado”.
O bando andou pela cidade até o anoitecer, aos rufos dos tambores, as gargalhadas e as chufas dos garotos.
À noite abriu-se o palco aos olhos da multidão Moliere foi certamente assassinado como, ao meio-dia, caíra assassinado o pobre Tiradentes.
Não sei qual a distribuição que Manuel Luiz deu a Le Mariage Forcé. Não sei se Dorimena, a noiva de Esganarello, foi feita pela marrucas ou pela Lapinha. Uma afirmação, porém, se pode fazer com toda segurança: no fim do espetáculo, o Ladislau, o mimo dos cômicos, dançou e cantou aos aplausos delirantes da plateia.
O jantar em casa de Victor Hugo
Ao que parece, é Ernesto Mattoso, nas Coisas do meu tempo, quem reduz às suas justas medidas daquele episódio, que anda por aí muito mal contado, do jantar de Pedro II em casa de Victor Hugo.
Dos episódios da vida do nosso segundo imperador é esse o de maior vulto, ou melhor, aquele em que os cronistas encontraram mais vastos elementos para avultar. São duas grandes entidades em contato, são duas majestades se defrontando: a do gênio, na figura universal do poeta dos Châtiments; a do trono, na serena simplicidade do monarca brasileiro.
Mas, a ser verdadeira a história como ela anda por aí nas crônicas, nos registros de curiosidades dos jornais, revistas e almanaques, é a gente levada a fazer jornais, revistas e almanaques, e a gente levada a fazer da educação de Pedro II um juízo muito precário e pouco lisonjeiro, quando, todos os tragos de sua vida, revelam que, a par de sua encantadora singeleza, ele foi um dos homens mais finos do seu tempo e um dos varões de maior austeridade e circunspecção que já empunharam um cetro.
E como se conta por aí o tal jantar?
Um dia, o de 22 de maio de 1877, Pedro II, às nove horas da manhã, apresenta-se em casa de Victor Hugo, em Paris, a rua d’Eylau. Conversam longamente. No correr da palestra, o imperador fixa o olhar numa mesa, onde repousa um volume da Art dêtre grand pére. O autor da obra levanta-se, apanha o livro e molha a pena.
— Que Vai fazer? Pergunta-lhe o monarca.
— Apenas escrever dois nomes, o vosso e o meu responde o escritor.
D. Pedro sorri satisfeito.
O autor dos Miseráveis escreve: “A d. Pedro de Alcântara — Victor Hugo”. O imperador recebe o livro alegremente.
— Esqueceu-se da data, diz.
Victor Hugo escreve a data.
— Eu desejava, fala d. Pedro, um dos vossos de cenhos.
O poeta dá-lhe uma vista do Castelo de Viendein.
Jeanne, a neta do escritor, entra na sala. D. Pedro, gentil, pede fidalgamente:
— Dê-me a ventura de ser apresentado a Mile Jeanne.
Victor Hugo, com ternura de avô que quer deslumbrar a neta, dá um tom solene a voz:
— Jeanne, apresento-te o imperador do Brasil!
A menina fita o monarca, surpreendida, e dá ingenuamente:
— Mas ele não tem a vestimenta.
Risos.
D. Pedro segura as mãozinhas da criança.
Beije-me, mademoiselle.
Ela entrega-lhe o rosto.
— Abrace-me, aperte-me o pescoço, insiste o velho.
A menina afoga-o nos seus bracinhos. Entra Georges.
— Sire, diz o poeta, apresento o meu neto a vossa majestade.
— Aqui não há senão uma majestade: Victor Hugo, replica o imperador.
O velho escritor comove-se:
— Sire, sois um grande soberano.
E d. Pedro chamou para o seu lado o pequeno Georges e acariciou lhe demoradamente os cabelos.
Até aí não há nada mais cavalheiresco, nada mais correto.
Mas, no fim da visita o imperador pergunta ao dono da casa:
— A que horas janta?
— As oito horas.
— Virei um destes dias pedir-lhe um jantar.
— Quando quiserdes; sereis bem-vindo.
E, alguns dias depois, quando Victor Hugo entrou á noite em casa, encontrou d. Pedro II, acompanhado do visconde de Bom Retiro.
— Vim jantar, disse sua majestade, e trago comigo um dos meus melhores amigos.
Os cronistas veem nesse gesto de d. Pedro uma alta expressão de superioridade. O monarca brasileiro era um homem de tão encantadora bonomia que, além de se convidar para a mesa do escritor da Notre Dame, apresentou-se inesperadamente e levando um companheiro. Quis assim, com esse rasgo de camaradagem, mostrar a sua infinita admiração pelo grande vulto da literatura francesa e dar também um atestado eloquente de que, apesar de testa coroada, era uma criatura de extrema simplicidade.
Mas, senhores, isso não é ser simples, é ser simplório.
E Pedro II era um homem culto, inteligente, e, principalmente, educado. Não se convidaria para jantar em mesa nenhuma. Quando quisesse distinguir uma criatura com a sua admiração, com a sua intimidade, levaria essa criatura para a sua própria mesa.
Devia ser um homem com a noção da medida e a noção dos meios. A Europa não é Brasil, onde quem chega à nossa casa, a hora das refeições, almoça ou janta.
Devia saber e sabia as exigências sociais do ambiente francês. Na França, principalmente na França, ninguém se apresenta em casa alheia para almoçar ou jantar, sem aviso prévio e ainda mais com um companheiro.
Seria uma gaffe incompatível com o cavalheirismo do nosso monarca.
E o curioso em toda essa história, é que, quem concorreu para o seu desvirtuamento, foi o próprio Victor Hugo.
Tudo que se conta a respeito do celebre jantar foi tirado do diário do criador dos Miseráveis.
Lá estão, uma por uma, as palavras de Victor Hugo:
“Ele (o imperador) perguntou-me: — A que horas janta? — Às 8 horas, respondi. Ele disse-me: — Virei um destes dias pedir-lhe de jantar. — Quando quiserdes, sereis bem-vindo, retruquei”.
E mais adiante:
"Alguns dias depois, entrando para jantar, encontrei em casa o imperador com o visconde de Bom Retiro. É um homem bastante distinto.
— Senhor Victor Hugo, disse-me ele, vim jantar consigo e trago um dos meus melhores amigos”.
É horrível. Como lá está no diário do poeta, o nosso segundo imperador representa um papel tristíssimo.
Mas teria o escritor francês a intenção de diminuir e amesquinhar o monarca brasileiro?
Nenhuma.
Em primeiro lugar, o que lá está escrito são notas rápidas de um diário, simples lembrete a memória, para uma posterior explanação. Não é nada definitivo. Em segundo lugar, é muito perigoso acreditar a gente no que dizem os poetas.
Victor Hugo, além de ser uma criatura fastidiosamente imaginosa, tinha o culto ardente do seu eu. Sabia-lhe bem fazer supor que o seu prestígio era tanto que os testas coroadas se convidavam para a sua mesa, e, melhor lhe sabia se, aqui fora, se acreditasse ser a sua mesa tão opulenta que podia receber de improviso a honra de um imperador.
Ernesto Mattoso é quem reduz o episódio às verdadeiras medidas. E redu-lo pelo roteiro da versão que lhe veio do testemunho do visconde de Bom Retiro.
Ao chegar a Paris, em 1877, Pedro II fez saber a Victor Hugo quanto lhe seria agradável um contato amistoso. O escritor, em termos gentis, mandou dizer ao imperador que os seus credos políticos lhe impediam de ir ao encontro de monarcas, mas, se d. Pedro lhe quisesse dar a honra de falar-lhe, ele estaria em Versailles, em dia de sessão do Senado.
O imperador foi a Versailles Não houve, porém, sessão; Victor Hugo não compareceu.
No dia seguinte, pelas nove horas da manhã, Pedro II foi bater à casa do poeta.
Aquelas cenas do oferecimento da Art d’être grand-père, do desenho, das caricias feitas a Jeanne e Georges, são verdadeiras.
Ao erguer-se para sair, o imperador não pediu jantar nenhum. O que fez é o que há de mais gentil e mais fidalgo. Com a mão do poeta nas suas, disse:
— Agora os seus escrúpulos devem ter desaparecido; fui eu que vim visitá-lo. Não há mais razão para privar-me de sua visita. Não quero deixar Paris sem o grande prazer de jantar em sua companhia. Fixe um destes dias para vir jantar comigo no meu hotel ou onde melhor lhe convier.
Victor Hugo, encantado com a cortesia, respondeu:
— Sire, nesta casa janta-se sempre às oito horas.
O poeta insistiu depois no convite. Ficou então assentado que seria numa terça-feira, dia em que Victor Hugo costumava receber amigos a sua mesa. O fato de ter sido o jantar numa terça-feira, dia de recepção em casa do poeta, mostra que houve combinação.
D. Pedro apresentou-se acompanhado do visconde de Bom Retiro, como avisara anteriormente ao dono da casa. Um imperador não pode apresentar-se sozinho, como um mortal qualquer, num jantar de certa cerimônia.
A mesa — vários amigos do escritor e, entre eles, intimíssimo Auguste Vacquerie.
Ao champanhe, Hugo brindou o monarca. Pedro II respondeu exaltando o poeta.
Palestrou-se até meia-noite. À meia-noite ceou-se. Só a uma da madrugada o imperador se retirou para o seu hotel.
Assim é razoável. Assim deve ser verdadeiro.
Os canaviais de Fernandes Vieira
Fernandes Vieira, naquela noite, no seu engenho S. João, reunia os chefes da revolta. Tinha-os convocado, um por um, para que ouvissem e resolvessem sobre aquela tremenda ordem secreta de Teles da Silva, o governador português na Bahia, determinando que se incendiassem todos os canaviais de Pernambuco, para que os holandeses, desiludidos de ressarcir os prejuízos da guerra, abandonassem a capitania conquistada.
Era para além dos meados de 1646. Estava-se no período mais sangrento da restauração pernambucana. A guerra contra o domínio flamengo estalara um ano antes nos sertões de Pernambuco e nas capitanias vizinhas, como um desabafo brutal de oprimidos contra opressores.
Mas, desta vez, ao contrário de quinze anos atrás, no tempo da invasão neerlandesa, a sorte das armas sorna francamente aos brasileiros.
A vitória estrondosa das Tabocas enfraquecia os unimos batavos, inflamando os ideais dos nossos.
A reconquista dramática de Casa Forte mais vivamente atiçara o valor dos reivindicadores de terra. Blaer, o feroz, o flagelo dos nacionais, não mais metia medo a ninguém: tombara morto por uma descarga em caminho de Serinhaem. O sitio de Nazareth passara às mãos dos brasileiros pela traição do major Hoogstraten. O forte Maurício, depois de um cerco de mais de três meses, também caia as armas dos patriotas. Cristóvão Lins, à frente de seu bando, reconquistara Porto Calvo.
Revezes muito pouco, e, o maior deles, o de Serrão de Paiva, com os seus navios destruídos pela esquadra de Lichthard.
Mas a chama de independência ardia no coração de todos os filhos da terra. Na Paraíba, Cosme da Rocha, Francisco Leitão, Rodrigues Vidal, Simão Soares tinham levantado a resistência do Arraial de Santo André, a guisa do Novo Arraial do Bom Jesus, das vizinhanças do Recife.
O domínio da Holanda em Pernambuco sofria golpes profundos. Olinda havia caído á intrepidez de Soares Barbosa; na Várzea, os restauradores conquistaram, dia a dia, as posições mais estratégicas.
Podia-se dizer que os flamengos no Recife eram senhores de um presidio. A situação da cidade ia além das forças humanas. Ninguém podia andar nas ruas que não fosse baleado pelas emboscadas dos insurgentes. Um púcaro d’água custava sempre a vida a quem ia busca-lo às fontes. Morria-se de fome e de sede em plena rua. O cerco dos pernambucanos cada vez mais, apertava a cidade num elo de tormentos.
E era justamente naquela ocasião, quando os revezes e o desanimo abatiam as almas holandesas, que estalava nas hostes restauradoras aquela ordem secreta de Teles da Silva, mandando incendiar os canaviais da capitania!
— Quero ouvir-vos a um por um, disse Fernandes Vieira na larga sala da casa de engenho, iluminada a archotes. Não quero executar a ordem do governador geral sem primeiro saber o que pensais.
E, diante do silêncio dos chefes, voltou-se para a direita, apontando:
— Vidal de Negreiros, falai!
A figura morena do guerreiro paraibano ergueu-se. Achava que se não devia executar a ordem. Era insensata. Era absurda. A destruição dos canaviais não prejudicava os usurpadores flamengos que os não haviam plantado e sim os filhos da terra que os custearam, esperando os lucros certos da safra. Queimar os canaviais era empobrecer a guerra.
— E empobrecer a capitania! Exclamou fortemente Soares Moreno.
— Até parece o propósito de aniquilar-nos! Disse Borges Uchôa, exaltadamente.
Vidal de Negreiros, com a mão espalmada, pediu silêncio. E falou:
— Não podemos duvidar, um só instante, das intenções de Teles da Silva para conosco. São as mais puras, as mais sinceras.
— Essa ordem faz duvidar dessa sinceridade e dessa pureza, asseverou Cordeiro Mendanha, com ardor.
Negreiros insistiu:
— Não podemos duvidar, apesar da ordem.
E, durante algum tempo, só a sua voz ressoou na larga sala que os archotes iluminavam. Ninguém, mais do que Teles da Silva, era partidário da reconquista da terra brasileira assolada pelo domínio batavo. Todos aqueles que estiveram na Bahia, em combinações com o governador geral, sabiam disso abertamente. Mesmo contra as ordens da corte portuguesa que, por interesses políticos, não se declarava a favor da revolução restauradora, Teles da Silva, até com os riscos da censura de d. João IV, estava, desde o começo, dando ocultamente a insurreição tudo que lhe era possível dar. Devia-se fazer justiça ao governador geral! Aquela ordem era absurda, violenta, inoportuna, contraria aos interesses da guerra, mas ninguém podia negar que ela fora ditada pelo bom patriotismo do governador. Imaginava Teles da Silva que, com a destruição dos canaviais pernambucanos, mais prontamente conseguia a retirada dos holandeses. Era um erro. Que se lhe não negassem, porém, intuitos sinceros!
Francisco Beranger, sogro de Fernandes Vieira, ergueu-se na austeridade patriarcal das suas barbas brancas:
— Penso que a ordem do governador geral não deve ser executada.
E, ouvido em silêncio pelos guerreiros, falou por muito tempo. Qual era o intuito de Teles da Silva?
Destruir, nos holandeses, as esperanças de ressarcir os prejuízos da guerra, tirando da futura safra de açúcar os lucros esperados. Essa razão, porém, não podia existir. Não podia existir porque os canaviais estavam, todos eles, nas mãos dos pernambucanos. O domínio holandês atualmente residia na pequena faixa de terra da cidade do Recife. O Conselho dos Dezenove devia ter absoluta certeza de que as suas armas não mais avançariam um palmo de conquista pelo sertão. Só os filhos da terra, só eles, os reivindicadores, teriam que pender se se destruíssem os canaviais, porque só eles esperavam aproveita-los. O momento era de absoluta angustia para os flamengos. A desmoralização das tropas intrusas era completa. No Recife morria-se de sede e fome. As esperanças estavam de todo mortas.
E, com a voz pausada, sonora e firme.
— Pois no momento em que infligimos ao inimigo as mais duras derrotas, no momento em que a vitória se coloca ao nosso lado, é que vamos destruir aquilo que conquistamos, apenas para apagar aos holandeses uma esperança que eles não têm, nem podem ter. Acho que não se deve executar a ordem.
E, com a mesma serenidade e a mesma firmeza.
— Teles da Silva está na Bahia, nós estamos aqui. Nós é que sabemos o que se deve fazer. Acredito que, se o governador geral aqui estivesse, conhecendo como nós a situação, nunca escreveria tal ordem. Destruir os canaviais é destruir a nós mesmos, que amanhã não teremos de onde ressarcir os sacrifícios da guerra.
Ergueram-se todos, aplaudindo-o.
— Não será executada a ordem, disse gravemente Fernandes Vieira.
A reunião desmanchou-se. Os guerreiros e os senhores de engenho vieram para o grande avarandado, onde a brisa da noite soprava levemente. O céu estava límpido e brunido, com todas as estrelas. De além, dos lados do Novo Arraial do Bom Jesus, chegavam apagadamente os sons de uns tiros de fuzilaria. Era, de certo, alguma escaramuça dos insurgentes contra os holandeses.
Vidal de Negreiros aproximou-se de Fernandes Vieira:
— Acho-vos silencioso, apreensivo. O chefe abalou-se com a ordem de Teles da Silva?
— Profundamente, respondeu o outro. Estou a pensar o que não irão dizer os meus inimigos.
— Por que?
— Porque não executo a ordem do governador geral.
— Não compreendo.
— Irão dizer que a não executo porque tenho canaviais.
— Mas a ordem recebeu a repulsa de todos os responsáveis pela guerra. Foram eles que a repeliram.
— Mas, unicamente sobre mim cairão as culpas. A maledicência visará somente a minha pessoa.
Os guerreiros e os senhores de engenho preparavam-se para partir.
— Volta hoje para o Novo Arraial do Bom Jesus? Perguntou Vieira a Negreiros.
— Se vossa mercê não volta e me dá hospedagem por esta noite, ficarei.
— Voltaremos amanhã ao nascer o dia.
— Está bem.
Minutos depois Fernandes Vieira desaparecia.
Negreiros ficou sozinho a um canto do avarandado, gozando a frescura da noite e as estrelas do céu. Muito tempo ali ficou, como num repouso, à espera do dono da casa. O cansaço rendeu-o: fecharam-se lhe os olhos.
Mas um clarão rosado, longínquo, foi tingindo pouco a pouco as linhas do horizonte. Ele despertou.
Ficou de pé, a olhar. O clarão crescia, alastrava-se, colorindo o céu. Era um incêndio, ali perto, devastando certamente as matas dos arredores.
Vidal saiu para o terreiro.
Viam-se, á distancia, as labaredas cada vez mais afãs, lambendo o espaço. Que seria aquilo? Alguma sortida, alguma escaramuça dez pernambucanos contra o inimigo?
O vulto de Fernandes Vieira apareceu a dois passos.
— Vede, chefe!
— Estou vendo, respondeu Vieira.
— E sabeis o que seja?
— Os meus canaviais. Incendiei-os.
Vidal de Negreiros recuou, aterrado:
— Incendiou-os?
— Para que ninguém diga que eu tive interesse em não executar a ordem de Teles da Silva.
— Mas vossa mercê, com isso, perde muito. Fernandes Vieira calou-se e, depois, como se as palavras lhe saíssem mutiladas do fundo d’alma:
— Sim. Uns duzentos mil cruzados.
Naquela obra prima de Swift — Viagens de Guliver - um simples decreto mandando quebrar os ovos pela extremidade mais delgada, desencadeou entre o país de Blefuscu uma guerra feroz e encarniçada que, por longos e longos anos, ensanguentou os dois impérios...
Um nada. Uma frivolidade. Uma insignificância. Mas, numa terra em que a estatura física dos homens não ia além de seis polegadas, só motivos daquela ordem podiam provocar as catástrofes.
Ao passar os olhos por aquela pendenga que tiveram o bispo e o deão desta cidade, quase no fim do século XVIII, tive a impressão de que, se os nossos homens daquela época não eram fisicamente de estatura liliputiana, moralmente, mentalmente, tinham a medida física do povo do país bizarro de Swift.
Uma frivolidade, uma insignificância, um nada, fez desabar nesta cidade durante três anos 1781 a 1783 — uma barulhada horrível, em que se mexeu todo o cabido, mexeu-se o clero e o vice-rei e a corte portuguesa e até a rainha de Portugal.
O desembargador José Feijó de Mello era de estatura tão pequena que dava abaixo dos ombros dos homens medianos. Como todas as criaturas a quem a natureza minguou o tamanho, era nervoso, açodado, irritável, brigão. E ninguém lhe tocasse na pequenez física, ninguém fizesse a alusão mais vaga ao seu vultozinho de criança entanguida. Ameaçava, brigava, perdia as estribeiras, perdia a compostura.
Aconteceu que, no domingo de Ramos de 1781, o magistrado, ao terminar a missa na Sé, encaminhou-se, como bom católico, para o altar em que se distribuíam as palmas comemorativas do dia em que Jesus entrou ruidosamente em Jerusalém.
A distribuição era feita pelo bispo.
Naqueles tempos as palmas eram longas, muito longas, tal qual se apanhavam na floresta.
Diz o bispo que, quando viu à sua frente a figura pequenina do desembargador, de braços estendidos, quis dar-lhe uma palma menor. Não o fez para não parecer uma alusão à sua estatura minguada. Entregou-lhe a palma que tinha nas mãos. Era duas ou três vezes mais alta que o magistrado. A igreja estava cheia. Nesses dias não há meio de conter as inconveniências populares. E, quando o desembargador tão baixinho, foi empunhando a palma tão comprida, o povo rompeu incontidamente, inesperadamente, numa gargalhada.
O magistrado era uma pilha, não se conteve. Agarrou o ramo, quebrou-o brutalmente nos joelhos e atirou-o aos pés do bispo. E saiu imediatamente do templo, empinado, rugindo, chispando ameaças.
Um nada, uma insignificância, um motivo de Liliput. E daí se desencadeou toda a borrasca.
Na vida das aldeias as fogueiras ardem sempre porque há sempre quem as sopre. Em 1781, o Rio de Janeiro não ia além de uma aldeia.
E havia gente interessada em que aquela fogueira crepitasse com bom fogo e boa lenha. Era o deão da Sé, o reverendo Pedro José Augusto.
Havia muito tempo que ele trazia o bispo atravessado na goela. Ainda puro motivo liliputiano: o deão chegara de Lisboa às nove da noite e, mal foi saltando, correu à fazenda do bispo, no Rio Comprido, para visitá-lo; o prelado, ou porque já estivesse recolhido, ou por outra razão qualquer, mandou-lhe dizer pelo lacaio que estava no banho. No outro dia o bispo Vai visitar o deão. Eram quatro da tarde. O deão manda dizer ao bispo que estava a banhar-se.
Daí por diante começou entre os dois uma guerra surda.
As picardias são de uma infantilidade de provocar o riso. O deão nunca está a postos para receber o seu superior nos dias em que este vai á Sé. Se o prelado vai entrar pela porta da frente, ele corre para a Porta da esquina, desculpando-se depois.
— Pensei que vossa reverendíssima fosse entrar por ali.
Ao estalar na igreja o destempero do desembargador Feijó de Mello, o deão saiu pela cidade, a soprar a fogueira do escândalo. Havia sido de proposito, sim! Fora calculadamente que o bispo dera a palma comprida ao magistrado, para expô-lo ao ridículo diante do povo!
Não sei se foi o próprio desembargador a queixar- se, o certo é que a notícia do choque entre o juiz e o prelado, chegou a Lisboa, aos ouvidos da corte. Não há rastro de nenhuma providência.
Ao aproximar-se a semana santa do ano seguinte, o deão, naturalmente para evitar que os homens de pequena estatura se melindrassem com palmas compridas, de parceria com o cônego José de Souza Pizarro e o mestre-escola José Coelho Peres de França, propôs, em reunião do cabido, que os ramos a distribuir no domingo comemorativo da entrada de Jesus em Jerusalém, fossem pequenos, feitos de pontas de palmas, ornados de flores. O cabido concordou. Chamou-se o florista e fez-se a encomenda.
Mas o florista antes de começar o trabalho foi conversar com o bispo. O bispo tinha na goela, atravessados, o banho do deão às quatro da tarde e a desfeita do desembargador em plena igreja.
— Não senhor, não consinto. As palmas têm de ser como eram: compridas, bem compridas. Quem nasceu mirrado que não vá à igreja recebê-las.
Era uma criatura de maus fígados, o deão. Ao saber da reprovação do bispo, interpela-o, insulta-o, na sacristia, diante dos cônegos, dos outros padres. O relatório do vice-rei Luiz de Vasconcellos diz que o, bispo suportou com mansidão os insultos. É possível.
Mas o bispo era também teimoso. Diminuir as palmas não diminuía, mas já que insistiam em que elas tivessem enfeites, os enfeites não seriam flores como o deão propusera. Seriam laços das folhas das próprias palmas. E mais: elas teriam as pontas prateadas. E, para que se não dissesse que -e ia sujeitar o cabido a. uma despesa maior, ele pagaria do seu bolso as palmas e os enfeites.
Entre aqueles dois cabeçudos abriu-se um abismo mais profundo que o que haviam cavado os banhos das nove da noite e das quatro da tarde.
O deão não era homem para conter impulsos e sofrer, no íntimo, efervescências de rancores. No domingo de Ramos, bem cedo, lá estava ele na Sé. Queria ver as tais palmas do bispo.
— Que bela porcaria! Exclamou ao tocá-las.
E aos cônegos, aos padres, e a toda a gente que entrava na sacristia, mostrava-as com grandes gargalhadas, amesquinhando-as desenvoltamente.
— Bela porcaria! Bela porcaria!
Disse a sua missa, foi depois ao coro e, a hora em que o bispo ia distribuir os ramos, retirou-se do templo com o cônego Pizarro, só voltando à tarde, quando não mais havia o que fazer. Uma infração gravíssima dos estatutos. Nos dias em que o prelado assiste na Sé, nenhum capitular pode faltar às cerimonias sem licença.
E aquela infracção tomava um tom de gravidade maior: era propositada, era acintosa.
Mas, ao que parecia, o intuito do deão era brigar.
O que se passou depois é de uma inconveniência e de uma grosseria incríveis.
Na quinta-feira santa, o bispo distribuía a comunhão ao clero e ao povo. A cerimônia era feita lentamente. O deão descobriu nos gestos lentos do bispo uma ofensa à sua pessoa e a sua dignidade. E sem receber a hóstia, retirou-se do altar e lá se foi para a sacristia a resmungar e maldizer.
No dia seguinte era ele quem cantava no ofício de trevas. Por pirraça, por vingança, pôs-se a cantar violentamente, apressadamente, desnorteando o coro. Duas vezes o bispo advertiu-o com calma. Na terceira bateu na cadeira, a voz alta:
— Devagar!
O deão parou imediatamente o canto, fechou o breviário, soprou a tocha que empunhava e, arrogantemente desapareceu pela porta da sacristia, onde ficou a bradar em tom de insulto.
Escândalo. A igreja inteira percebeu-o, diz o vice-rei no relatório enviado a corte.
Mas, o que a toda gente causava estranheza e espanto, era a frouxidão do bispo. Nem uma medida repressiva, nem uma palavra de censura. Cabido, clero, o mundo das beatas, a cidade religiosa, cortavam a pele do bispo: — estava com medo do deão.
Mas, no domingo da Pascoa, quando os sinos repicavam festivos pelos ares, a cidade teve a surpresa brutal: — o bispo havia mandado recolher o deão na fortaleza do Castello e o cônego Pizarro na ilha das Cobras.
Toda aquela serenidade, aquela aparente frouxidão do prelado, eram a calma do forte que sabe as armas de que dispõe.
Hoje, se o acontecimento se desse, haveria em todo o Rio um frisson de espanto. Naquela época, em que as novidades eram raras, a impressão devia ter sido de sobressalto. Dois padres presos, em fortalezas, por insubordinação!
Pode; não pode! É justa a prisão! E a discussão estalou no meio católico e fora dele. Vieram à baila Preceitos canônicos, resoluções de concílios, tricas de teologia, o diabo a quatro.
Podia. O ato do bispo estava dentro das leis eclesiásticas. Os estatutos da igreja, em falta como aquelas, davam-lhe poderes para impor a pena que lhe parecesse.
E o fogaréu cresceu, subiu, tomou proporções tremendas, dias depois, quando o deão saiu do xadrez.
Vinha tinindo de raiva, vinha pior que uma fera. Era um temperamento de arame farpado, o ministro da igreja.
E berrou clamorosamente. A violência que havia sofrido era indecorosa para a sua dignidade e para o direito canônico. Um deão-não podia ser metido nas masmorras de uma fortaleza! Ninguém podia ser preso sem culpa formada!
Ah! Mas o patife do bispo não ficaria a espalitar os dentes! Ia queixar-se às autoridades, a corte, à própria rainha, em Lisboa.
E, de facto, sem dar satisfações a ninguém, partiu para o reino.
As acusações que lá fez ao prelado, diante da corte, são tremendas. O bispo era um negocista: protegia uma fábrica de cera, da qual se fizera sócio. Não ia á Sé, não exercia as suas funções de sacerdote: vivia na sua fazenda do Rio Comprido, inteiramente esquecido dos seus deveres. Primava em ultrajar a dignidade da magistratura: e lá vinha em tintas fortes o episódio do domingo de Ramos com o desembargador Feijó, num luxo de minúcias, para mostrar o propósito do bispo em amesquinhar o magistrado. Era um desonesto: recolhia ao bolso as propinas das religiosas de Nossa Senhora da Ajuda, deixando as pobrezinhas em penúria. Não dormia em casa; saia horas altas da noite, para repousar em leitos duvidosos. Vivia em cenas galantes no meio de saias, em pátios de fazenda, onde se cantava e dançava.
E mais (esta é que foi a acusação tremenda): tinha uma “moça”.
Devia ser um espírito infernal, o deão, na urdidura de uma trama acusadora. O bispo viu-se em palpos de aranha. Luiz de Vasconcellos, o vice-rei, a quem a corte mandou averiguar da queixa, teve, no seu relatório, necessidade de estender-se em quarenta e cinco longos parágrafos, para pôr o bispo a salvo de penas.
O relatório do vice-rei, com a data de 18 de janeiro de 1783, é francamente apaixonado. Sente-se que não vai à missa do deão, preferindo e exaltando a do bispo.
Destrói uma por uma das acusações. A história da cera — uma infâmia, a das propinas das religiosas da Ajuda — uma mentira. Quanto ao caso do bispo não aparecer na Sé — invencionice pura. De facto morava fora da cidade a conselhos médicos, mas não descurava dos seus deveres.
Afirmar-se que ele, às vezes, não dormia em casa o que saia furtivamente para leitos estranhos uma calúnia. De facto, certa vez, saíra de noite para dormir em outra casa, mas na casa de sua velha mãe agonizante.
As cenas galantes no meio de saias, em pátios de fazenda — infâmia das mais baixas. O que houve é inocentíssimo: na quinta Sant’Anna, onde convalescia a mãe do prelado, uma senhora da mais alta sociedade e da mais pura reputação — D. Rosa, mulher do ajudante das ordens Camillo Maria Tonelet, executou, ao cravo, trechos de música e cantou. Mas nem o bispo estava presente.
Quanto ao episódio do desembargador Feijó (o vice-rei é francamente apaixonado) nada havia de amor mal; o magistrado de facto quebrara a palma na igreja, mas nunca por despeito ao bispo, mas porque lhe era mais cômodo transporta-la em pedaços para casa.
Na explicação da “moça”, Luiz de Vasconcellos detém-se em três capítulos. “Esta matéria é tão delicada, diz, para ficar ainda em dúvida, que, posto que cu a não tivesse, me não pareceu justo deixar de ouvir as mesmas pessoas que o deão aponta, debaixo do possível segredo que v. ex. (o ministro) me recomenda”.
A “moça” era uma sobrinha do bispo. E só com muito boa vontade se podia chamá-la de moça tinha já quarenta e dois anos de idade e eia uma senhora da “maior decência”, pobre, sem arrimo, que vivia na companhia da mãe do prelado.
Ao que parece o relatório do vice-rei salvou o bispo. Nada mais encontrei a respeito do caso.
O deão, que era português, esse ficou em Lisboa, a roer o seu ódio, o seu caso, caso que, por infelicidade, chegou até nós, para mostrar que, naquele tempo, havia homens fisicamente grandes, mas que, no fundo, eram pequeninos como a gente de Liliput.
Quando Joaquim Silvério dos Reis, na Cachoeira do Campo, a 15 de março de 1789, entrou no casarão em que morava o visconde de Barbacena, para denunciar a conspiração mineira, tinha apenas uma finalidade — livrar os costados da cadeia ou a cabeça da forca.
Contratador fraudulento da arrematação dos direitos de entrada na capitania de Minas, ou porque o negócio fosse mau ou porque não tivesse jeito para o negócio, em 1789 estava ele alcançado com a Real Fazenda em quase duas centenas de contos de réis, com o processo às costas e já com a intimação para entrar com o dinheiro. Ou pagava (e isso era impossível) ou a desgraça lhe desabaria sobre a vida: se escapasse da forca não escaparia da Costa de África.
Ao entrar no palácio do governador ia como esses desesperados que, entre duas soluções funestas, encontram uma terceira salvadora. A terceira solução era, para ele, o perdão da dívida.
Não foi a alma traidora de Judas que o levou a delatar a conjuração. Não foi a ambição de um prêmio que o fez contar o que sabia. Foi o instinto de conservação.
Quando chegou a presença de Barbacena tinha uma intenção única — salvar-se da morte ou do degredo africano que era quase a mesma cousa.
E poucos os delatores com a infelicidade de Joaquim Silvério. Sofreu as injustiças da opinião pública, como sofreu as ingratidões da rainha a queiri serviu.
A opinião pública, por deficiência de conhecimento dos fatos, vestiu-lhe a roupeta negra de traidor, quando ele foi apenas um delator. Odiou-o, repeliu-o, malquistou-o, fê-lo andar por Séca e Méca, às humilhações mais tristes. E para completar a obra, entregou-o a história coberto de lama.
A rainha, ou melhor, a corte de D. Maria I, só tarde e muito tarde lhe pagou o serviço da delação.
Desde os primeiros dias da sufocação da Inconfidência que se ouve a voz de Joaquim Silvério pedindo, rogando, suplicando ao vice-rei no Brasil e a corte em Portugal, que meçam o valor do seu serviço. É o clamor ansioso do desesperado que sabe que morrerá se lhe não derem a mercê. E, dia a dia, essa voz se vai tornando mais alta, mais súplice, mais comovedora. Não é um prêmio que pede, é o perdão para a sua dívida. É a vida enfim.
Mas os contratempos abafam-lhe todos os clamores. O vice-rei não lhe ouve a voz, a rainha está mais surda que um penedo.
Faz-se a devassa, os conspiradores são recolhidos às masmorras, constatam-se um por um os artigos de sua -denúncia.
Mas o reconhecimento da corte não vem, não vem a suspirada mercê da rainha.
Passam-se quase três anos, conclui-se o processo, lavra-se a sentença. Tiradentes sobe à forca, os outros conjurados seguem para o degredo, e ele pedindo, insistindo, com a trágica desesperação de quem sente a, morte diante dos olhos.
O governo, em vez de lhe mandar um consolo, uma prova qualquer do seu reconhecimento, continua a agir, a persegui-lo a processá-lo, como a uma criatura vulgar que nenhum serviço tivesse feito em prol do trono. Os seus bens são sequestrados, a sua prisão é decretada, constrangem-no a entrar para a cadeia.
Só em outubro de 1794, dois anos depois de concluído o processo da Inconfidência e de Tiradentes subir ao patíbulo, é que a soberana portuguesa, pela primeira vez, ouve a sua voz.
Assim mesmo porque teve ele a felicidade de comover o vice-rei do Brasil, o conde de Rezende. A correspondência do vice-rei, pugnando pelos direitos do delator, tem a data de 2 de maio de 1794. E uma página forte, feita de propósito para abalar uma corte. Mostra que Joaquim Silvério foi o “primeiro denunciante da conjuração de Minas”, que se conduziu “naquela gravíssima e arriscada conjectura com uma fidelidade propria.de vassalo de S. M. Fidelíssima”. Foi ele que, “apesar do iminente risco de sua vida, dos prejuízos de sua casa, e até da separação de sua família, visconde de Barbacena “os planos da conspiração”, as perversas e abomináveis máximas dos conjurados que, com o seu ilimitado desacordo, não só difundiam as suas erradíssimas ideias naquela capitania, mas até pretenderam infeccionar esta, a do Rio”.
E falando com a mais límpida clareza diz que Joaquim Silvério “justamente capacitado de ser relevante o serviço que fez à Sua Majestade” se considera “digno de ir a sua real presença (a de D. Maria I) ainda mais para conseguir tão grande honra, do que para suplicar a mesma Senhora o prêmio, que por esta ação, ele pudesse merecer da sua real e inimitável grandeza”.
E conclui afirmando que há na população um “reparo geral em se conservar nesta cidade como preso um homem que, pelas suas atendíveis e louváveis qualidades, se tem feito digno das maiores distinções”.
A recomendação do conde de Rezende surte efeito. A 4 de outubro do mesmo ano, a rainha, em consideração “aos distintos serviços” e á exemplar lealdade de Joaquim Silvério, mimoseia-o com o habito, da ordem de Cristo, com 200$000 de tença, pagos efetivamente.
Mas não é isso que ele quer. O que quer é o perdão da dívida, é livrar os costados do degredo africano ou a cabeça da corda da forca.
Em 14 do mesmo mês e do mesmo ano respira à vontade - consegue finalmente a graça almejada. O decreto manda levantar o sequestro e entregar-lhe “os bens apreendidos pela real fazenda pelo alcance de 167:553$770”.
Isso “como testemunho da real aprovação pelo fiel e louvável comportamento com que tem honrado o nome Português”.
Era de facto a vida que a rainha lhe restituía nas linhas rápidas do decreto. Mas não era tudo. Penosa como a Costa de África de que ele tanto procurou livrar-se, sentia, em derredor do seu nome, a repulsa viva dos homens no Brasil.
E o desgraçado imaginou que um título de nobreza podia influir no coração dos homens e acoberta-lo do desprezo. Pede a graça a soberana. Ela fala-o fidalgo da sua casa a 20 de dezembro do ano em que lhe perdoou a dívida.
De nada serve o título. Antes tivesse ido arrebentar ao sol da África, antes tivesse perdido a cabeça no alto de uma forca, pela culpa da dívida.
Quem o via — virava-lhe as costas, onde chegava — todo mundo fugia.
Não pôde mais pisar em Minas, não pôde morar no Rio. E lá se foi para o Maranhão e, assim mesmo, que a vida a que lá teve! — Odiado, humilhado, repelido como um cão leproso a que toda gente afugenta a pedradas.
Há no folk-lore indiano uma lenda ofuscada: Um poeta faminto estava uma vez a escrever um poema quando a morte o colheu, arrebatando-o para o céu. A vida do desgraçado mudou inteiramente. Em vez da amargura da terra, de desprezo dos homens, da luta, da fome, abriu-se-lhe diante dos olhos o esplendor maravilhoso das delicias paradisíacas. Era só estender as mãos — tinha profusas e inesgotáveis as mais raras graças celestes. E ele gozou, gozou, num entusiasmo, num enlevo, num transporte. Um dia, porém, (ninguém o pode deter) quis voltar à terra.
— Que vais lá fazer? Perguntaram-lhe.
— Vou concluir o meu poema.
O conto é uma síntese subtil, delicadíssima, da alma dos artistas. A obra acima de tudo. Aquele desgraçado que vivia a morrer de fome na terra e agora, no Céu, gozava deleites nunca imaginados, não vacila em abandonar tudo e a terra voltar de novo para, ao frio, a fome, a miséria, concluir o seu poema!
A, lenda é velha, velhíssima. Mas, nos tempos modernos, apesar de ser outra a feição da vida a feição pratica, ela tem um cheiro admirável de atualidade. O poeta de hoje é a mesma criatura dos tempos lendários — troca ainda os gozos paradisíacos pela realização da obra.
A poesia, como qualquer outra arte, é um fadário como outro qualquer. Mas não há ninguém satisfeito com o seu fado, não há ninguém que o não trocaria por outro mais risonho. Mas deem aos poetas, aos de índole, aos de raça, aos verdadeiros, toda a riqueza do mundo para que nunca mais pensem na gloria, que recusarão sem vacilar.
Embora não pareça verdade, os poetas de hoje são as mesmas criaturas incorrigíveis de antigamente.
Se são sentimentais, haja o que houver, sejam felizes ou desgraçados, vivam na opulência ou na miséria, têm que chorar, têm que atravessar a existência molhando as estrofes em lágrimas e lamúrias penalizadoras.
Se são ferinos, se são satíricos, mesmo morrendo a fome, mesmo contra o rei, mesmo contra Deus, sabendo mesmo que vão sofrer, sacrificando até amigos sinceros e amizades puras, não resistem à tentação da pilhéria contundente e do estro navalhante.
Devia ter sido um poeta de raça, o incorrigível poeta satírico Manoel Pessoa da Silva que, na noite de 2 de julho de 1846, produziu aquele formidável escândalo no teatro S. João, da Bahia.
Antes de dar o tal passo desastrado devia ter calculado uma por uma as consequências desagradáveis que sofreria. Amigos, certamente procuraram desviai-lhe os impulsos, mostrando-lhe as perseguições infalíveis que sofreria, a infalível sova de pão a que ia sujeitar o costado. Nada o demoveu. As estrofes malfadadas tinham-lhe vindo a inspiração e havia de recitá-las, ofendesse a quem ofendesse, sucedesse o que sucedesse, mesmo que ficasse com os ossos moídos de pancada, mesmo que recebesse pela proa uma carga mortal de chumbo.
O episódio é de uma intrepidez que se aproxima da loucura. Só mesmo a cabeça desvairada de um poeta, sob o ferrete irremediável do destino, seria capaz de conceber e realizar audácia tão impertinente.
Naquele dia a Bahia festejava a grande data da vitória decisiva dos seus exércitos independentes. Estava toda a cidade ressoante de pompa cívica. A noite haveria no teatro S. João um espetáculo de gala, com a presença do General Andréa, o presidente da província.
O General Francisco José de Souza Soares Andréa é um dos vultos interessantes do nosso exército pelo valor, pela excentricidade dos gestos, pelo humor excêntrico e pela violência aterradora dos atos. Era uma envergadura, inteiriça de déspota. Só sabia corrigir pela violência, pela tirania.
A vida dos homens desde que fosse uma vida insubordinada e revolucionaria, não tinha para ele importância alguma. Mandava-a liquidar com a despreocupação com que fumava um cigarro. Ou porque de fato tivesse valor, ou porque a sua energia sinistra fosse necessária naquelas épocas convulsionadas, o certo é que os serviços militares de Soares Andréa foram com frequência utilizados por Pedro I, na Regência que a princípio os desprezou e nos começos do Segundo Império. E foi justamente na Regência que o seu nome troou pelo país num clamor de maldição. A maneira brutal com que agiu na rebelião da Cabanada, no Pará, deu-lhe uma fama de espantalho.
Naquele ano de 1846, estava o General Andréa presidindo a Bahia, ao serviço da política dominadora na adolescência de Pedro II.
Com aquela fama atemorizante, era natural que a terra baiana o trouxesse atravessado a garganta. Mas ninguém era louco para acirrar a fera.
O espetáculo começou com todo o aparato de festa patriótica. O teatro, engalanado, não tem um lugar vazio. Ao aparecer Soares Andréa na tribuna governamental, rompe a música, sobe o pano e, diante da efígie do segundo Imperador, canta-se, de pé, o Hino Nacional.
Mal vão terminando as últimas estrofes e os últimos acordes, ouve-se uma voz gritar bem perto da tribuna do presidente.
— Peço a palavra!
Era o poeta Manoel Pessoa da Silva. A cidade conhecia-o pelas suas sátiras, pelos seus versos que sempre queimavam como ferro em brasa. E lá de cima, do peitoril do camarote, a sua voz reboou pela sala:
Mote:
Nunca mais o despotismo Regerá nossas ações,
Com tiranos não combinam Brasileiros corações.
Era uma das quadras da letra do hino que se havia acabado de cantar.
Silêncio completo. O poeta continua:
Glosa:
Pela marcha lisonjeira
Que leva o gênero humano
Hoje tentar ser tirano
É inaudita cegueira.
Ver-se-á frustrado o que queira Renovar o terrorismo;
Uma vez com heroísmo Conquistada a liberdade
Reger, dominar não ha de
Nunca mais o despotismo.
A alusão era claríssima. Os versos iam diretamente ao General Andréa. E o diabo do poeta que não tirava os olhos do General, como que a arremessar-lhe uma por uma as rimas, uma por uma as alusões.
E a voz, cada vez mais alta, cada vez mais inflamada, ressoava pelo teatro inteiro:
Erra o que, amamentado
Por leite do cativeiro,
Queira o Povo Brasileiro
Dominar pelo passado.
Vai caminho desviado
Nutrindo tais intenções,
Varie de opiniões,
Pense melhor e conclua
Que nunca vontade sua
Regerá nossas ações.
Na plateia havia um sussurro de inquietação. Os homens, as senhoras mexiam-se como sob a ameaça de uma tempestade que ia explodir. Estaria doido o Manoel Pessoa! Na tribuna presidencial os oficiais tinham-se erguido numa surpresa, estarrecidos.
E agora, com os olhos bem fixos no General Andréa, cara a cara, como num desafio, o poeta clamava:
Escoria da humanidade,
Que seu berço renegou,
Noutra terra nunca amou
Lealmente a Liberdade.
Um rumor abafado correu de ponta a ponta da plateia. Os corações como que pararam dentro dos peitos. O General era português; fizera-se brasileiro com a Independência.
Que corresse um homem lá em cima e arrolhasse a boca do Manoel Pessoa!
E o Manoel Pessoa, ardente, triunfante, prosseguia, mais alto, erguendo a voz:
Porém, calca-la não ha de
Nos que dela heróis se assignam;
Entre si eles se ensinam
De goza-la eterno jus;
São filhos da Santa Cruz
Com tiranos não combinam.
Ouviu-se na tribuna presidencial uma agitação de palavras. Era o filho do General, seu ajudante de ordens, em gestos assomados, resmungando, protestando. A plateia erguia-se, rumorosa, assustada.
Mas não havia ninguém para calar o maluco daquele poeta!
E o maluco do poeta, ufano, muito concho do seu papel, glorioso, impávido, continuou:
Este, que heroicos Baianos
Memoram tão nobre feito,
Seja profícuo preceito
À correção dos tiranos.
O teatro inteiro tremeu: o filho do presidente, na própria tribuna do pai, agitava ameaçadoramente um chicote.
Escarmente-os para que, insanos,
Não manchem nossos brasões.
Recitava o poeta, fogosamente.
Ninguém mais ouvia os versos. A inquietação vibrava nos olhares. O filho do General havia saído impetuosamente da tribuna, agitando o vergalho.
Só o Manoel Pessoa não se alterava. A sua voz era mais clara, mais límpida, mais reboante:
Vejam nele seus Mandões
Que, livres em peitos bravos,
Jamais podem ser escravos
Brasileiros corações.
E estava ainda de braço no ar, quando a vergastada lhe golpeou o rosto.
De ponta a ponta a sala estrugiu num protesto. Na plateia, nos camarotes, nos corredores, bengalas agitaram-se ameaçadoras.
— Não pode!
— Não pode!
— Covarde!
O barulho crescia; o rolo estoirava aqui, ali. O General Andréa ergueu-se da sua cadeira. Veio até o camarote, segurou o filho pelo braço e levou-o para a tribuna.
E depois voltando-se ao seu ajudante de ordens:
Mande começar o espetáculo.
Quando o espetáculo começou tudo havia voltado à calma.
Só o rosto do Manoel Pessoa estava em brasas.
Mais tarde voltava ele para casa, cercado de amigos. As chicotadas ardiam-lhe, faziam-no sofrer. Mas que diabo! Um poeta não deixa nunca de realizar o fatalismo dos seus impulsos.
Podia ter evitado, podia. Mas a dor das vergastadas era menor que a satisfação que levava n’alma de ter cumprido aquilo a que ele chamava o seu dever.
Esses poetas, esses poetas, são uns eternos poetas.
Das crianças do seu tempo, Pedro II foi uma das que menos brincaram. A sua meninice arrastou-se num ambiente de austeridade às vezes excessiva, na atmosfera amargurada que os vendavais da Regência anuviavam.
Depois do 7 de abril, com a retirada de Pedro I e da segunda imperatriz, o velho paço da Boa Vista deitou de ser um teto alegre, para transformar-se num casarão bocejante onde todos bocejavam.
Quando uma criança é cercada de muitos cuidados fica sisuda ou malcriada. Pedro II ficou sisudo. Desde os seus primeiros dias o pai entregou-o ao carinho maternal de d. Marianna Carlota Verne de Abreu, senhora de altas virtudes por quem o primeiro imperador tinha um respeito enternecedor. Dona Marianna, sentindo o peso da responsabilidade, excedeu-se em cuidados e mais solicitude teve, depois da Abdicação, quando o imperial menino, já órfão de mãe, foi surpreendido com a ausência do pai e da madrasta carinhosa, numa quadra de perturbações políticas, em que a Quinta de S. Cristóvão era às vezes abalada pelos pampeiros partidários que zoavam nas ruas.
O ambiente de apreensões que as Rusgas criaram, os excessos de vigilância que as incertezas políticas fizeram com que se cercasse o imperador menino, tiraram da meninice de Pedro II todas as expressões de estouvamento e de alegria ingênua que são o encanto das idades infantis.
Percorrendo-se as crônicas intimas da vida daquela quadra no palácio da Boa Vista, vê-se quanto foi monótona e arrastada a primeira idade de Pedro II.
Sua Majestade quase não brincou. Quando pequenino, as suas companheiras de folguedos eram as suas irmãs, as princesas d. Francisca e d. Januária.
Eram, porém, uns brincos enfadonhos. D. Francisca arranjava uma saia preta, muito comprida para fingir de padre. D. Pedro, e sua irmã Januária serviam de acólitos. Simulavam as cerimônias da missa, das procissões, dos batizados e outros ritos religiosos.
Quando d. Pedro foi crescendo, d. Marianna compreendeu que o menino tinha necessidade de recrear-se mais expansivamente. Chamou para as alamedas da Boa Vista os meninos que lhe pareceram mais dignos de brincar com o imperador. Eram eles João e Luiz, filhos de Luiz Pereira do Couto Ferrer, desembargador agravista da Casa de Suplicação e vizinho de d. Marianna no Engenho Novo, o depois poeta Francisco Octaviano e d. José de Assis Mascarenhas, filho do marquês de S. João da Palma. Todos excelentes camaradas, com exceção de D. José que, por exceder-se em confiança e inconveniências, foi diplomaticamente, por d. Marianna, retirado da imperial companhia.
Que recreações tinham eles? O que mais divertia Pedro era “brincar” de soldado.
Mas, tão pouca gente, não podia formar os pelotões marciais. Chamavam-se então para o palácio, entre outros meninos, os filhos do ministro Aureliano de Souza Coutinho e de Cândido José de Araújo Vianna, Professor do monarca.
Eram esses os melhores dias de d. Pedro. As sombras da quinta enchiam-se de alaridos, de gargalhadas, e sons de cornetas e rufos de tambores. Era, quase sempre aos domingos, na folga das lições, o “brinquedo” dos soldados.
Em 1837 (D. Pedro ia completar os seus doze anos), o deputado Raphael de Carvalho clamava contra a falta de divertimentos aos nossos príncipes. E dizia: Os divertimentos que fazem parte de uma boa educação são tão escassos para as pessoas imperiais que se não pode passar em silêncio tão grande falta. O tanque onde navega um bote e o jogo de cavalinhos eis a que se reduzem os divertimentos de exercício; o jogo cartas e o teatrinho são os de entendimento”.
Quanto ao teatrinho, Raphael de Carvalho faz duras objeções. Uma delas é a respeito do pano de boca e outra sobre a língua, a francesa, que os príncipes usavam em cena, quando declamavam.
Sobre o pano de boca dá-nos ele uma descrição minuciosa. O painel representa o Brasil nos seus três estados de categoria. Em um porto está ancorado um navio com três mastros muito compridos e sem bandeira; na praia, a um lado, uns homens vestidos afonicamente, a levantar uma imensa cruz; ao longo da praia — indígenas, trajados marcialmente, assentados - sobre montes de bananas, cajus e ananases, de costas viradas para os frutos e, de tal maneira indolentes e com ar de tão estúpida indiferença que parece “que eles não partilham a natureza humana”; um anjo alado tem na mão esquerda uma bandeira do Reino Unido e na direita a bandeira imperial. O escritor acha tudo isso desarmônico e feio.
Os seus clamores não atingem unicamente o teatro.
“O imperador, continua, tem o seu jardinzinho, onde se distrai algumas vezes plantando flores; se, pelo que vi, tenho de julgar da assiduidade, ela é muito escassa. A princesa imperial não tem um jardim seu, e nem a princesa d. Francisca, existindo naquele paço um só jardim muito pequeno, mal colocado e muito pobre. A administração não devia ter sido tão negligente a este respeito; não há um palácio, dos imperiais, que tenha um jardim!”.
Não tendo jardim para lidar com as flores, as princesas divertiam-se na cozinha. D. Januária e d. Francisca, pelo que nos informa Raffard, eram perdidas pelos bons petiscos por elas mesmas cozinhados. Um tal Cesário matutinamente lhes trazia um pedaço de carne fresca, escolhida, um lombo especial para que “brincassem” de cozinheiras. Um dia, o imperador menino, estranhando que elas, na mesa, a hora das refeições, não tivessem apetite, pôs-se de espreita e descobriu a maroteira. Daí por diante exigiu a sua parte nos quitutes.
Pedro I, com aquela franqueza de mal educado, costumava afirmar que o seu filho havia de ser um homem de saber e não um ignorantão como ele e como o seu irmão Miguel.
De facto, desde os primeiros tempos, Pedro II se Mostrou uma criança estudiosa. Aos sete anos de idade produz desenhos razoáveis e, um deles, o da ilha das Cobras, vista do paço da cidade.
Antes de completar seis anos de vida, começou a estudar primeiras letras; no dia 3 de novembro de 1831 dá a sua primeira lição de geografia. Em 1837, conforme a informação do marquês de Itanhaém, começa a estudar latim, faz correntemente as operações aritméticas de inteiros, fracções e complexos; lê, fala e escreve razoavelmente o francês e tem uma queda acentuada pelos estudos de história.
Antes disso, em 1835, aos dez anos incompletos, conhece já os rudimentos de inglês; está familiarizado com o globo terrestre; diz de cor as capitais e os acidentes físicos mais importantes; não vai mal na dança; lê música com perfeição, “cambiando muito bem as mãos no piano”, e está adiantadíssimo no desenho. Naquele mesmo ano começa os exercícios de equitação.
No ano seguinte, pelas informações de Boiret, e menino imperador já decora trechos escolhidos do francês, sabe a carta da América e da Europa e vai passar a da Ásia e, pelo testemunho de Mazzoti, seu professor de música, “já tira as lições por si".
Mais tarde estuda esgrima com o coronel Luiz Alves de Lima, que foi o duque de Caxias.
Poucas crianças tiveram, nos estudos, a aplicação de Pedro II. Mal deixava os poucos divertimentos no parque da quinta, agarrava-se aos livros. Muitas vezes, alta noite, conta Joaquim Pinto Campos, o piedoso frei Pedro de Santa Marianna, ia ao quarto da imperial criança pedir-lhe que fechasse os livros e fosse para a cama, dormir. E em algumas ocasiões, voltando meia hora depois encontrava o menino, de novo, com o quarto iluminado, de novo sobre os livros.
Ou porque não lhe dessem brinquedos ou porque não tivesse gosto para brincar, o maior divertimento de d. Pedro, na meninice, eram os estudos.
Foi sempre uma criança dócil, pacata, extremosa e de costumes exemplares. Aquelas virtudes de bondade que foram as suas virtudes maiores de monarca, revelou-as desde pequenino. Ainda de calças curtas; na sua extrema infância, quando saia a passeio, fazia questão que lhe dessem muito dinheiro em moedas de prata. Ao voltar trazia sempre os bolsinhos vazios. O dinheiro distribuía-o todo aos soldados e aos pobres, pelas ruas.
Nunca lhe sobrava um vintém da mesada de doze mil réis que recebia, em criança, do Tesouro da Casa Imperial.
Pedro I tinha razão. O seu filho não se pareceu nem com o pai, nem com o tio D. Miguel.
Mais cedo que nos outros dias de sacrifícios de prisioneiros as trompas e os tambores de festa tocavam naquela manhã na aldeia dos tabajaras.
Arcoverde tinha pressa em liquidar aquilo. Na Véspera a sua filha, a formosa princesa que veio depois a chamar-se Maria do Espírito Santo, atirara-se-lhe ao pescoço, pedindo-lhe que poupasse a vida a Jerônimo de Albuquerque que, lá no terreiro da taba, amarrado entre dois mourões, esperava a morte.
O velho cacique dos tabajaras tinha o rosto sulcado de desgostos. Nunca (lhe passara pela cabeça que a sua filha, o sangue do seu sangue, de um momento para o outro, ficasse assim ferida de amor por aquele branco, a quem ele e toda a tribo do seu mando juraram um ódio implacável. Nunca!
A história daquele amor da filha de Arcoverde era a história dos primeiros dias da terra pernambucana. Ocupando a orla de mar que ia das colinas de Marim Para o Norte, os tabajaras viram um dia, inesperadamente, velas brancas, mastros e gente desconhecida à beira da praia. Era a expedição de Duarte Coelho que chegava para conquistar a terra. E foi conquistando-a ostensivamente, a espalhar-se pela colina acima, pelos vales, por toda a parte, num ruído de armas, cavalos, mulheres e bagagens. A alma gentia sentiu-se subitamente abalada aquela gente entrava como se aqueles domínios tivessem sido sempre seus. Aldeias que existiam nos arredores foram desalojadas, índios que viviam nas vizinhanças fugiram, afastados pelo rumor da invasão. Arcoverde convocou na sua taba uma assembleia de guerreiros. Era necessário repelir aqueles intrusos que, de um dia para o outro, se apoderavam da terra nativa, terra sagrada em que seus pais nasceram e em que ele tinha visto nascer os filhos, terra que sempre fora dos seus e dele na plenitude de sua grandeza e na beleza maravilhosa de sua fartura. Acendeu-se a guerra. E, durante os dias ferozes de cerco em que levara a sua gente a combater os brancos, o branco mais ousado e mais valente era justamente aquele que os companheiros chamavam Jerônimo. O seu cuidado maior, durante a guerra, foi feri-lo ou matá-lo. E, depois de muitos dias, conseguiu finalmente varar-lhe um olho com uma flechada e prendê-lo. Um inimigo daquela ordem trazia-se à aldeia para se lhe dar a morte cerimoniosa dos ritos indígenas. Trouxe-o. E, como se tratasse de um dos principais dos brancos, quis dar-lhe as honras que lhe cabiam nos preparativos, da morte. Escolheu entre as raparigas da taba a sua própria filha, a linda Espírito Santo; entregando, aos seus cuidados de virgem, o guerreiro inimigo que em breve, aos olhos de toda a tribo, seria festivamente morto.
Nunca lhe passara pelo pensamento que aquilo teria de acabar daquela maneira. A moça, naqueles poucos dias que estivera ao lado de Jerônimo, apaixonara-se por ele e, na véspera, entrara-lhe na oca, atirara-se-lhe ao pescoço, pedindo, banhada em lágrimas, que poupasse a vida do guerreiro português.
Era preciso acabar com aquilo imediatamente. Tinha receio que a filha voltasse a fazer-lhe o pedido da véspera, apesar da dureza com que a pusera para longe de seus braços.
E ele mesmo, levando a trompa aos lábios, soprou-a chamando a taba inteira ao terreiro do sacrifício. De toda parte surgiram mulheres cantando e dançando aos rufos de tambores.
Jerônimo de Albuquerque, amarrado entre os mourões, o pescoço preso em cordas, esperava de cabeça baixa, tranquilo. O terreiro encheu-se de uma multidão ruidosa. As mulheres correram a cantar e dançar em roda do prisioneiro, celebrando o valor da tribo, a firmeza do braço de Arcoverde que, com uma flechada, lhe varara o olho, prendendo-o, para trazê-lo à pompa daquela festa sinistra. Velhas andam-lhe em torno injuriando-o com esgares e palavras.
Lá adiante ardem os tições da fogueira em que o prisioneiro vai ser assado para ser comido por toda aquela multidão.
Arcoverde leva de novo a buzina à boca e sopra. Um bando de raparigas e moços parte em rumo da oca fronteira e volta depois aos saltos, cantando, num alarido confuso. Tinham ido buscar o sacrificador da vítima. E ei-lo que aparece, rutilante de cores, todo em galas, capacete de penas palpitando, a tangapema pesada na mão direita, olhos fitos no prisioneiro que vai sacrificar. Já tudo está feito. Os braços do fidalgo português foram amarrados de tal forma que ele não se possa defender dos golpes da tangapema do sacrificador.
Vai começar a cerimônia da morte. Às mulheres mais idosas, os guerreiros mais brilhantes, acabaram de celebrar os feitos marciais da tribo. O executor apanha de novo a arma, empunhando-a arrogantemente. Arcoverde entrega outra tangapema a Jerônimo de Albuquerque.
De súbito um silêncio pesado em tudo. Parece que naquele instante, ninguém respira.
— Defende-te que eu vou matar-te! Grita o sacrificador, avançando.
E ergue a maça. E, vai descarrega-la sobre a cabeça do português, quando um grito retine no meio da turba. A tangapema fica no ar, suspensa, segura pelo pulso estático do lutador selvagem.
Todos volvem os olhos para trás, surpresos. E a filha de Arcoverde, a formosa Espírito Santo, a mais tentadora princesa tabajara, surge dentre o povo, desgrenhada, vibrante, olhos em fogo, braços palpitando num gesto de suplica.
— Parem! Parem! Parem!
E agora toda voltada para o pai, banhada em lágrimas, insiste:
— Poupe-lhe a morte, poupe-lhe!
Arcoverde fixa-lhe os olhos por instantes e, como que temendo a sua própria fraqueza, volta-lhe as costas e vai soprar de novo a trompa para que o sacrifício continue, quando ela, a princesa, num salto, lhe arranca a buzina da boca.
A aldeia inteira estremece. Ficam todos estarrecidos diante daquela filha que assim, diante da tribo, desrespeita o pai; ficam todos transidos de susto diante daquela moça que, aos olhos da taba, afronta os ódios do mais glorioso e do mais respeitável guerreiro tarjara.
O velho Arcoverde defronta-a. Sente-se que toda a sua revolta vai desabar tremendamente. Uns sons cavos saem-lhe do peito.
A rapariga compreende tudo. E, arrebatando uma flecha das mãos de um guerreiro ao lado, quebra-a nos Joelhos e, com o pedaço da lança apontado ao peito, exclama desvairada:
—Se lhe não poupares a vida eu morrerei também.
Uma nuvem passa pelos olhos de Arcoverde. Seus braços ficam como que tolhidos, pesados, bambos, sem a energia de um gesto. De olhos zonzos fixa os olhos da filha. Ela ali está estática, de lança apontada ao peito, à espera do momento para enterra-la. Um segundo é bastante para que ela deixe de existir.
E uma onda de sangue sobe ao rosto do velho chefe. A um gesto seu o executor atira ao chão a tangapema cruel.
Não há um movimento, não há uma palavra naquela multidão surpresa. Parece até que a natureza em roda, o ar, a vida, tudo, tudo silenciou.
Arcoverde caminha até a filha, toma-a pela mão, segue até junto de Jerônimo de Albuquerque, desamarra-o das cordas e fala:
— Queres poupá-lo?
— Quero! Responde a moça.
— Por que?
— Porque o amo.
O patriarca tabajara impele o fidalgo português, já livre, aos braços da virgem selvagem:
— É teu.
À primeira vista deve parecer estranho e absolutamente inverossímil dizer-se que, um dos combates da guerra da secessão, se travou em pleno Brasil.
Deve parecer estranho e deve parecer inverossímil porque, estando os Estados Unidos em situação geográfica tão diversa da nossa, tão distantes de nós e nós tão indiferentes aquela imensa luta fratricida dos americanos, viesse o sangue, correr também em nosso país numa explosão de ódio que só interessava à pátria de Washington.
No entanto é uma verdade.
— Todo o mundo sabe o que foi a guerra de secessão a maior conflagração intestina que já teve o consente da América, talvez a mais feroz e a mais estupenda, a mais sangrenta guerra civil que já se tivesse enrolado no mundo.
Ao dar-se, em 1860, a eleição de Lincoln, estavam os Estados Unidos fervendo nos rancores de dois pardos irreconciliáveis. O Norte queria a abolição dos escravos, o Sul era, a ferro e fogo, escravagista. Ao começar a propaganda para a substituição de Buchanan na cadeira presidencial, tinham os ódios atingido ao seu furor o sul declarava que não admitia a vitória de candidato que trouxesse as ideias do Norte. Mas o Norte vencia as eleições. Quem sobe ao governo é Lincoln, abertamente antiescravagista.
Explodem as dissensões. A Carolina do Sul e do Norte, o Mississipi, a Florida, o Alabama, a Geórgia, a Louisiana, a Virgínia, o Arkansas, o Texas, o Tennesse, enfim quase todos os Estados meridionais, separam-se da União, formam uma Confederação à parte e entregam a presidência a Jefferson Davis.
Se Buchanan, o antecessor de Lincoln, achava que a Federação não podia coagir nenhum Estado que quisesse viver independente, Lincoln sustentava que a União era indissolúvel e que a nenhum Estado era licito retirar-se delia por vontade própria.
E rebentou a guerra para trazer as regiões rebeladas aos laços federativos.
Foi aquela guerra que todo o mundo conhece, encarniçada, desumana, ferocíssima, como são sempre os choques fratricidas.
E avultou na história pelo tom de brutalidade e ferocidade, pela duração, pela torrente de sangue que derramou e pelo número formidável dos exércitos aguerridos que movimentou.
Ao começar a luta, o governo de Lincoln moveu a sua diplomacia para evitar que as nações da Europa concedessem favores aos confederados. Chegou a ameaçar que consideraria casus belli o reconhecimento do governo de Jefferson.
A Inglaterra, que devia ter ainda atravessada a guerra a independência norte-americana, a Inglaterra, que em todos os conflitos do universo, procurou sempre tirar proveito para a sua política comercial, em conluio com a França, acabou reconhecendo aos revolucionários o direito de beligerantes. E apesar da Confederação ser inflamadamente escravagista, apesar de ter sido fundada para conservar a escravidão, a Inglaterra com as suas cândidas ideias liberais, com o seu passado hostil ao regime escravo, fingindo cordialidade com o governo de Lincoln, colocou-se disfarçadamente ao lado dos separatistas.
Quando os confederados quiseram encher os males americanos daquela atrevida flotilha de navios cotios, que tantos males fizeram ao comércio da época foi nos estaleiros ingleses que construíram os seus barcos. O gabinete de Washington reclamava, protestava ameaçava, mas a Inglaterra, velha raposa política na política universal, encontrava sempre meios de desculpar-se. Veio daí aquela celebre questão do Alabama, o mais terrível dos barcos corsários que teve a guerra da secessão, questão pela qual o governo inglês, depois de muito torcer e depois de muito humilhar-se, acabou pagando aos americanos a linda soma de quinze milhões e meio de dólares.
Um dos navios construídos pelos confederados nos estaleiros da Inglaterra foi o Florida, talvez o mais terrível e o mais façanhudo depois do Alabama.
Ora, aconteceu que, em 1864, em pleno período da guerra americana, o Florida, numa das suas excursões belicosas, voltando de Santa Cruz de Tenerife, entrou a 5 de outubro, no porto da Bahia, para prover-se de água e carvão. Estava ancorado no porto o Wassuchetts, da esquadra legal americana.
O encontro surpreendeu aos dois. Mas, dentro das águas de um país de rigorosa neutralidade, a dois passos de terra, diante de uma grande cidade governada e policiada, não era possível imaginar-se choque algum, conflito algum.
Mas, na guerra da secessão os ódios tinham um timbre que as criaturas não conseguiam sopitar em situação nenhuma. Basta lembrar um traço rápido do furor daqueles rancores: na Louisiana, senhoras de alto tom tiveram o requinte de tecer juntas a corda com que se pretendia enforcar o general Butler, comandante de tropas legalistas.
Ao entrar o Florida, o Wassuchetts, que estava de fogos apagados, acendeu as fornalhas.
Toda a gente imaginou que o navio ia fugir e fugir a todo o pano e a todo o vapor para evitar uma luta nas águas neutras do mar alto. A própria equipagem do Florida assim pensou. Tanto que, três dias depois, na noite de 8, o comandante e a oficialidade vieram para terra tranquilamente.
E foi naquela noite que se deu a surpresa. Às três horas da madrugada, quando a baia de S. Salvador dormia pesadamente, o Wassuchetts aproximou-se, de chofre, do Florida. Quando, no navio confederado, as sentinelas bradaram, era tarde. Já o navio do governo legal americano completava a abordagem, travou-se o combate, brutal, desvairado, a ferro frio, a revólver.
No Florida houve o pânico desnorteante. O oficial de quarto, os marinheiros do primeiro choque, pereceram no primeiro ataque. Outros, aterrados, atiraram-se às ondas.
Tudo aquilo se passou num instante, num abrir e fechar d’olhos. O Wassuchetts rebocou o Florida, e saiu com ele barra fora.
Ao amanhecer estava a capital da Bahia agitada, surpreendida, melindrada por aquela ofensa horrível a neutralidade brasileira.
O povo quer uma satisfação imediata e corre ao consulado americano. O cônsul não estava. Tinha ido, de véspera, para bordo do Wassuchetts e, como o navio, andava em alto mar. O ataque, a ofensa, tinham tido a sua aprovação.
A multidão desespera-se. Arranca e despedaça a tabuleta do consulado.
Mas é necessária uma medida repressora. Estão no Porto os barcos nacionais: a corveta D. Januaria e o vapor Paraense. Saem para o alto mar a ver se capturam o Wassuchetts. Era tarde. Ele já ia longe, fora das vistas.
O governo imperial exige todas as satisfações que cabiam no caso. O governo de Washington reconhece a justiça das nossas reclamações.
E, dois anos depois, em julho de 1866, depois da guerra terminada, o Nipsic, vapor de guerra americano, entra no porto da Bahia para dar as mais amplas satisfações a soberania brasileira.
A cerimônia é simples. No tope do mastro grande, o Nipsic desfralda o pavilhão auriverde e saúda-o com vinte e um tiros de canhão. A corveta D. Januaria, com outros vinte e um tiros, agradece as salvas.
O mesmo cerimonial repete-se dias depois aqui no Rio, diante de nossa esquadra.
E aí está, como um dos combates da guerra da secessão, com a qual nada tivemos, se travou em pleno coração do Brasil.
De toda aquela imensa cáfila de bandidos que, na terra maranhense, chefiaram a chamada guerra da Balaiada, de certo foi aquele negro d. Cosme Bento das Chagas a figura mais interessante, por ter sido a mais velhaca e, ao mesmo tempo, a mais vaidosa e a mais ridícula.
Das revoltas que ensanguentaram o grave período da Regência, a Balaiada pode gabar-se de ter sido a mais estúpida. Foi uma floração ignóbil de banditismo e nada mais.
Não houve um leve resquício de ideal, nenhum outro motivo senão a volúpia do assassinato e do saque, a ostentação da Torça e da ferocidade.
Uma verdadeira epidemia de facínoras. E, a não ser d. Cosme, que se destaca pela extravagancia caricatural de sua vaidade, todos eles são de uma hediondez revoltante, que assombra, mas não interessa.
O primeiro, o que inicia a revolução, é Raymundo tornes. É um negro analfabeto, covarde, voz tímida, olhar desconfiado, sempre pronto a fugir quando as coisas lhe vão ficando pretas.
Até a razão da sua rebeldia é grosseira. Um dia, na vila da Manga, prendem-lhe o irmão João Gonçalves, que assassinou um homem. Corre ao juiz de paz para que permita a escapula do preso, e o juiz não o atende. No dia seguinte, com sete companheiros, vem arrombar a cadeia, solta o irmão e todos os presos. Daí por diante ninguém mais lhe pode com a vida. E o bandoleiro terrível, seguido de milhares desacelerados, saqueando fazendas, ora batido pelas forças do governo e fugindo, ora vencendo-as de surpresa, em emboscadas infames. Consegue aliar a covardia a tenacidade. É um dos primeiros a fugir, abandonando os companheiros quando percebe a vitória dos inimigos, mas volta depois com bandos maiores e insiste até o final da guerra, durante três anos, na mesma teimosia do começo.
Sente-se que, apesar de facínora, apesar de chefe de bandoleiros, não nasceu com envergadura para o mando. Ele, que iniciou a revolução, que lhe deu a primeira diretriz, é completamente ofuscado por Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, que e quem dá o nome à guerra.
O Balaio talvez seja a figura mais terrível da revolta. O seu primeiro passo revolucionário é de uma grandeza impressionante, que o teria dignificado se não fossem as infâmias posteriores. Um dos oficiais de tropa legal que seguia para atacar Raymundo Gomes na Chapadinha, uma noite, na vila do Itapecuru-mirim, desvirgina-lhe duas filhas. Pede justiça, não lhe dão. Explode como um desvairado, incitando a revolta, atraindo a gente e, quando se vê cercado de um punhado de homens, corre a Raymundo Gomes, engrossando-lhe as fileiras. Não é, porém, o tipo fulgurante da lenda heroica que pretende parecer, é um miserável dos miseráveis, matando pelo gosto de matar, furtando, roubando, saqueando com fuma voracidade excepcional. Os próprios companheiros odeiam-no, eles próprios lhe temem os ímpetos de vingança. Começando sargento de Raymundo Gomes, logo que verifica o terror que principia a infundir, nega obediência ao e dirige a guerra.
Um único facínora se aproxima de tamanha hediondez. É o Ruivo. É inatamente mau, organicamente bandido. Tem o garbo dos crimes: quando acaba de matar não lava as mãos, nem muda a roupa. Quer que todo o mundo saiba que ele matou, que lhe vejam admirem as roupas e as mãos tintas do sangue das vítimas. No fim da tarde, o seu prazer maior é contar nos dedos o número das criaturas que assassinou durante o dia.
Os outros chefes são mais ou menos horrendos, ou menos ignóbeis, mas todos grosseiros, sem uma nota interessante que os arranque da vulgaridade do banditismo: o Milone, o Mulungueta, o Pio, o Pedrosa, O Tempestade, o Coque — o mais cordato de todos, Gavião e o velho índio Matroá, amigo de Raymundo Gomes, com cento e tantos anos, curvado pela velhice, mas alardeando façanhas aterradoras.
O único capaz de impressionar um cronista de curiosidades pelos traços palpáveis de originalidade e d. Cosme Bento das Chagas, que morreu depois, na forca, ao terminar a guerra.
Esse d. Cosme é realmente uma figura de relevo cômico. Antes de ser chefe de bando foi feiticeiro, com grande prestigio nas senzalas da escravatura.
Um dia, não sei se no exercício da feitiçaria ou em alguma turra, matou um homem. Foi preso, levado para a cadeia da capital maranhense e, condenado à morte. A expectativa da forca fê-lo cuidar seriamente da vida. Fugiu. Atravessou a ilha de São Luís, mergulhou nas matas do litoral da província e parou na vasta zona de areiaes e floresta que fica entre a barra de Tutoia e a foz do Preá.
De feiticeiro e assassino transformou-se em quilombola.
Ágil, inteligente, com qualidades maravilhosas de seduzir, foi chamando para as vizinhanças da sua palhoça todos os negros das fazendas próximas. Em pouco tempo o seu quilombo era o mais afamado do Maranhão.
D. Cosme compreendeu que, na vida, a ostentação vale tudo. Adicionou ao seu nome aquele Dom pretencioso e, de negro Cosme que era, passou a chamar-se d. Cosme Bento das Chagas.
As exterioridades brilhantes nunca deixaram de impressionar. O quilombo cresceu. Os seus haveres de bandido cresceram com o quilombo. As fazendas em redor sofriam horrivelmente com os assaltos e os saques.
D. Cosme passou a ter vida regalada e gostosa. Vivia como um rei, cercado por uma corte numerosa, ideado de negros possantes, que ele chamava ministros e servido por negras à guisa de aias.
Um dia, saqueando uma casa comercial, prendeu um rapazinho português, caixeiro, que mais ou menos sabia ler e escrever. Exultou. Fez do português seu secretário e, por uma excentricidade que escandaliza, instituiu um curso de primeiras letras, transformando o secretario em mestre-escola.
Ao rebentar a revolução da Balaiada, d. Cosme não se mexeu de onde estava, mas achou que era ocasião de ostentar títulos maiores. E proclamou-se Tutor, Defensor e Imperador das liberdades Bem-te-vis. Bem-te-vis era a denominação que, na província, se dava ao Partido liberal do qual os balaios se diziam aliados.
Mais tarde achou que, para um homem da sua importância, do seu prestigio, chefe de mais de três mil negros (o quilombo havia atingido aquele número era muito pouco ser tutor, defensor e imperador apenas das liberdades de um partido. E passou a chamar-se d. Cosme Bento das Chagas, Tutor, Defensor e Imperador de todo o Brasil.
Devia ter sido, no fundo, um psicólogo esse negro Cosme. Teve sempre a preocupação de ostentar, como se soubesse a força que a ostentação tem sobre os espíritos ignorantes.
Certa vez saqueou uma igreja. Na sacristia encontrou um andor e paramentos de padres. Mandou transportá-los para a casa e, daí por diante, não mais se apresentou aos olhos do seu arraial a não ser encarapitado no andor e vestido com os paramentos religiosos.
Das figuras da Balaiada nenhuma foi mais astuciosa. Nunca se meteu declaradamente na revolução. Ajudava-a, mas com mão de gato.
Quando Raimundo Gomes, batido pelas forças legais, fugiu, indo acoitar-se no seu quilombo, d. Cosme o recebeu, mas como se recebe a um vassalo. Pô-lo debaixo de uma vigilância rigorosa e, como o sabia hábil na fabricação da pólvora, aproveitou-lhe os serviços, como um senhor aproveita os serviços de um escravo. Por fim condenou-o à morte, e só o não levou à forca, porque o condenado conseguiu fugir.
Pode-se mesmo dizer que, com a guerra, d. Cosme só teve lucros, sem arriscar a pele. As tropas balaias, ao sofrer destroços, corriam a acoitar-se no seu quilombo, pagando os impostos pesados que ele impunha.
O patife do negro tinha a habilidade de arrancar por todos os meios e modos os dinheiros dos seus súditos. Um dos mais decentes e dos mais cômicos foi o que ele inventou, com a magnificência de um monarca, criando títulos para os seus governados.
Um dia notava que um preto qualquer do seu arraial gostaria de ter umas fumaças nobiliárquicas. Não vacilava. No dia seguinte nomeava-o barão, ou conde ou marques.
E nos papéis que, no fim da guerra, foram encontrados nos bolsos dos seus homens, há coisas como estas escritas pelo portuguesinho e assignadas em cruz Pelo negro: “Sae hoje na ordem do dia a nomeação de barão a d. Joaquim Cabinda, que foi de Ricardo Naiva, que pagará 100$, (sendo 50$ à vista e os outros 50$ fiados por um ano, ao qual se fará as honras da minha imperial casa e quem não fizer ficará desgraçado”.
O intuito era arrancar os “cobres” dos vaidosos.
Uma das maiores façanhas do Cosme é o ataque à fazenda Tocanguira de Ricardo Naiva. O fazendeiro, temendo a vizinhança do quilombola, denunciou-o ao Presidente da província, Luiz Alves de Lima, mais tarde duque de Caxias. O presidente responde à carta do fazendeiro, agradecendo-lhe a denúncia. O portador é apanhado pela gente de Cosme e a carta é lida. A Tocanguira imediatamente sofre o assalto dos negros: canguira é assassinado e a sua família presa num paiol.
Só no fim da guerra o governo pôde pôr as mãos caricato Tutor, Defensor e Imperador de todo o Brasil, levando-o à forca.
Talvez não tivesse sido menos bandido que os outros da Balaiada, mas, pelo menos, teve um traço de inteligência e um grande traço de originalidade cômica.
O livro mais divertido que, nestes últimos tempos, me tem passado pelos olhos, é o de d. Ildefonso Antônio Bermejo, intitulado Episódios de la vida privada, polida y social en da Republica dei Paraguay, publicada em 1873.
São aspectos interessantes da vida paraguaia no tempo de d. Carlos Antônio Lopes, pai do ditador que nos fez guerra, escritos despretensiosamente, sem nenhuma intenção de armar o riso, mas com uma veia cômica irresistível.
D. Ildefonso Bermejo, emigrado político da Espanha, estava em Paris quando conheceu Francisco Goiano Lopes, naquele tempo apenas general do exército paraguaio, que comprava na Europa armamentos para a guerra que depois sustentou contra o Brasil. Fizeram camaradagem estreita. A convite de Solano, Bermejo partiu para Assumpção, recomendado ao presidente da República como uma criatura que muitas luzes podiam dar à boa marcha do governo. Viveu cinco anos no Paraguai, na maior intimidade com as figuras preeminentes, ora como redator do Semanario, a celebre folha oficial da ditadura dos Lopes, era como consultor ou conselheiro particular do presidente.
É a história desses cinco anos, dos homens que viveram ao seu lado, que o escritor espanhol conta pitorescamente no seu livro.
É um volume que a gente deve ler e reler nas horas de mau humor. Embora conte barbaridades horríveis que caracterizam a fase ditatorial das republicas platinas, é, pela leveza e pela graça do estilo, um remédio excelente para as crises do fígado.
Bermejo teve, no Paraguai, carinhos excepcionais. Solano Lopes avisara anteriormente o pai da chegada do amigo e, quando pisou em Assumpção, já o emigrado espanhol encontrou a casa da sua hospedagem preparada para recebê-lo.
Mas, a primeira noite na capital paraguaia, foi horrível. Bermejo e a esposa não pregaram olhos um segundo. Era a casa um ninho assustador de morcegos.
As cinco da manhã um soldado bate à porta. D. Carlos Lopes havia mandado chamar urgentemente o hospede.
Veste-se e parte às carreiras para o palácio governamental. O comandante da guarda recebe-o amavelmente e, querendo desmanchar-se em gentilezas, em- quanto se espera que o presidente comece a audiência, depois de muito conversar, tira do bolso um cigarro, acende-o, chupa-o duas, três, cinco vezes e entrega-o, depois de bem aceso, ao escritor.
A conferência de Bermejo com o chefe supremo do Paraguai é de um ridículo encantador. D. Carlos recebe-o em ceroulas, na sala das audiências, deitado numa rede. Depois de uns dedos de prosa amistosa o ditador pergunta-lhe com um interesse amigo:
— Que tal passou a noite?
— Bem, respondeu. Se não fossem os morcegos que não me deixaram dormir...
— E há morcegos na sua casa?
— Uma infinidade.
O presidente amarrou subitamente a cara, tocou Urna campainha e, ao aparecer o comandante da guarda, gritou:
— Diga ao ministro da Fazenda que venha imediatamente aqui.
O ministro entra aterrado. D. Carlos, ao vê-lo, rompe:
— Vocês não me servem senão de estorvo! São todos uns imbecis! E você é um animal! Acabo de saber que, uma das melhores casas do Estado, é um ninho de morcegos. Procure outra casa para este senhor e mande limpar o telhado daquela em que ele mora.
E, como o titular ficasse um momento aturdido, na dificuldade de gaguejar uma desculpa, o chefe paraguaio destabocou de novo:
— Que está você aí a olhar-me? Cumpra o que lhe estou mandando, antes que eu lhe arrebente a cabeça com esta campainha.
Momentos depois Bermejo despede-se. Ao chegar em casa tem, diante dos olhos, uma cena surpreendente: lá está no telhado, trepado, o ministro em pessoa, que cata e destrói, por entre as telhas, os ninhos dos morcegos.
À primeira vista parece que tudo isto é pilhéria do autor dos Episódios. Um ministro a caçar morcegos num telhado! Mas, basta considerar que, os despistas e tiranos, sempre se cercaram de figuras que não eram mais que títeres.
A redação do Semanario deu a Bermejo sensaborias tremendas. Um dia d. Carlos Lopes manda chama-lo. Quer que ele defenda pela folha oficial a execução de um preso que o governo tinha feito naquela manhã. Ali está o processo; ele que o leia e redija a defesa da presidência.
O jornalista leva os papéis para casa e, ao passar-lhe os olhos, cai-lhe a alma aos pés. O executado tinha sido d. Cipriano Salcedo, um modesto fazendeiro de Itapoá. O crime era de uma insignificância sem-nome. D. Cipriano possuía um excelente cavalo corredor que, em aposta com outro cavalo do vizinho, ganhou uma corrida ruidosa. O fazendeiro entendeu de festejar a vitória com uma formidável carraspana. À noite, no meio da praça da vila, pôs-se a gritar: “Viva mi “Mala-cara" (o nome do cavalo), el caballo mas corredor dei Paraguay!” O guarda prendeu-o. Pela manhã, curado da bebedeira, o fazendeiro pediu que o soltassem. O guarda recusou. “—A culpa não é tua, disse d. Cipriano, a culpa é desse diabo que nomeia autoridades imbecis”.
O “diabo” a quem ele se referia era claramente o chefe da Republica, Era um homem morto. E foi. Processo, testemunhas, o diabo, e o proprietário do cavalo mais corredor do Paraguai acabou na boca dos bacamartes dos executores da nação.
Quem conhece as figuras caudilhescas de Rivera, Posas, Quiroga, Oribe, vultos estranhos daquela estranha quadra da vida platina, não pôde duvidar que, no tempo dos Lopes, alguém morresse por apelidar de diabo o presidente da República.
Uma das páginas mais curiosas do livro de d. Ildefonso Antônio Bermejo é a narrativa de uma eleição no Paraguai.
No tempo de d. Carlos a República paraguaia dava-se ao luxo de ter um poder legislativo. O Congresso tinha uma única função, a de reunir-se de dez em dez anos para eleger o presidente da República, ou melhor, para reeleger d. Carlos Lopes. Logo após isso dissolvia-se, por não ter mais nenhum papel.
Ao aproximar-se o fim do seu decênio, o presidente remetia circulares ao juiz de paz de cada localidade, anunciando que se elegessem três representantes em cada distrito.
O que se passava pelo interior do Estado é de uma Angularidade de opereta. Esperava-se um dia de festa religiosa em que o povo se reunisse na igreja. Após a missa, o juiz de paz falava à multidão.
— S. ex., o sr. presidente da República, d. Carlos Antônio Lopes, convoca seus deputados para que se dirijam a Assembleia que há de abrir-se em tal mês e tal dia. Devendo proceder-se a eleição de representantes, e sendo três os cidadãos que hão de sair por este distrito, creio que devem ir para tão difícil cargo o juiz de paz, que tem a honra de dirigir-vos a palavra, o chefe dos urbanos desta localidade e o mordomo da igreja.
— Bravos! Bravos! Gritava o povo.
E estava feita a eleição.
Bermejo descreve encantadoramente o dia do grande pleito. D. Carlos Lopes recebe os seus ministros, pela manhã, no palácio do governo. Entram todos eles vestidos de gala e mais o chefe de polícia, o comandante da escolta, o escrivão do governo e o coletor. Depois dos cumprimentos enfileiram-se à esquerda, silenciosos, a espera que o chefe supremo lhes fale. S.ex. dirige-se ao chefe de polícia:
— Que há de novo?
— O mestre-escola de Ibitimi, fala a autoridade, recebe jornais estrangeiros e, não só os lê, como os empresta aos vizinhos dizendo: “Isto é que são governos e não o nosso!”.
— Tem bens o mestre-escola? Pergunta o presidente.
— Três pesos mensais que lhe dá o Estado e mais o que agencia com a colheita do tabaco.
— Mande castigá-lo com cinquenta açoites.
Depois de várias queixas desta ordem, enunciadas por quase todos os altos funcionários, o presidente dirige-se ao ministro da Fazenda.
— Cumpriu todas as ordens que lhe dei?
— Ontem à tarde comprei os foguetes que indicou v. ex. para soltar-se esta noite em regozijo pela sua reeleição, mas fomos experimenta-los no pátio do quartel e nenhum deles arde.
— E por que está você com essa cara tão compungida e chorosa? Devolva-os e compre outros.
— Mas, senhor, não há na República quem tenha mais foguetes.
D. Carlos bateu violentamente com o bastão sobre a mesa:
— Esta noite quero que se soltem foguetes na praça do governo, e não digo mais palavra.
Fala em seguida o ministro do Exterior:
— O cônsul dos Estados Unidos escreveu-me uma Carta, pedindo-me permissão para assistir à sessão do Congresso.
O ditador toma a carta das mãos do ministro e vendo-a aberta, estrila:
— E por que se atreveu a abri-la e a ler o que ela dizia?
— Como era um assumpto confidencial, acreditei.
— O que você é, é um animal! Não tem autorização para abrir correspondência nenhuma de agente estrangeiro. Que respondeu ao cônsul dos Estados Unidos?
— Que vinha primeiro consultar v. ex.
— Outra animalidade! Desta maneira se dirá que os ministros do Paraguai não têm dignidade para dar um passo sem consultar o presidente. Vocês só servem para a minha vergonha. Estou rodeado de imbecis!
E todos os ministros a um tempo só, baixando reverentemente a cabeça: “— Sim, senhor!”.
Minutos depois, ao mesmo titular das Relações Exteriores, d. Carlos indaga se se recorda das ordens que lhe dera, de véspera, para as solenidades daquele dia da reeleição.
Em espanhol o diálogo tem um sabor mais vivo.
— Si, senor, respondió el ministro; y las tengo apuntadas.
E tirando do bolso um papel, pôs-se a ler:
“A la salida de la iglesia, no bien se divise al senor presidente, se izará la bandera, sonarán las trompetas y se hará una salva de veintiun canonazos, y durante el trânsito desde la catedral al Congresso se darán vivas a, s. ex.”
— Y se dispararán cohetes! (Foguetes) anadió d. Carlos.
— No los hay todavia, exmo: senor, contesto Sanchez (o ministro) casi llorando.
— Pues le fusilaré a vd. manana!
— Yo no sóy el responsable, exmo. senor. El en- cargado es el ministro de hacienda.
— Pues fusilaré á los dos.”
A descrição que Bermejo faz da praça do Congresso, no dia da eleição, é admirável.
A porta do edifício onde se vai reunir o poder legislativo está fechada. Os deputados, em número de duzentos, esperam que a porta se abra. Uns, sentados na calçada, conversam comendo pão e laranjas, outros firam os sapatos para refrescar os pés não acostumados aqueles luxos. Ha indumentárias as mais extravagantes do mundo.
Afinal começam os trabalhos do Congresso. O presidente entra acompanhado dos altos funcionários. Todos se levantam. O chefe supremo, depois de sentai se, ordena que os deputados se sentem. E começa:
— Honrados representantes: a escolta de cavalaria que me acompanhou até aqui permanece à porta deste palácio; mas preciso dizer que ela não está aí fora para intimidar, nem para exercer coação sobre a Assembleia, que é senhora absoluta da sua opinião. A escolta é um aparato que contribui para o decoro do Primeiro magistrado da nação.
E depois de mais algumas palavras:
— Proíbo toda a classe de discursos acalorados, vivas e outros ruídos análogos que tiram à Assembleia a sua conveniente solenidade. E devo advertir-vos que o Congresso não está constituído. É necessário nomear-se uma comissão composta de um presidente, de um vice-presidente, de um secretário e dois vogais.
As palavras de d. Carlos não foram bem entendidas. Os deputados imaginaram que ele estivesse ordenando que se fizesse a eleição para a presidência da República. E um deputado ergueu-se pressurosamente.
— Companheiros: já conheceis os grandes serviços do ínclito cidadão d. Carlos Antônio Lopes, estou no coração de todos proclamando-o novamente presidente da República.
D. Carlos fez retinir a campainha e, voltando-se para o orador, diz com toda a calma:
— O honrado representante que fala e um pedaço de animal; não me entendeu.
E explica novamente. De novo o não compreendem. Outro deputado, com ares inteligentes, salta.
— V. ex. o que quer e um vice-presidente; pois quem melhor que seu magnífico filho, d. Francisco Solano Lopes, capitão general dos exércitos?
E não pôde concluir. D. Carlos atalhou-o com o badalar da campainha e com um berro:
— Você ainda é mais burro que o seu companheiro!
E voltando-se para o bispo, que era também deputado:
— Que faz você aí, que não guia os seus companheiros?
O bispo toma a palavra, explicando tudo. E termina propondo que o presidente do Congresso seja o próprio presidente da República.
Naquele momento, antes da eleição, a Assembleia terá que examinar o expediente, a mensagem e os atos da presidência durante o decênio que termina. Apesar disso é o próprio presidente quem irá presidir a esse exame.
— São dois poderes incompatíveis, explica d. Carlos Lopes a Bermejo, porém é costume da Republica, e o costume tem força de lei.
Após o exame dos atos presidenciais vai-se fazer a eleição, ou melhor, a reeleição.
O presidente, sentando-se na sua cadeira, pergunta se o Congresso está de acordo com as medidas tomadas no decênio.
— Iponaité! Gritam todos,
D. Carlos, zanga-se:
— Quando vocês deixarão o costume selvagem de falar Guarany em atos tão solenes?! Diz-se: “Sim, senhor! ”
Vai começar a eleição. O ditador fala.
— Honrados representantes: ides exercer agora o ato mais grave desta sessão. Peço-vos juízo e Patriotismo. Tirai os olhos de mim, deixe-me descansar, que a vossa pertinácia em eleger-me me tem estraga o a saúde. Escolhei na República um cidadão benemérito para terminar a obra que comecei.
Pede a palavra o padre Roman, pároco de Encarnação. Faz uma arenga comprida. O Paraguai só é feliz governado por d. Carlos! O país é grande, e glorioso, porque d. Carlos o governa!
— E seremos nós que havemos de pôr em perigo a pátria, buscando um desconhecido para governa-la? Concluí.
— Não, grita o deputado Manuel Pena, de pé, entusiasmado.
Soam as campainhas. O presidente dirige-se ao deputado que aparteou:
— Outra vez que tenha de usar da palavra, lembre-se que deve pedi-la.
— Pois peço a palavra.
— Pode usá-la o honrado representante.
— Não! Repete o deputado, mil vezes não. E continuarei dizendo não, até que soe a trombeta do juízo final.
— Cidadão Pena, ralha d. Carlos, menos entusiasmo e mais compostura.
Faz-se a eleição. D. Carlos Lopes e constrangido a continuar na suprema magistratura do seu país.
— Submeto-me resignado ao novo sacrifício, diz. Dissolve-se o Congresso. Todos se levantam. Há confusão. O ministro da Fazenda, no pátio do palácio, sua a abrir, com um martelo, uma barrica de garrafas de cerveja.
As ruas estão cheias de ruídos. São vivas em cima de vivas, a passagem do presidente reeleito.
— Viva o ilustre cidadão d. Carlos Antônio Lopes!
— Viva seu filho mais velho, d. Francisco Solano Lopes!
— Viva d. Venâncio Lopes, também seu filho!
— Viva o filho mais moço de s. ex., d. Benigno Lopes!
— Viva a presidenta, d. Juana Carrillo!
— Viva sua filha mais velha, d. Inocência!
— Viva sua filha mais moça, d. Assuncion!
E, por último, só por último:
— Viva a Republica do Paraguai!
É um livro adorável, o de d. Ildefonso Bermejo. Ao lê-lo, nós os brasileiros, devemos erguer as mãos para o céu, em agradecimento a Deus por nunca nos ter dado um chefe de nação dos moldes de d. Carlos Lopes.
O Brasil físico é o esforço do aventureiro português que, à procura de riquezas auríferas, desbravou sertões, alargando fronteiras; mas o Brasil mental é obra exclusiva do jesuíta.
Durante mais de três séculos a instrução pública do Brasil foi clamorosamente desprezada pelo governo português.
A febre do ouro, do ouro que se não encontrava nunca, mas que, dia a dia, parecia estar mais perto, com que Portugal só visse na grande extensão do território brasileiro um imenso tesouro que era preciso desentranhar. E quando, nos fins do século XVII para o século XVIII, o tesouro
fugiu rutilantemente aos olhos deslumbrados da metrópole, esta só pensou que uma missão a cumprir — conseguir o maior lucro, goza-lo o mais depressa possível.
Durante toda aquela imensa fase a da procura e a da exploração, não houve, em Portugal, uma cabeça a que acudisse a lembrança de que Brasil tinha necessidade de instruir-se.
Por mais de três séculos não tivemos uma escola criada pelo governo. O que havia era a iniciativa exclusiva dos padres de Loyola.
O papel dos formidáveis apóstolos daqueles primeiros dias da nossa história é de uma grandeza que surpreende e comove.
Desde o estabelecimento de Thomé de Souza na Bahia, que a grande obra começa. Mal pisou em terra. Nobrega, com a sua plêiade de alucinados religiosos, inicia o trabalho. Fitando a vasta extensão das terras que se lhe desenrolam aos olhos, compreende a extensão da obra que ia-iniciar. Não perde um instante.
No dia seguinte não era somente o apostolo da cruz, era o pioneiro da instrução do Brasil. No adro das palhoças que serviam de igrejas, ao mesmo tempo que se recitam os hinos religiosos, soletram-se as letras do alfabeto.
Ao chegar Anchieta o trabalho avulta. Tem-se a impressão de que a selva inteira do Brasil vive em derredor daqueles apóstolos. São milhares de crianças, milhares de velhos, milhares de guerreiros gentios, como que magnetizados ao ouvir os padres. Não há livro para toda aquela gente, não há mesmo livro nenhum. Na areia branca dos terreiros e das praias escrevem-se os exercícios das primeiras letras.
No espírito dos selvagens a luz penetra dificultosamente. É necessário amenizar o choque, é necessário tornar as lições divertidas e pitorescas. Anchieta teatraliza-se. Transforma o interior dos templos em palcos e mascara o ensino com a pompa e o brilho dos movimentos cênicos.
Funda-se numa pobre choça o colégio de Piratininga. A obra é formidável, é de resultados imediatos. Antes de apagar-se o século XVI já há figuras de jesuítas educados no Brasil. Ha a dedicação admirável de Gaspar Lourenço e a eloquência tropical de Leonardo do Valle, feitas ali sob aquele teto.
O esforço jesuítico multiplica-se. Por toda a parte, onde há um núcleo de habitantes, há uma batina educando.
Portugal não se lembra do menor auxilio. Os padres vivem de esmolas, rotos, famintos, fazendo prodígios para alimentar as crianças selvagens. Às vezes, para não morrer de fome, são obrigados a comer restos de jantares dos criados dos governadores gerais.
Mas a obra caminha. A treva a que Portugal atira o Brasil é espessa e profunda. Só nas vizinhanças os colégios dos jesuítas há claridade.
Na primeira metade do século XVII já se pôde dizer que os padres de Jesus tinham formado a mentalidade brasileira. O padre Antônio Vieira, com aquele estilo e aquela eloquência, nada mais foi do que um fruto admirável dos jesuítas. Vindo para o Brasil pequenino, só voltou a Lisboa quando era o grande Vieira. Tudo e tudo deveu ao colégio da Bahia.
Gregório de Mattos, cronologicamente o nosso primeiro poeta, é outro fruto dos continuadores de Anchieta e Nobrega.
Quando, no século XVII, se deu a conquista holandesa em Pernambuco, o espírito brasileiro estava formado, com a visão exata do sentimento da pátria.
Obra do jesuíta, resultado da educação dos colégios religiosos.
Portugal não se satisfazia em desprezar a instrução da mais rica de suas colônias. Perseguia-a, tolhia-a. E essa perseguição foi maior quando a corte de Lisboa, no grande período aurífero, verificou que o Brasil era um tesouro faustuosíssimo. As cartas regias do governo são tremendas; impedem a circulação dos livros, proíbem a criação de tipografias. Em 1747 funda-se no Rio um estabelecimento tipográfico, que publica dois ou três opúsculos. Imediatamente Lisboa envia o ultimatum. A tipografia é sequestrada e remetida para o reino.
O primeiro movimento de Portugal em prol da instrução dos brasileiros vem quase dois séculos depois do descobrimento, já nos últimos dias do ano de 1699.
É a criação, na Bahia, de uma pequena escola de artilharia e arquitetura militar.
No século XVIII, com a riqueza embriagante do ouro, a população do Brasil cresce surpreendentemente. A ignorância é assombrosa. A não ser um ou outro professor particular e quase sempre mau, só nos colégios religiosos se encontram educadores.
São sempre as batinas ou buréis que continuam a trabalhar pela instrução. O bispo Frei Antônio de Guauelupe funda no Rio os seminários dos órfãos de S. Pedro e o de S. José. Em 1751, o bispo Frei Miguel de Bulhões funda o seminário do Pará. No mesmo ano ergue-se o seminário da Lapa, no Rio.
Os núcleos de jesuítas são os centros irradiadores de cultura. Nos colégios ensina-se a gramática latina, filosofia, teologia dogmática e moral e retórica. A matricula para as aulas primarias e de matemáticas elementares não se encerra nunca.
Mas a expulsão dos padres de Jesus vem abalar fortemente o ensino. A missão educadora fica com os Padres beneditinos, franciscanos e carmelitas, que não têm a mesma habilidade e o mesmo gosto dos discípulos de Loyola.
No período culminante da riqueza mineral, a ignorância do Brasil chega a ser aterradora. Portugal não toma uma medida os colégios religiosos são muito poucos para a população que cresce. Os argentários, vivendo em palácios sumptuosos, não sabem assepsiar o nome. Meninas opulentas, cobertas de ouro e diamantes, cruzam os salões em festa, sem saber quantas são as letras do alfabeto. Ha uma falta horrível de caixeiros que saibam ler e de guarda-livros. Negociantes riquíssimos, conta Southey, encomendam de Lisboa um português de bons costumes que saiba ler e escrever, para casar com a filha e fazer a escrita a casa.
É nesse período de trevas que Pombal tente daí o primeiro impulso a instrução pública do Brasil, Criando em 1772, o subsidio literário.
Pelo subsidio literário instituía-se o imposto de 80 reis por barril de aguardente fabricado no Brasil e réis por boi levado ao matadouro. A renda areca a servia apenas para pagar os professores das escolas que se criavam.
Pode-se dizer que foi em 1772 que começou a instrução pública no Brasil. Quase três séculos após o descobrimento.
Criam-se então algumas aulas de primeiras letras, gramática latina, filosofia e grego no Rio de Janeiro e nas outras capitanias.
Mas o subsidio literário é insuficiente. Em Minas, um dos centros de população mais intensa, a renda do novo imposto, em sete anos, produz pouco mais de trinta e quatro contos.
A receita, porém, não cobre a despesa com os professores. De Portugal não vem uma medida salvadora. Pombal, com todo o seu talento, seu grande amor pelas artes e pela instrução, nunca se resolveu a desviar das outras rendas, rendas vultuosíssimas, um vintém que fosse para cobrir o déficit do subsidio literário quando a receita diminui, diminuem-se as escolas, exonerando os professores.
Minas, que anualmente produzia, com o imposto do ouro e dos diamantes, a renda colossal de mais de mil contos, afora os “donativos voluntários”, teve muitas das suas poucas escolas fechadas porque o subsidio literário não cobria a despesa dos professores.
Mesmo com o impulso dado pelo ministro de d. José ao ensino oficial, os colégios religiosos não perdem o prestigio. Quase toda a gente os prefere. Os mestres-escolas, nomeados pelo governo, eram quase sempre de uma ignorância de assombrar.
Em 1776 os franciscanos, no Rio, criam as cadeiras de retórica, grego, hebraico, filosofia, história eclesiástica, teologia dogmática, teologia moral e teologia exegética. A vitalidade que a instrução toma nessa época pôde ser assinalada por um marco. Os frades instituem as teses que são defendidas em público pelos alunos, à guisa de torneios. O movimento intelectual em derredor do colégio franciscano aviva-se.
Há como que um certo interesse em impulsionar a instrução no Brasil. O marquês do Lavradio cria no Rio o horto botânico. Luiz de Vasconcellos institui a cadeira de retórica e entrega-a ao poeta Manoel Joaquim da Silva Alvarenga. Funda em seguida o gabinete de história natural que o povo chamou “Casa dos Pássaros” e que hoje se chama Museu Nacional.
O tempo de Vasconcellos foi o mais brilhante paia a instrução oficial. O Rio, com quase cinquenta mil habitantes, tinha o luxo de possuir nove professores Primários, um de língua latina, um de "grego, um de filosofia, um de retórica e dois de matemáticas dementares. Quinze professores, ao todo. A corte o de d. Maria I achou que era muito luxo intelectual, no governo do conde de Rezende, o número ficou reduzido a oito. Os professores primários, de nove, passaram a dois.
Em 1800 há em Portugal um tal zelo pela instituição do Brasil, que faz a gente desconfiar diante da esmola. A regência ordena ao governo do Maranhão que designe quatro alunos para serem educados em Portugal, dois dos quais em Coimbra. As despesas com os rapazes seriam tiradas do imposto do algodão...
Ao chegar d. João VI ao Brasil o número de professores era mais ou menos aquele do tempo do conde de Rezende. Não havia, porém, uma só escola para o sexo feminino.
Portugal, até aquele instante, se havia esquecido de que as brasileiras eram também seres humanos.
No governo do filho da rainha louca o aspecto foi outro. A instrução teve o seu maior surto. E não podia ser, de outra maneira. Era o império dos acontecimentos. A corte era aqui. Quer se quisesse, quer não, isto tinha que evoluir.
Por mais lerdo, por mais indiferente, por mais preguiçoso que fosse, o rei não podia conter a imensa onda de homens ilustres que Portugal nos mandou pela invasão napoleônica.
Extravagantemente trágicas e extravagantemente burlescas são aquelas cenas das cerimônias da Paixão e Cristo, que José Joaquim Machado de Oliveira descreve, no acampamento sulista de Alegrete, entre os Guaranis.
À primeira vista surpreende que um povo, na fase selvagem, como os nossos avós indígenas, de fundo fetichista e de religião inteiramente diversa da nossa, tenha, nos seus hábitos, o habito religioso de reproduzir os ritos católicos.
A explicação é simples: durante longo período histórico, as terras do Sul tiveram a influência decisiva os missionários jesuítas, estabelecidos no Território as Missões. Foi sempre da política padresca e particularmente dá muito subtil e muito pratica política os sacerdotes de Loyola influir nos espíritos pelos aspectos materiais, impressionando mais os sentidos que a imaginação. Os princípios católicos foram ensina os selvagens mais objetivamente, mais em reproduções de cenas, que em doutrina que eles não podiam compreender. Em toda a imensa região do Guaíra, a dramaticidade da Paixão de Cristo foi larga e repetidamente representada aos olhos indígenas. Tempos depois desapareceu o domínio dos padres. Mas a impressão ficou funda e indelével no espírito dos selvícolas. Doutrina, princípios, ritos, tudo e tudo ficou embrulhado, misturado e confuso na imaginação dos gentios. Sem mais os missionários para lhes guiar religiosamente as solenidades católicas, era natural que guiados por eles próprios, os cerimoniais sofressem a influência barbara, aquele misto de selvajaria e de civilização que ressalta da curiosa crônica de José Joaquim Machado de Oliveira. O escritor descreve cenas de 1818, em Alegrete, no Rio Grande, no acampamento do general José de Abreu, entre os Índios que serviam o nosso Exército no tempo das campanhas do Sul, quando batíamos o caudilhismo infrene de Artigas.
A Semana Santa dos Guaranis começa no Domingo de Ramos. Ao amanhecer, os gentios marcham para a mata próxima. Voltam mais tarde, em filas, silenciosamente, carregando, ou melhor, vestindo largas folhas de palmeira. É a ingênua reprodução da entrada triunfal de Cristo nas ruas de Jerusalém.
As palmas vão servir para a construção de duas choças — uma para o cerimonial religioso e outra para os exercícios flagelatórios.
É justamente na pratica dos flagelos que, mas os Guaranis desvirtuam os ofícios católicos.
À tarde, o povo cerca a cabana do cerimonial. Diante do chefe apresentam-se os homens que se candidatam a honra divina de reproduzir, em pessoa, a figura torturada de Jesus.
É interessante o costume. A aspiração maior e todos os varões valentes é aquela. Mas o papel do Cristo não se pode dar a qualquer, por mais virtudes que tenha, por mais qualidades que apresente.
A escolha é feita por meio de um concurso.
Cristo sofreu as humilhações mais dolorosas, os suplícios mais duros e cruéis. Nas solenidades da sua paixão só lhe poderá representar o papel aquele que maiores torturas impuser ao seu próprio corpo.
Os candidatos entram para a choça destinada as Penitencias. Começa a tragédia sangrenta dos cilícios. Vinte, cinquenta, cem, duzentos homens, nus da cintura para cima, ajoelhados, cortam as suas próprias carnes com açoites de couro, brutalmente, impiedosamente, numa fúria e numa insensibilidade de esfriar os ossos, horrível. Cada qual quer mostrar maior capacidade de sofrimento e de resistência, maior número de golpes na carne viva, maior porção de sangue nas feridas.
Aquele que mais se flagelar é o que vai servir de Cristo nas cerimônias de sexta-feira. Um servente assiste-os, limpando-lhes as chagas gotejantes, para que o sangue não se coagule. Uns desanimam, caindo desfalecidos; outros, desfalecidos, recomeçam, mal recuperam a lucidez.
E isto se prolonga até a manhã do dia em que Jesus morreu.
Quinta-feira de Endoenças. A cabana das orações amanheceu revestida de preto. Ao centro, numa alta banqueta branca, um crucifixo entre duas velas acesas em castiçais de barro. A sala está toda iluminada de velas metidas em estacas de bambu. No chão — folhas cheirosas; na parede — a pia de água benta, com um hissope de cabelo.
Há no ambiente um tom de concentração; mas uma particularidade cômica ressalta aos olhos: o Redentor crucificado é obra de escultura indígena o Cristo não tem aquele ar bíblico, aquela expressão suave que nós todos lhe conhecemos através dos escultores civilizados — é um índio, a cara de um índio com todos os traços de um habitante das selvas pátrias.
Ao meio dia, pelos arredores da aldeia, bate o tambor. Desde os primeiros ruflos, as mulheres desatam os cabelos, vestem-se de negro e vêm sentar-se à porta das cabanas, dolentes, a cabeça inclinada para a terra em recolhimento completo. Os filhos que chorem, casa que caia, elas dali não sairão, estáticas, como feitas de pedra.
Á noite é a adoração do crucifixo. A mais velha das índias, de mãos postas, ronca um pranto desabalado e terrível. A multidão cerca-a compungida, lacrimosa. A carpideira vai narrando, lá a seu modo, em Guarani, os martírios de Jesus:
— Cristo foi morto pelo demônio! Sim, padeceu morte o pobre Cristo!
E chora e lamenta-se e berra até cair no chão, sem forças, desfalecida. Substituem-na por outra e as lamentações se prolongam até noite alta. As carpideiras recebem pagamento pela muita lágrima que derramam e quase sempre são encontradas depois nas vendolas próximas (quem conta isso é o cronista) a beber cachaça, lampeiramente, com o dinheiro ganho na cerimônia.
O amanhecer de sexta-feira é silencioso como nenhum outro. Não se ouve uma voz; tem-se a impressão de que a aldeia foi inteiramente abandonada. Só quem passar pela cabana dos suplícios ouvirá o ruído dos açoites cortando as carnes dos candidatos ao pape o Redentor.
A tarde a aldeia se move. É o exame dos flagelados — Vai-se ver quem merece encarnar a figura macerada do filho de Maria. É o que até ali resistiu com as mais fundas feridas no corpo, e mais sangue derramado das feridas. Põem-lhe aos ombros uma túnica preta e cinge-se-lhe a cintura com um cordão de couro.
Ao cair da noite o crucifixo da casa das orações foi substituído por uma grande cruz negra, com tiras de pano branco nos braços.
Só às dez horas se faz a procissão do enterro. Não ficou ninguém em casa. A procissão sai à rua: à um menino, vestido de preto, com a cabeça coberta pano branco e, sobre o pano, uma coroa de espinhos, carrega uma longa cruz de bambu; ao lado, crianças empunhando velas de sebo; seguem-se meninas de alvas túnicas, cabelos soltos e coroa de espinhos cingindo a testa, a conduzir os instrumentos de suplicio tragédia do Golgotha: o cálix de amarguras, o azorrague, os cravos, a lança de Longuinhos, os trinta dinheiros de Judas.
Atrás seguem os músicos a cantar uma ladainha chula e a arranhar com os arcos, desesperadamente, rabecas rudes, feitas na própria aldeia. Em seguida um grupo de homens armados de lanças. É aí que vai o Cristo o que teve a fortuna e a honra de alcançar as graças de simbolizar a figura do Salvador. Leva as mãos amarradas, a coroa de espinhos rasgando-lhe a testa.
Embora martirizado, embora lanhado de chicotear não apresenta um aspecto de penalizar. Sente-se-lhe em tudo o orgulho, a empatia da honraria. A escolta surra-o ainda, esbofeteia-o, maltrata-o, como se não bastassem as torturas de uma semana inteira. A frente segue um pregoeiro, apontando o martirizado e a gritar num latim horrível:
— Ecce homo!
De cada vez que o pregoeiro grita, o Cristo guarani faz esforços para mostrar-se aos olhos do público. Tudo nele é grotesco e rude: estica o pescoço, ergue a cabeça, abre desmedidamente a boca para denunciar que sofre e cai depois em abatimento, em êxtase, querendo imitar e imitando miseravelmente, truanescamente, a expressão bíblica do Jesus em caminho do Calvário.
Após ele, vai uma mulher desfalecida nos braços de um homem. É Maria, a santíssima Mãe de Cristo.
Atrás de tudo seguem as mulheres, com os filhos ao lado, de mãos postas.
A procissão gira pelos caminhos até meia noite. Inesperadamente, dissolve-se, como que por encanto.
No dia seguinte o sol nasce a rufos de tambor e guinchos de pífanos. Desapareceu inteiramente a cabana dos ofícios divinos: o que se vê agora é um imenso poste erguido para o céu, e na ponta do poste, enforcado, Judas balançando.
Vão despedaça-lo. Ruge o tambor, ressoam violas e rabecas, canta-se a Aleluia.
Um bando de crianças e mulheres, acompanhado pelos músicos, sai pelas ruas anunciando a morte de Escariotes e recebendo esportulas pelo anúncio.
Eis aí, segundo José Joaquim Machado de Oliveira, o que ficou, na inculta imaginação dos nossos avos Guaranis, dos belos ritos quaresmais que lhes ensinaram os jesuítas das Missões.
Não pude e talvez não possa nunca apurar a veracidade daquela curiosa anedota que por aí se conta de Maciel Monteiro, em Lisboa, no Teatro São Carlos
Creio que foi Plutarco a afirmar que os homens não valem pelos seus feitos, mas pelas anedotas em torno de suas vidas.
Aquela que se conta de Maciel Monteiro define maravilhosamente a existência galante e casquilha do mais casquilho e do mais galante dos poetas românticos do período que avança da Regência ao Segundo Império.
Maciel Monteiro, que começou a aparecer quando Pedro II era ainda meninote, foi uma criatura feliz, dessas que trazem diante dos olhos a estrela da ventura numa eterna coruscação.
A natureza talhou-o os bons destinos. Deu-lhe talento, deu-lhe abastança, deu-lhe cultura, elegância, educação e, principalmente, o lubrificante infalível das boas maneiras, que tudo ajeita e tudo consegue na vida. Foi talvez o homem mais feliz do seu tempo.
O que quis ser foi e sem esforços extenuantes: o mais querido poeta da sua quadra, o primor da elegância, o suspirado das mulheres, deputado geral em quatro legislaturas, presidente da Câmara, ministro do Exterior, diretor da Faculdade do Recife e ministro plenipotenciário do Brasil em Portugal.
Mas o traço predominante de sua vida é o da galantaria. Mesmo o mérito de parlamentar há quem o diminua. Sylvio Romero nega-lhe vigor oratório, classificando-o de diletante da tribuna, apesar do entusiasmo de Macedo em guinda-lo às nuvens. Até mesmo o valor de poeta lírico anda por aí atassalhado, embora o autor da “História da Literatura Brasileira” o ponha entre os maiores do período de transição entre clássicos e românticos. As virtudes de político e de estadista ninguém as encontra exaltadas nos seus biógrafos.
Foi principalmente o homem das mulheres, o incorrigível cortezão das saias. Essas qualidades, que constituíram, certamente, o seu principal defeito, ninguém lhe nega.
Maciel Monteiro teve, no período mais intenso do romantismo nacional, o brasão do mais fino, do mais sedutor, do mais irresistível dos dandys brasileiros.
Impressionava as mulheres à primeira vista. Não, tinha essa beleza máscula que faz bater repentinamente os peitos femininos, mas teve esse quê que atrai as saias, sem que elas saibam mesmo porque.
Sem ser bonito não havia nele nada que, à primeira vista, se pudesse apontar como defeito: estatura vulgar, cara rapada, com as costeletas da época, testa larga, queixo fino, boca pequena, talvez menor do que devia ser, olhos lânguidos, nariz de boas formas, cabelo liso, reluzente, partido em pastinha ao lado direito. Tudo isso sob o prestigio de roupas elegantíssimas, talhadas ao primor da moda que fazia os requintes da quadra: a sobrecasaca; as calças de vinco, estreitíssimas; a gravata de três voltas; os sapatos de verniz e o chapéu alto, de seda lustrosa.
E tudo isso num ralo de maneiras as mais polidas, de atitudes corteses e fidalgas.
Quando os homens nascem com tais dons são sempre um perigo. Maciel Monteiro foi a criatura mais perigosa do seu tempo. Não havia mulher que não caísse nas unhas.
Ele próprio afirmava que tinha os dedos calejados de tanto tocar em saias femininas.
A frase é chocante, reveladora de uma dose fortíssima de cinismo. Foi isso, certamente, o fator mais decisivo dos sucessos amorosos do poeta pernambucano.
Quem não for cínico não seduz mulheres, não terá nunca um longo rol de amantes. A mulher será sempre a complexidade, a incongruência. O que é defeito para nós é para ela virtude. Os homens puros nunca tiveram a corte feminina. Um ligeiro traço de canalhismo dá, ao paladar das mulheres, um quê de picante que as excita e as arrasta. O conquistador de saias eternamente um quê de canalha.
Maciel Monteiro teve-o com uma habilidade e um jeito originais. Nunca a sua boca se abriu para desmentir os boatos de amores seus, mesmo boato falso, mesmo quando a dama atassalhada lhe merecia respeito e veneração. Entregava a maledicência a sorte de seus amores. A vitória era certa. Não há homens que valham tanto para as mulheres como os homens que as mulheres disputam.
Deixava correr a fama de seus triunfos...
Abriam-se lhe então as portas das alcovas mais fechadas, o cortinado dos leitos proibidos. E tanto amou, tanto e tanto que, em vez de amolecer o coração, endureceram-se lhe os dedos de calos, como ele próprio dizia na sua gabolice estudada e canalha.
Uma criatura do estofo de Maciel Monteiro devia ter tido na vida um turbilhão de malquerenças. Ele teve-o. Apelidaram-no o “doutor cheiroso”; cortavam-lhe a pele desapiedadamente, envenenavam-lhe os amores sem dó nem pena.
Mas, não se dava por achado o poeta-político: Atravessava a existência impavidamente, gozando na intimidade o rastilho de inveja que espalhava, ele próprio atiçando a guerra, por ver, na guerra, a sua melhor vitória.
Não há nada que mais prejudique um poeta que a vida chamada mundana, O ambiente dos salões tem o poder de desafinar as liras. As preocupações de elegância, o tempo que se perde nas futilidades, apagam inteiramente os surtos da inspiração. Foi o mal de Maciel Monteiro.
Não tivesse tido aquele pendor incorrigível pelo dandysmo, outro poeta seria de maior relevo e de mais alto vulto.
Nada lhe faltava, nem talento, nem inspiração, nem sinceridade. Mas, livros, só os abriu no tempo de estudante. No Rio, quando parlamentar e quando ministro, não tinha tempo de os folhear. A elegância, as alcovas, a galantaria, engoliam-no. Dormia tarde, acorda tarde. E, era muitas vezes a acordar, que se lembrava do discurso que tinha de fazer naquele dia, e, uma nota, sem uma consulta, dava, á tarde, na Câmara, a impressão de que passara a noite estudando.
Foi uma vida dispersiva, frivolíssima, mulhereira de mais. Passou-a nos salões de baile, entre espumas de champanhe, ao lado de cocotes, e nos camarins e nas alcovas das atrizes formosas.
A sorte dos poetas, mesmo hoje em que tudo mudou, parece que continua a ser o sofrimento, e Maciel Monteiro foi impenitentemente um gozador.
A sua fama de elegância vem desde os primeiros tempos da mocidade. Ao voltar da Europa, formado pela Universidade de Paris, escandaliza os salões aristocráticos do Recife. Escandaliza os do Rio quando para aqui se muda em 1833.
No tempo da Regências salas mais chics, onde se reunia, em chás e bailes, a mais requintada sociedade carioca, eram as dos Calmons, os marqueses de Abrantes. O poeta pernambucano, deputado geral pela terra que nasceu, instala nos salões dos marqueses quartel-general de batalhas de amor. O seu nome crescendo, a sua fama estonteia.
Ali pelos meados de 1840 a 1850 Pedro II era bem moço ainda. Nada mais natural que seu coração batesse e se assanhasse como o coração de qualquer mortal. O monarca, apesar de austero e de bons costumes, uma vez ou outra, arriscava a majestade de seus impulsos numas dentadas discretas a saborosíssimos frutos proibidos.
Nem mesmo o prestigio imperial do segundo imperador Maciel Monteiro respeitou. Contam as crônicas mexeriqueiras que o poeta casquilho se atravessou à frente de Pedro II, conquistando a linda mulher de um deputado sergipano, pela qual sua majestade perdia noites de sono.
A preocupação do mundanismo, a corte das saias foram, em Maciel Monteiro, manias incuráveis. Chegava a ponto de, nas salas, já como presidente da Câmara, já como ministro de estrangeiros, ser consultado pelas damas sobre modas femininas. Chegou a ponto de recusar a vitaliciedade senatorial para não confessar em público que era maior de quarenta anos!
Uma criatura, assim tão singular e melindrosa, faz com que a gente acredite na veracidade da velha anedota que escandalizou a sociedade lisboeta, certa noite, no Teatro São Carlos.
A anedota é edificante. Passou-se entre 1855 a 1858.
Maciel Monteiro vivia em Lisboa como ministro plenipotenciário do Brasil em Portugal.
Nascido em 1804, devia ser, naquela época, maior de cinquenta anos. Mas era o mesmo homem dos salões de Pernambuco e dos salões do Rio: o mesmo apuro de elegância e de maneiras, o mesmo sedutor de mulheres formosas.
A sua sobrecasaca, o monóculo, o colete branco, toda a sua linha incorruptível de almofadinha grisalho, foi notada no Chiado, ao lado de Souto Maior, Rodrigo da Fonseca, Garrett, os elegantes decantados de Lisboa.
Nas célebres festas do palácio dos Farrobos e da baronesa de Regaleira, apesar de velho, apesar de usados, fez proezas incríveis em batalhas donjuanescas.
Meses depois o seu nome era da intimidade aristocrática da capital portuguesa. E, foi justamente por isso que, o fato do Teatro São Carlos, abalou fundamente a sociedade de Lisboa.
Era numa noite de espetáculo. Cantava-se não sei que opera. O teatro fulgia regurgitava.
Maciel Monteiro andava em prelúdios de paixão pela brilhante cantora da companhia, de quem a crônica não conserva o nome.
Não há ninguém mais antipático aos contrarregras de teatro que os apaixonados das artistas. As conversas de amor fazem-lhe perturbar o serviço.
Naquela noite o poeta-ministro inflamava-se em Palavras de sedução no camarim da atriz.
A campainha retine chamando-a. Ela vem para cena. Ia levantar-se o pano para o segundo ato.
Maciel Monteiro acompanhava-a, febril, vibrante, a cochichar-lhe promessas aos ouvidos. Ela recusava, ele insistia.
Estão ambos no palco, bem no meio a contrarregra, inquieto, batia com os pés, pedindo atenção, avisando que ia fazer o pano subir.
Mas os dois não o ouvem; o amor falo-os surdos. Para cumulo do desespero Maciel Monteiro tinha se ajoelhado aos pés da atriz.
É o momento angustioso. Não era mais possível remediar. A orquestra havia chegado ao ponto em que o pano devia subir. O sinal do contrarregra impõe-se. O pano sobe.
E, diante dos olhos da mais fina sociedade lisboeta, aparece o ministro plenipotenciário do Brasil ajoelhado aos pés da atriz.
A gargalhada estronda. Maciel Monteiro percebe a situação. Mas não se altera, não se perturba. Com a linha admirável de distinção levanta-se e retira-se do palco, calmamente, como se não fosse o herói da cena.
Foi o melhor espetáculo da noite.
À primeira vista não se compreende como é que Pedro II, com aquela grande alma humanitária e aquela inconfundível feição liberal que os próprios inimigos lhe não escureciam, não tivesse sido, com o poder de seu trono e o prestigio de seu nome, o fator predominante da abolição dos escravos.
Não haverá hoje quem seja capaz de afirmar, como no tempo o fogo das paixões afirmou, que o nosso grande monarca não tivesse interesse e desejo de limpar do nome brasileiro a pecha da escravidão. Não haverá também quem não reconheça que, se a vontade imperial se manifestasse enérgica e decisiva, muito antes de 88, muito antes da opinião do país levantar-se revoltada, estaria extinta no Brasil a nodoa do cativeiro.
A verdade é que Pedro II não se mexeu pela abolição, embora fosse partidário da emancipação, a verdade é que o trono, por quase todo o período do segundo império, deu a impressão de que era indiferente a sorte da raça negra.
À primeira vista e na realidade chocante, principalmente quando se sabe que, à frente dos nossos destinos, estava um homem de coração e de cultura, um homem de bondade e de religião, um dos reis mais doces e mais benignos que o mundo até hoje tem tido.
Entre Pedro II e Pedro I havia os contrastes mais fundos.
O pai era o ímpeto explosivo em choques inesperados, o panache, o homem dos grandes lances, das resoluções fragorosas, dos golpes decisivos. O filho era a timidez, a transigência, a irresolução. Um agia pelo impulso próprio, o outro esmerava que o tempo agisse.
É que ambos puxaram às mães. Pedro I, de D. João IV não tinha nada e tinha quase tudo de Carlota Joaquina: a impetuosidade, a grosseria, a turbulência, o fogo amoroso, a decisão dos atos.
Pedro II era fundamentalmente o temperamento de D. Leopoldina. A primeira imperatriz passou pela vida transigindo, esperando, desejando e não realizando. Tivesse o caráter resoluto de D. Amélia talvez tivesse tido uma vida doméstica mais doce e menos desgraçada; fosse uma mulher de vontade, como foi a sua sucessora no segundo leito imperial, e a marquesa de Santos, certamente, não teria o império e o domino que teve no coração de Pedro I.
Mas era a energia quebrada. Em vez de agir pela ação própria esperava que o tempo agisse por ela. É toda a sua desgraça na vida foi aquele amolecimento de ação.
E ela, que teve a felicidade de transferir ao filho todas as excelsas virtudes que a natureza lhe deu, transferiu-lhe desgraçadamente o defeito da inércia.
E foi justamente por isso, por timidez, pela sua Profunda feição irresoluta, que Pedro II não tem, na história da abolição, o papel que lhe devia competir pela cultura, pela alma, pela bondade, e pelo liberalismo e pelos seus dons humanitários.
Foi uma força estática quando podia ter sido o dinamismo eficiente. E nada por indiferença, tu por medo.
Que Pedro II desejava profundamente a abolição, que lhe ardia na alma o mesmo fogo que escaldava alma dos grandes propagandistas, é um facto. Quando se lhe não queira atribuir esse sentimento á formosura de sua alma, atribua-se-lhe a vaidade.
Pedro II era vaidoso, tinha o fraco de ser apontado no mundo como o rei mais sábio do seu tempo, tinha o gostinho particular de viver na intimidade dos vultos de fama universal. E ele próprio devia compreender certamente compreendia, que não era nada lisonjeiro e nada recomendável, o íntimo dos mais sábio dos reis contemporâneos, ser monarca de um país cuja quarta parte do povo era escrava.
Mas o medo fê-lo toda a vida um emancipador. A timidez não o deixou nunca ser um abolicionista.
Para ele a escravidão devia desaparecer do Brasil lentamente, gradualmente e não pelo golpe brusco da abolição.
Estava errado. E o seu erro era fundamental. O imperador nunca teve argucia para conhecer a psicológica do país que governava.
Nas regiões tropicais como a nossa, em que tudo é ardente, intenso e brutal, tudo deve ser violento como a natureza.
Os homens estão acostumados aos lances extremos dos elementos. E não estranham e até lhes sabem bem os lances extremos das mutações políticas e das mutações sociais.
Todas as nossas grandes modificações fizeram-se de um rasgo, de um golpe, quase de improviso: a Independência, com um simples grito; a Republica, com uma simples deposição de gabinete; a Abolição, com um simples projeto que durou cinco dias.
Estava errado, mas era sincero.
O imperador temia a derrocada nacional. A fortuna brasileira era toda agrícola e a agricultura era toda escrava. O golpe da abolição (e quase toda a gente naquele tempo pensava assim) produziria o desequilíbrio: a fortuna do país desabaria fragorosa e irremediavelmente. O exemplo dos Estados Unidos, durante tanto tempo lavado no sangue da guerra da secessão, esfriava-lhe os ossos.
E o medo de Pedro II era tanto que temia até os homens capazes de soprar o furacão e de arrebentar a onda abolicionista. Quando subiu ao governo o ministério Dantas, a intenção do imperador não era dar ao gabinete liberal prestigio e força para redimir a raça negra.
Era apenas uma experiência, uma apalpação de terreno. D. Pedro queria que se fizesse alguma coisa, mas tinha receio que se fizesse tudo, e que se fizesse apressada e violentamente. É celebre aquela sua frase ao conselheiro Dantas: — “Quando o senhor quiser correr, eu o puxo pela aba da casaca".
A frase é clara, transparecendo o temor imperial pela brusca solução do problema negro.
Há criaturas que nascem com uma ampulheta na mão: tudo e tudo entregam ao tempo. Se a areia se esgota no cone superior, viram-no para baixo e deixam a areia tornar a correr... D. Pedro era assim. Gostava de esperar, tinha o habito de transferir.
No caso particular da situação dos escravos, era para ele sempre um motivo de alegria, tudo que viesse abreviar a obra do tempo. Estava convencido que a abolição produziria a desgraça do país, mas batia palmas a tudo que viesse apressar a solução do grande problema. Fazia como essas criaturas que, para abreviar a queda da areia, agitam e sacodem a ampulheta.
Quem libertava um escravo merecia-lhe atenções excepcionais. Quando os frades de São Bento em 1866 instituíram o ventre livre, foi em pessoa ao convento abraçar os frades. Dava títulos de nobreza aos fazendeiros que libertassem os seus cativos. Assinava quanto era subscrição em favor da alforria de negros escravos do Estado pagava salário como para mostrar que se fizesse o mesmo no país.
Quando o Ceará, em 1884, proclamou a liberdade dos seus escravos, conta Osorio Duque Estrada, a comissão dos festejos, aqui no Rio, foi a S. Cristóvão convidar o imperador.
Sua Majestade recebeu os propagandistas encantadoramente. Lamentava não poder ir em pessoa às festas da liberdade; é que o seu comparecimento poderia ser interpretado diversamente, por algumas pessoas, em cujo meio não estão os abolicionistas nem os que com ele pensam. Afirmou os seus sentimentos de simpatia e pela causa da liberdade. Gostaria até de assignar qualquer subscrição em favor dos escravos, como já tinha feito com a subscrição que o Abolicionista Cearense lhe fez chegar às mãos. E concluiu fazendo votos para que os que trabalhavam a favor dos negros fossem felizes na sua brilhante jornada.
Tudo, tudo que viesse abreviar a ação do tempo. Nada, porém, de improviso. Nenhuma resolução de chofre.
O país estremeceria, desorganizava-se o trabalho nacional, a fortuna brasileira resvalaria para o abismo.
E essa convicção Pedro II teve até os últimos dias de maio de 88.
Estava o imperador nos Estados Unidos quando lhe chegou o telegrama anunciando o grande advento do 13 de maio.
— Grande povo! nobre povo! exclamou.
Sua Majestade esperava notícias sangrentas, grandes abalos, agitações. O telegrama contava das festas, das ruidosas festas com que o povo brasileiro recebia a lei libertadora.
Nobre povo! grande povo! Pedro II conhecia muito pouco o seu país. Os homens das regiões tropicais participam das impetuosidades da natureza. Só lhes sabe bem aquilo que é brusco, inesperado, violento.
A multidão, no Campo de Santana, fremia desassossegada. Uma hora da manhã e o major Miguel de Frias sem ter voltado ainda do palácio de S. Cristóvão.
Alguma surpresa? Devia ser. Quem sabia lá se Pedro I, eternamente destemperado, não o havia prendido no paço?!
Aquela tardança era sinal de que, da conferencia do oficial brasileiro com o imperador, surgira alguma coisa desagradável.
A inquietação crescia.
Era às primeiras horas da madrugada de 7 de abril. A revolução tinha rebentado na véspera, logo que se espalhou pela cidade a surpresa do decreto a coroa demitindo o ministério liberal. Mas, os prenúncios agitação, esses, vinham já de muito tempo atrás. Desde o ano seguinte ao da Independência que D. Pedro não era mais o homem que tanto inflamara o entusiasmo do povo com o gesto do Ipiranga. Erros sobre erros, oscilações, violências e amores escandalosos, tinham-no apagado da alma nacional.
O decênio que ia do grito emancipador de 22 até aquele ano tumultuoso de 31 passara como um tufão destruindo o prestigio da coroa. A mudança começou quase que nos primeiros dias da fundação do Império. Nos princípios D. Pedro era o príncipe admirável, ardente, entusiasta, em plena consciência do seu papel de monarca brasileiro, agitando, ele próprio, o movimento nacionalista que estalara hostil à metrópole portuguesa. Aquilo, porém, durara pouco tempo. Meses depois, a sua cabeça de vento mudava alarmadoramete. Os velhos inimigos do país voltavam ao paço, o aulicismo da Boa Vista era todo ele das antigas figuras que o povo odiava, a entourage do imperador compunha-se exclusivamente de portugueses que lhe guiava os pendores a favor de Portugal. Depois, os erros políticos uns em cima dos outros: a demissão de Jose Bonifácio, o golpe de estado de 1823, a execução dos levantados da Confederação do Equador, ofensas sobre ofensas à carta constitucional e, para agravar tudo isso, a cegueira amorosa pela marquesa de Santos chocando a cidade, o sofrimento intimo da imperatriz magoando as almas boas. Em 1827, na Câmara dos Deputados, começa a erguer-se a voz da oposição, O padre Custodio Dias, Evaristo da Veiga, Odorico Mendes, desenham os primeiros traços da liberdade. O povo reanima-se a palavra de seus leaders. Surge a Aurora Fluminense, com Evaristo à frente. É o grito da reação. D. Pedro compreende o momento: é preciso transigir com a opinião pública que exige gente nova no governo. Araújo Lima é chamado para chefiar gabinete. E os ânimos sossegam, a paz volta novamente ao povo.
Mas aquilo não dura muito. O imperador parece não compreender- as predileções populares depois chamam José Clemente ao ministério. É português e o povo tem-no como figura preeminente do partido do paço, o partido das tendências lusas. E reacende-se a luta. Em derredor do monarca concentram-se irritantemente os elementos simpáticos a Portugal. A gente portuguesa governa a gente brasileira. O Chalaça, o favorito que Pedro I mais estremece, dá ordens aos ministros como aos seus lacaios.
Os desgostos avolumam-se pelo país inteiro. Aquilo não pode continuar. E o ministério cai porque é preciso cair.
Parece que, daquela vez, o imperador vai criar juízo; chama ao governo homens capazes contra os brios da nação. Inicia o novo gabinete a luta contra a camarilha imperial. O Chalaça, e o Rocha Pinto, acusados de governar o próprio D. Pedro e de arrasta-lo a todos os atos hostis ao Império, são retirados do Brasil, com encargos diplomáticos no estrangeiro.
Mais uma vez a opinião pública sossega. Mas o monarca é aquela mesma criatura incorrigível. Quando menos se espera surge a demissa desonesto o ministro demissionário. Novos desgostos, novos choques nos sentimentos populares.
Daí por diante não há mais remédio. A coroa como que se despenha numa queda fragorosa. O imperador está inteiramente riscado da simpatia nacional. E, ao raiar o ano de 1830, a situação é gravíssima: os partidos digladiam-se — o português que governa e, domina, o brasileiro que se julga no único direito de governar. D. Pedro entrega-se ostensivamente, escandalosamente aos braços do primeiro. Começam os ataques: distúrbios aqui, distúrbios ali — rusgas tremendas, a pão e a faca, entre portugueses e nacionais.
Os acontecimentos de S. Paulo vêm perturbar ainda mais a atmosfera. Ao cair em França a dinastia dos Bourbons, os estudantes paulistas festejando intencionalmente o movimento revolucionário, em passeatas pelas ruas, excedem-se com gritos e ameaças às autoridades governamentais. O ouvidor Japiassú quer firmar-se nos favores da coroa: abre devassas, prende estudantes a torto e a direito, perseguindo-os. O Observado Constitucional, dirigido pelo médico italiano João Baptista Badaró, protesta retumbantemente em prol da justiça e em prol da liberdade. Dias depois, á noite, o jornalista é miseravelmente assassinado a porta de sua casa. O crime assume proporções espantosas que o momento lhe dava: o país inteiro vê na morte do médico estrangeiro não o simples assassinato de um homem, mas a liquidação covarde de um prócere do liberalismo. A última frase de Badaró — “morre um liberal, mas não morre a liberdade” — ressoa de sul a norte do país como um clarim revolucionário.
Os jornais oposicionistas inflamam-se. Não há, mas quem possa conter a linguagem incendiaria da imprensa que é a linguagem apetecida pelo povo. Antônio Borges da Fonseca, que dirige o Republico, processado pelo governo, é unanime e acintosamente absolvido pelo júri.
Tinha-se chegado a uma altura tão inesperada, que fatalmente a revolução teria de estalar. Pregava se abertamente nas ruas contra o trono, os jornais falavam claramente em republica.
Os próprios ministros imperais não tinham mais prestigio para se fazerem eleger. O imperador, desapercebido do seu declive, corre afoito a Minas para impor a eleição de Silva Maia, seu ministro. Em vez de festas, o povo mineiro recebe-o com dobres de finados.
E é na volta, já em princípios daquele ano de 31, que a revolução começa a desencadear-se. Os portugueses esperam Pedro I com festas aparatosas para dissipar-lhe do espírito os sons funerários os dos tangidos em Minas. E na noite de 12 de março transformam o bairro comercial da cidade apoteose de fogueiras, coretos iluminados e fogos de artificio. Os brasileiros vêm para a rua impedir os festejos. Um príncipe como D. Pedro não merece aquela pompa! Mas na noite seguinte os portugueses insistem nas luminárias. Aquilo parece uma pirraça, parece um insulto. A onda nacionalista impa ofendida. É preciso acabar com aquela história! E marcha aguerridamente para desmanchar a festa. Prevenidos, os portugueses entrincheiram-se as janelas e as varandas de suas casas e, mal os brasileiros vão chegando, uma saraivada de pedras e cacos de garrafas cai tremendamente sobre a multidão. O choque é imprevisto, horrendo, desigual: a turba dispersa, alarmada e ferida. Vitoriosos, na noite seguinte os partidários do imperador dominam inteiramente a cidade, espancando o povo nas ruas obrigando a população a festejar o príncipe. Os grandes vultos da oposição têm as vidraças quebradas a pedra e as portas arrombadas por se negarem a iluminar a fachada de suas casas.
O governo faz ouvidos de mercador a todos os protestos. Mas o elemento nacionalista vai falar mais alto. Na rua da Ajuda, em casa do padre Custodio Dias, vinte e três deputados e um senador reúnem-se para suster a situação nos braços. São as figuras d" maior relevo do sentimento nacional: Evaristo, Alves Branco, Odorico, Hermeto Carneiro Leão, o senador Vergueiro, o padre Martiniano de Alencar, Castro Ah vares, Paulo Barros, todos os vultos reacionários do levantamento da pátria. Pensa-se em pôr imediatamente a revolução na rua. Tem-se o apoio do povo que sofre e o apoio do exército que vê a nação diminuída. Mas domina ainda o espírito de conciliação. Opina-se por uma mensagem ao imperador clamando em favor dos brios brasileiros. Evaristo redige o protesto. É uma peça de alta energia, desenhando com grandes palavras a gravidade do momento, terminando por mostrar que o povo, não tendo mais confiança no governo, acabará por vingar-se pelas suas próprias mãos. “A ordem pública, o repouso do Estado, o trono mesmo tudo está ameaçado”, se a corte não recuar do caminho em que marcha.
Aquilo estoira como uma bomba. O imperador percebe que pouco falta para estalar a revolta. E recua. Recua formando o gabinete liberal, com o visconde de Goiana na pasta do Império.
Torna-se mais leve a atmosfera. Mas já se havia, avançado muito para, de um momento para outro, conter a máquina revolucionaria.
Aproxima-se o dia 25 de março, aniversário da Constituição. O partido da liberdade vai festejá-lo com solenidades estrondosas. Mas ninguém quer na festa Pedro I, o imperador inconstitucional. E, acintosamente, não lhe mandam o convite. É na igreja de S. Francisco de Paula o Te Deum festivo. Quando menos se espera, eis que D. Pedro surge no templo, risonho, desenvolto, ao lado da imperatriz.
— Não me convidaram, mas eu sou constitucional e aqui estou.
A surpresa é comovedora. Apesar disso, o povo não se expande.
— Viva o imperador!
— Viva a Constituição!
— Viva Pedro I, enquanto constitucional!
Ele percebe o alcance daqueles aplausos... enquanto constitucional... empalidece.
— Sou e sempre fui pela Constituição. Exclama perturbado, como se tivesse sentido uma punhalada no Peito.
— Viva a Republica! Ecoa pelo templo um grito claro.
O príncipe finge não ouvir, para melhor convencer o povo de que não tinha ouvido, num gesto de galantaria, prende ao chapéu armado o tope nacional.
Entra o mês de abril. No dia 4, no paço da Boa Vista, festeja-se o aniversário de D. Maria II, de Portugal. Não devia haver a menor sombra de arruaças naquele dia. O ministério compromete-se a conter os desordeiros. Mas, à meia-noite, chega ao palácio a notícia de rusgas, que a polícia não pôde reprimir, no centro da cidade. O príncipe excita-se, exasperasse e, dia seguinte, demite o gabinete. O novo ministério e de figuras reconhecidamente hostis à marcha liberal.
Mal a notícia corre, pela cidade o partido nacionalista agita-se. Não é mais possível evitar a revolução, não era mais possível esperar-se alguma coisa do imperador incorrigível.
E, pela manhã de 6, o povo amotinado vai-se juntando no campo de Santana, espontaneamente, sem que ninguém o congregue para ali.
As 3 da tarde, a multidão avoluma-se. Há de tudo: desde os militares, deputados e senadores, até os arruaceiros que o Girão, o Republica e o Lafuente comandam. É a população inteira da cidade conglobada, ali, para levantar a dignidade da pátria espezinhada pela coroa.
O pensamento é um só: a reintegração do ministério demitido ou a revolução.
É a massa popular de todos os tempos querendo impor finalmente os seus direitos e a sua vontade.
Dessa vez triunfará. Há de tudo para a vitória, até a tropa que o general Francisco de Lima e Silva enfeixa nas mãos.
Mas é preciso começar a agir. Aquilo não pode ficar somente na reunião do povo ali no Campo. Devem-se enviar parlamentares, afim de impor a D. Pedro a renomeação do ministério. É necessária uma comissão de juízes de paz das freguesias da cidade para ir a Boa Vista. Chega Custodio Xavier de Barros, juiz de paz de Santana, e mais tarde o padre João José Moreira, do Sacramento, e Araújo Azambuja, de José. A comissão, a cavalo, parte para S. Cristóvão, voltando às 7 horas da noite. O imperador recusava-se a refazer o gabinete que demitira, por ser uma prerrogativa sua, garantida pela Constituição.
Os próceres do levante reúnem-se na Câmara Municipal. A resposta irrita os rebelados. Que o general Lima e Silva vá ao paço pintar a situação e convencer o monarca de que o povo tinha direitos, direitos que ele agora exigia na praça pública por bem ou por mal.
O general parte. Ao voltar, às 10 horas da noite, a decepção é maior: o ministério não voltará ao poder, Pedro não capitulará.
A agitação cresce. A massa popular ruge desesperadamente. Chegam dois corpos de artilharia de posição e o batalhão de granadeiros que se vêm juntar aos revoltosos.
Na Câmara Municipal os chefes liberais combinam Adidas. Será melhor e mais prático evitar-se derramamento de sangue. Mais uma vez deve-se voltar S. Cristóvão para desenhar o que há de grave no momento o exaltamento do povo, a adesão das tropas.
O major Miguel de Frias, nomeado parlamentar, segue imediatamente para a Boa Vista.
Era justamente isso que estava inquietando agora a onda revolucionaria, acotovelada no Campo.
Mais de uma hora da madrugada de 7 e o major sem ter voltado, ele que partira na véspera, muito antes da meia-noite!
Por que aquela demora? Ninguém sabia. Bons prenúncios é que não podiam ser. D. Pedro era um temperamento em labaredas, arrebatado, caprichoso, detonante... Quem sabia lá o que se estava passando no palácio imperial?! Ferido no seu amor próprio, irritado, o imperador seria capaz de todas as loucuras e talvez estivesse agindo com a sua impavidez inconsciente. Era bem possível que Miguel de Frias já estivesse preso...
Nos salões da Câmara Municipal, Evaristo, Vergueiro, Odorico e os outros passeavam nervosamente, calados.
Fora, a multidão rugia, picada de impaciência.
— Abaixo o imperador!
— Viva o ministério liberal!
— Viva a república!
E as horas passavam. E o major sem voltar.
A falta de notícias, o ambiente de incertezas, iam criando um peso nos corações. Que estaria acontecendo, que iria acontecer? .
Começam a correr, pouco a pouco, os boatos.
Dizia-se que o partido português, se concentrava, armado, para vir sufocar a revolta.
Em S. Cristóvão, apesar do batalhão do imperador ter corrido a confraternizar com os liberais, ainda havia elementos para a reação. Não estaria D. Pedro à frente daquelas forças?
E os minutos corriam em sobressaltos. Boatos e, mas boatos...
Um homem que tinha vindo de S. Cristóvão contara que, nas vizinhanças da Quinta, juntavam-se as forças leais ao trono. A nova espalhou-se assustadoramente pelo largo apinhado. Houve quem detalhasse as informações: era o coronel João Carlos Pardal, com o seu parque de artilharia montada, que vinha marchai contra o povo. Marcharia também o conde de Villa Nova de S. José com a parte fiel da guarda de honra que comandava.
Um sopro de desassossego passou pela turba. À janela da Câmara Municipal um orador apareceu para falar a população que o povo serenasse, que o povo tivesse confiança na sua força! Era possível que o choque estivesse por minutos, mas o povo, o povo liberal, o povo que se reunira ali para erguer os sentimentos sagrados, da pátria, saberia colocar-se à altura a seus brios e dos seus ideais! Agora era que o imperador ia ver o valor da energia e da vontade populares.
O discurso, em vez de acalmar, inquietou mais a massa amotinada. Era então verdade que ia haver luta? Ia então haver encontro entre as tropas legais as forças da liberdade? O coronel Pardal havia mesmo partido da Boa Vista com o parque de artilharia montada?
Duas horas da manhã, um ruído pesado começa a chegar dos lados da Cidade Nova. E um tumor de carros, cada vez mais próximo, lento, profundo, como um trovão rolando ao longe.
A multidão estaca, de respiração suspensa, Todo o mundo está de ouvidos aguçados na direção do rumor.
Uma nuvem de angustia envolve a turba. O ruído aproxima-se, cada vez mais pesado, mais vivo, mais aterrador. Não pôde haver dúvida. São as forças imperiais, as carretas da artilharia rolando estrondosa mente pelas pedras das ruas!
— É o coronel Pardal! Grita um homem assustado, no meio do povo.
Não há mais quem possa conter a multidão. Uma desordem doida agita a massa revoltada. Gritos, uivos, correrias. É o salve-se quem puder, desenfreado, turbilhão de gente a rolar na onda, a turba inteira em disparada pelas ruas que desembocam no Campo.
Nas janelas da Câmara Municipal braços aflitos movem-se para conter o povo.
— Não é nada! Não é nada!
Debalde. A praça esvazia-se. E, quando o general Lima e Silva desloca os batalhões para um possível embate com as pretensas forças legalistas, tropa nenhuma encontra a sua frente.
Era apenas um grande carro de capim, com quatro juntas de bois, que vinha pacificamente do Andarahy em caminho da cidade.
Àquela hora, justamente àquela hora, Pedro I, imaginando que não tinha elementos para resistir à força e a coragem do povo reunido na praça pública entregava a Miguel de Frias o decreto em que abdicava o trono na pessoa de seu filho, o principezinho D. Pedro.
Teve razão Oliveira Lima quando disse que, só com a revolução de 1817, se aprendeu no Brasil a morrer pelos ideais. Na revolução do Equador, sete anos mais tarde, o brasileiro não sabia apenas morrer, já tinha a dignidade da morte em prol da liberdade.
Foi, na verdade, a revolução em que melhor se morreu, em que mais timbraram o heroísmo e a abnegação dos mártires.
O que anteriormente tinha havido demais culminante era a inconfidência mineira. Mas a inconfidência mineira foi salvo a extravagancia da comparação, uma espécie de rabanete da nossa história liberal — vermelho por fora e candidamente branco por dentro. Por dentro, como miolo, nada mais foi que um lindo sonho de poetas que não tinham coragem cívica de ir até o sacrifício da vida. E a prova é que, todos aqueles idealistas mineiros, só um soube morrer, justamente o que não sabia dar forma rimada aos seus sonhos — Tiradentes. As revoluções nunca se fizeram com poetas, fizeram-se com aqueles que sabem a vida é o melhor pasto das revoluções.
Na revolução do Equador nada houve que deslustrasse a dignidade de um movimento liberal: nenhum dos próceres a delatou, nem a traiu, nem a negou.
Tudo concorreu para a iluminar e para a engrandecer: o número dos mártires, a serenidade com que se entregaram ao sacrifício, a nobreza com que morreram, a coragem com que enfrentaram a morte, o aprumo de civismo com que caminharam para o cadafalso.
De grande nada faltou. E teve até a auréola radiosa do milagre.
É aquele caso estonteante, aquele estupendo caso cearense, da vila do Icó, em 1825, o ano mais doloroso e mais dramático de toda a história liberal do Brasil. É no fuzilamento de Antônio de Oliveira Pluma que, apesar de figura secundaria da revolução, a munificência imperial de Pedro I teimou em sacrificar.
O episódio é daqueles de deixar o historiador estupefato. Não se sabe onde encaixa-lo, se dentro do âmbito da lenda, se nos domínios das cousas milagrosas.
A classificá-lo como lenda é necessário assentar-se que, em história, o testemunho dos coevos e os documentos do passado nada exprimem e nada valem.
Da vida, o que dela sabemos, é quase nada. Entre o céu e a terra há cousas que não alcança a nossa vã filosofia, já disse o velho Shakespeare.
Tudo que aí está diante dos nossos olhos, palpado por nós, é para nós ainda mistério.
Vivemos em imensas trevas, às tontas, às cegas, na ilusão de que vivemos no esplendor da luz.
E a verdade é que, do largo véo que nos envolve, apenas a pontinha se levantou...
Manda-nos a vaidade que se repila o sobrenatural e, no entanto, a cada passo, o sobrenatural nos surpreende, como a zombar de nós mesmos.
O episódio de Oliveira Pluma, no Icó, é uma prova de que há forças invisíveis acima das nossas forças, que, entre o céu e a terra, há coisas que não alcança nossa vã filosofia.
Por mais que se queira arrasar o fatalismo ele existe mesmo contra a nossa vontade. A vida ou melhor, a criação, é o ritmo. Tudo tem a sua cadencia a sua medida, a sua ordem, a sua marcha, as suas leis, o seu compasso. O que foi criado para uma orbita, vive, cresce, evolui e morre dentro dela. São trilhos aceitados onde tudo corre sobre trilhos. Nada se faz que não esteja regulado. Está tudo determinado, pautado, destinado. É o ritmo, o grande ritmo que vai aos astros, dos astros ao infinito. Tudo obedece a lei fatal: nasce quando tem de nascer, floresce quando é tempo de florir e morre quando deve morrer. Só se morre no dia, diz o povo, com o seu empirismo impressionante. E, de outra maneira, seria quebrado o ritmo da criação e, as leis da criação, nem revoga.
O episódio de Oliveira Pluma deixa à primeira vista o cronista estatelado. Lenda? Milagre? Nem uma coisa, nem outra.
Apenas o fatalismo eterno estava fadado a morrer naquele dia em que o levaram ao fuzilamento.
A cena é, na verdade, de abalar as almas mais endurecidas pelo materialismo.
É na manhã dramática do sacrifício.
Oliveira Pluma, na sua camisola de condenado, está à espera da descarga dos fuzileiros.
— Fogo! Berra o comandante do pelotão.
Oliveira Pluma brada com toda a energia d’alma
— Valha-me o Senhor do Bomfim!
Estronda a descarga. Mas, caso curioso! Nenhuma das balas se foi cravar no peito do mártir. Cravaram-se todas no angulo da parede da cadeia.
Nova ordem de descarga se ouve. Novo brado do condenado estruge vibrantemente.
— Valha-me o Senhor do Bomfim! ...
Para onde teriam ido as balas? O supliciado ia está de pé, vivo, intacto, incólume.
O comandante está tremulo, estupefato.
E é gaguejante que ele dá novas ordens, que exige pontaria melhor.
— Fogo! grita.
— Valha-me o Senhor do Bomfim! Brada Oliveira Pluma pela terceira vez.
Estoura e flameja a descarga. As balas foram todas, todas ao peito do condenado.
E oh, surpresa! oh, milagre! Oliveira Pluma está de pé, risonho, como se lhe tivessem atirado apenas um punhado de rosas.
Vai ser novamente ordenada outra descarga. Nesse momento a multidão intervém. A justiça não podia ter mais direito sobre aquele -homem.
E arrebata-o e leva-o corregado respeitosamente para a capela próxima, a capela do Senhor do Bonfim.
E só muitos anos depois Oliveira Pluma morreu.
Entre o céu e a terra há certamente muita e coisa que está acima do entendimento humano.
Qualquer espírito de vulgaríssimas qualidades observação e senso comum, ao entrar da nossa história, tem a cada passo um espanto. Não são as belezas, os grandes lances, os surtos épicos que nos surpreendem. São as mentiras.
A história do Brasil está atravancada de mentiras.
Todos nós que passámos pelas escolas primarias fomos ensinados que, pela invasão de Duclere no Rio de Janeiro, Bento Gurgel do Amaral à frente de um punhado de estudantes, ali na rua Direita, destroçou e venceu a coluna do corsário francês.
As crianças de hoje aprendem essa passagem gloriosa de uma maneira mais incisiva e mais brilhante, por aquele admirável conto de Bilac — A defesa, dos “Contos Pátrios”, escritos rigorosamente para a meninada das escolas.
É uma mentira da história brasileira.
Raros são os historiadores que não falam dessa falange de estudantes que Gurgel do Amaral comandou.
Varnhagen, o mestre, embora não se refira a Gurgel do Amaral, alude aos estudantes. Em Southey lá estão os estudantes, em Rocha Pombo também, em João Ribeiro a mesma coisa. Em todos, enfim.
Todos mentiram.
E não é necessário um grande esforço para verificar-se o erro em que caíram os nossos historiadores.
Quando se deu a invasão de Duclere no Rio de Janeiro? Em agosto de 1710.
Que era o Rio naquela época? Que era a instrução publica naquela quadra?
A cidade não era mais que uma aldeia grande, a instrução era absolutamente nula, inteiramente inexistente.
A instrução pública no Brasil só foi criada pelo marquês de Pombal, e o governo pombalino começa com o reinado de d. José, em 1750, quarenta anos depois da invasão francesa. Antes disso não havia nada, rigorosamente nada, a que se pudesse dar o nome de escolas. Havia apenas o Colégio dos Jesuítas, mas o Colégio dos Jesuítas tinha a frequência de crianças de calças curtas. A mocidade estudiosa, como hoje retoricamente chamamos, a dos arroubos, da abnegação patriótica, dos entusiasmos cívicos, a capaz de pegar em armas, essa não existia, pelo simples facto de não haver onde estudar. Quem quisesse ir além das primeiras letras ensinadas pelos padres embarcava para o reino.
Onde teria ido Gurgel do Amaral descobrir os bravos estudantes que comandou para derrotar os franceses? No Colégio dos Jesuítas? Não é possível. Com crianças não se arriscaria ele a empresa tão perigosa.
O erro é flagrante. Gurgel do Amaral opôs de fato uma resistência formidável às tropas de Duclere, como no ano seguinte defendeu a cidade dos ataques de Duguay-Tirouin, morrendo desta vez aos embates das armas francesas. Mas não foi com estudantes que se atirou ao combate. Foi com populares, talvez moços todos eles, mas nunca das escolas, que escolas nós não tínhamos naquele começo do século XVIII.
Quem é afinal esse Gurgel do Amaral, que a história ruidosamente glorifica, levando-o até os livros escolares como exemplo cívico?
Apenas — um bandido.
A família dos Gurgeis foi, no século atrasado, de uma fama estrondante em crimes horrorosos. Bento Gurgel do Amaral Coutinho era negociante no Rio. Nos primeiros anos do século vamos encontra-lo em Minas, fugido, por ter feito umas mortes, ali, na igreja de Campo Grande. Está acolhido a proteção de Paschoal da Silva Guimarães, aquele celebre nababo da guerra dos Emboabas. Paschoal tinha sido seu empregado no Rio.
Lá em Minas, Gurgel é o mesmo homem. A história surpreende-o em vários negócios, em movimentos que não desmentem a sua fama de facínora. Em 1706, quando terminou, em Minas, o contrato de fornecimento de gado a população, eis que aparece Gurgel do Amaral, pedindo a renovação do contrato. Essa história da renovação do fornecimento de gado, que foi o germe mais violento da guerra dos Emboabas, era o que hoje se pode chamar uma grossa negociata. O monopólio com todas as características. Estavam no negócio, - além do herói dos “estudantes”, o celebre frade trino Francisco de Menezes, o belicoso frade Menezes que defendeu o Rio da invasão dos franceses, Manoel Nunes Vianna, o governador dos emboabas, e Sebastião Pereira de Aguilar, proprietário da grande fazenda das Aboboras.
Os paulistas levantam-se contra o monopólio. O frade vem ao Rio com largas somas dos seus sócios, para vencer ao peso de ouro. Os paulistas cotizam-se. Aquilo já é uma luta entre portugueses e os senhores da terra. Ganham estes a contenda.
Rugem então as rivalidades; as provocações de parte a parte acendem-se. Estala a imensa tragédia que se conhece pelo nome de guerra dos Emboabas.
É no período mais intenso da luta que se vai encontrar a figura de Gurgel do Amaral, no celebre episódio do Capão da Traição.
Um dia, o arraial da Ponta do Morro amanheceu cercado pelas tropas paulistas, ao comando de Valentim Pedroso Barros e Pedro Paes de Barros. Ambrósio Caldeira Brant, comandante dos emboabas, ali n° arraial, vendo que não podia vencer o inimigo com tão pouca força, manda pedir socorros a Nunes Vianna. Nunes envia então Gurgel à frente de um grande batalhão de reinóis. Os paulistas conseguem saber a tempo dos reforços de Gurgel, e fogem. Quando o batalhão emboaba chega as proximidades de Ponta do Morro não há mais o cerco inimigo. Trezentos paulistas atrasam-se na fuga. Gurgel envia o capitão Thomaz Ribeiro Corço a persegui-los. Corço não é homem para aquela empreitada, e volta do meio do caminho, alegando superioridade das tropas adversarias. Gurgel enfurece-se, reúne a soldadesca e marcha nas pegadas dos contrários. Os paulistas não contam mais com a perseguição: têm as barracas armadas num capão de mato e divertem-se a caçar, quando chega o batalhão perseguidor. O primeiro cuidado do comandante emboaba é pôr cerco ao capão. Começa o combate. Escondidos nas copas das árvores, os brasileiros defendem-se vantajosamente. Mas dois dias dura aquilo. Não há nada o que comer, não há nada que beber. No capão não corre ao menos um fio d’água. Não é possível resistir a tão longa privação. Na manhã do terceiro dia enviam a Gurgel a bandeira branca da paz. Diante do emissário paulista, diante de suas forças, Gurgel jura e jura pela Santíssima Trindade conservar a vida dos brasileiros em guerra. O juramento é formal — o bando de paulistas decide-se entregar as armas. Desencadeia-se a tragédia. Gurgel revela-se o infame que fora. Apanhando os brasileiros desarmados, manda-os degolar, um por um, sem corar do juramento de horas antes. A carnificina é tremenda. São os próprios soldados emboabas os primeiros a condena-la, é Manoel Nunes Vianna envergonhado do proceder miserável do seu cabo de guerra. O eco daquela traição abala profundamente os ânimos dos reinóis. D. Fernando de Mascarenhas, que até aquele instante não havia prestado grande atenção á guerra, segue do Rio para Minas para conter a insurreição.
Gurgel sente que os próprios correligionários o repelem. Foge, como do Rio fugira por ocasião das mortes na igreja de Campo Grande. Em 1710 parece-lhe que tudo está esquecido. Surge então no cenário do Rio de Janeiro. A ocasião é maravilhosa para que ninguém lhe peça contas. A cidade está agitada pela invasão de Duclerc. O que se quer são braços, são peitos decididos para a defesa.
Ele é infame, mas é valente. Arregimenta de improviso um troço de homens, e atira-se na luta. A vitória, conquistada com heroísmo alucinado, dá-lhe direito a viver tranquilamente.
Depois vem a invasão de Duguay-Trouin. A colisão é maior. O corsário francês consegue conquistar definitivamente a cidade. As forças da defesa estão completamente desanimadas.
Gurgel luta com os invasores na Bica dos Marinheiros e no morro de S. Diogo.
Depois do saque, o almirante francês envia ao governador Castro Moraes a intimação para que resgate a cidade. Se o resgate não fôr feito, serão as fortalezas arrasadas, a barra entupida com os navios apressados e a cidade destruída a fogo. E, para mostrai quanto era seria a ameaça, o corsário conquistador enviara 300 soldados para talar os campos, meia légua em torno da zona urbana. Bento Gurgel, com pouco mais de 20 homens, vai impedir o trabalho destruidor dos franceses. É morto então pelas tropas de mr. Brugnon, que lhe carregam o cavalo e as armas como troféus.
E aí está o herói dos estudantes. Era valente, era destemido, mas para uma glorificação histórica, principalmente para uma glorificação cívica nas escolas, é muito infame.
O sr. Eugênio Silveira, com aquele belo espírito de escritor e aquela imensa e devota simpatia pelas coisas monárquicas, traçou pelas colunas do Correio da Manhã um lindo artigo sobre a clemência de d. João VI.
Com elogios claramente exagerados ao autor destas linhas, afirma o publicita português que foi uma das nossas reminiscências históricas a dar-lhe a sugestão do trabalho. O artigo de Eugênio Silveira nega o que aqui dissemos — que a clemencia filho de Maria I não passa de uma escandalosa mentira histórica. E, a propósito, conta o que se passou entre o monarca e o marquês de Loulé. D. João foi com o marquês de uma clemencia exemplar.
Deve ser verdade.
Mas, para a história, o gesto de d. João VI, naquele caso, é precário para um julgamento imparcial.
Basta que a gente se lembre que Agostinho Domingos José de Mendonça, o 1° marques de Loulé, era pai do 2° possuidor desse título, Nuno José Severo de Mendonça e Moura, que se casou com d. Anna de Jesus Maria de Brangança e Bourbon, filha de Carlota e pretensa filha de d. João. E, segundo rezam as crônicas intimas da corte, muito antes do casamento o marquês e a princesa era amante.
O soberano foi forçado a ser clemente para o pai do seu futuro genro.
Não pode haver em nós o propósito de negar as qualidades ao fundador do reino do Brasil. É possível que essas qualidades existam; mas, que existam, a ponto de elevar d. João às culminâncias de rei clemente — isso é que não.
É preciso de uma vez sufocar pelo gasnete as mentiras berrantes da nossa história. A visão moderna de historiar não permite mais repetir o que está convencionado; exige a verdade.
E, diante da verdade, d. João VI foi um dos caracteres mais esfarrapados, mais oscilantes e, pode-se mesmo dizer, mais torvos do seu tempo, uma das almas mais estranhamente feias, das almas da sua estirpe.
Aquele facto que, em 1803, escandalizou o reino português, é a prova mais retumbante de que a apregoada e estabelecida clemencia d’el-rei não passa de uma mentira pueril da história.
O caso é conhecido.
Em 1800 entrou para o paço real, em Lisboa, como dama de honor, a figurinha tentadora e linda de uma brasileirinha. Era d. Eugenia José de Mendonça Eça de Menezes, filha de d. Rodrigo de Menezes, o conde de Cavaleiros. Tinha ela nascido em Minas (Mario Bhering — "Monumento a D. João VI”) em 1781 quando o pai, aqui pelo Brasil, andara como capitão general e governador daquela capitania.
No esplendor dos seus dezenove anos, no viço rutilante de uma mocidade formosa, d. Eugenia era sorriso e o corpo mais festejados da corte. Havia sua figura um quê de estranho e embriagador, um misto de fidalga que possuía no sangue o sangue dos Marialvas e o travo esquisito de uma fruta selvagem. O ambiente voluptuoso do Brasil, onde ela viera a luz passara os seus primeiros dias, deixara-lhe na carne ama vibração original; sentia-se-lhe na graça de fidalgo o fulgor estonteante dos seres meridionais.
Pelo que dizem as crônicas, d. Eugenia, pelos seus donaires, pela sua formosura, pela maravilhosa mocidade dos seus encantos, ofuscara a corte tabaqueira e carola dos primeiros dias da regência da rainha louca.
D. João não havia encontrado no leito a de Carlota Joaquina os gozos que devia encontrar nos braços de uma espanhola. E, a primeira cabeça que a figurinha vaporosa e picante daquela brasileira desnorteou, foi a cabeça real do príncipe regente.
D. Eugenia tinha a leviandade natura os dezenove anos irrefletidos, a vaidade naturalíssima dama do paço. A visão de amores com o rei, devia-lhe ter feito esquecer a beiçorra caricata de D. João. Devia-a envaidecer e seduzi-la.
E foi o que se deu. Por meados de 1802 já o príncipe é amante da filha do conde de Cavaleiros.
Ou porque tivesse medo da língua destinada de d. Carlota, ou porque tivesse o feitio e o jeito de santarrão, o regente procura cercar os seus amores de um ambiente de mistério e dissimulações. .
Um príncipe, um rei tem sempre alcoviteiros dedicados. D. João teve dois: o seu afilhado, o celebre padre João, e o dr. João Francisco de Oliveira, físico maior do reino e medico do paço. O papel a que essas duas figuras se prestaram foi o mais triste e o mais ridículo. Em certas noites havia necessidade de passar a moça dos seus aposentos para os aposentos do príncipe. D. João, medroso, dissimulado, com aquela covardia que foi o traço predominante de sua vida, receava ser surpreendido por alguém, quando se esgueirasse pelas paredes dos corredores. E então, ao anoitecer, o padre e o médico entravam no quarto de d. Eugenia, para palestrar. Mais tarde saiam, dirigindo-se os dois para os aposentos do príncipe. Mas aí já não entrava mais o padre. Havia ficado lá no quarto da dama de honor, sem a batina. D. Eugenia, disfarçada em sacerdote, com as roupas do padre João, era quem transpunha a porta da alcova real.
Mas, ao começar o ano de 1803, o regente está agoniadíssimo — a brasileirinha será mãe naquele ano. O escândalo estrondará.
O filho de Maria I tem a mania de passar pelo monarca mais limpo de costumes e mais recatado de moral daquela época em que os soberanos não se envergonhavam de proles bastardas. É preciso evitar de qualquer maneira o escândalo.
E d. João entende-se com o dr. João Francisco de Oliveira. O que propõe ao médico é o que nenhum o homem tem a coragem de propor a outro. Quer que ele fuja com d. Eugenia, que ele passe por ter sido o conquistador do coração da fidalguinha. Para um príncipe regente um facto daqueles seria horrível e desmoralizador, para um simples mortal não teria vulto o caso.
João Francisco é casado e tem dois filhos. Devia ser uma alma com uma noção muito estranha da honra e da fidelidade aos reis. Aceita a proposta. Sacrificará o seu nome, o nome de sua família, a paz conjugal, o futuro, tudo, pelo bom nome e boa ama o soberano de sua pátria.
A pretexto de doença, d. Eugenia licencia se e retira-se para a casa de um irmão. E, no dia 27 de maio de 1803, o escândalo estala em toda a Lisboa. A moça desaparecera com o dr. João Francisco de Oliveira.
A corte inteira formiga em mexericos. Os matadores da farsa, magnificamente preparados para o grande efeito, não conseguem convencer ninguém. As cautelas do regente não tinham tido a virtude e a sua culpabilidade. A maledicência zune e fervilha. Carlota Joaquina é a primeira a afiar a sua tremenda língua:
— Dos três Joãos um foi, que todos três andavam lá, o padre, o médico e o príncipe, dizia abertamente, naquela desenvoltura sem peias que tanto caracterizou.
Na carta que João Francisco escreveu a esposa comunicando a fuga, carta de que a Biblioteca Nacional possui uma cópia autentica, escusa-se o médico de explicar as causas do seu gesto, e isto porque a mulher “tudo saberá”. Confiava seguramente na língua do povo.
D. João não contava com o mau resultado da farsa. Não lhe havia passado pela cabeça que a corte e o povo repelissem engolir a pílula.
E aquilo o irrita. A sua admirável clemência vem a flor. E que se imagina do proceder, da grandeza de alma do monarca? Volta-se contra a formosa criatura dos seus amores. Diante da mulher amada, da mulher que se amou, todo coração esbarra. O do regente, não. D. Eugenia foi perseguida tremendamente, infamemente, miseravelmente.
A 2 de julho o príncipe lança para o reino surpreso o alvará da perseguição. No documento há frases e sentenças que irritam e revoltam. Ha coisas destas: ... “tendo-se verificado na minha Real Presença que d. Eugenia José de Menezes, esquecida da honra e da decência do paço, de si mesma e daqueles de quem vem, se precipitara (vejam isto, vejam isto) no crime torpe e abjeto de fugir com um médico, ofendendo assim o respeito e o decoro do mesmo paço e injuriando a família e a casa em que nasceu, com tanta infâmia própria como escândalo geral...”
E mais ainda: “que sendo indispensável não só zelar o respeito devido á casa real e a honestidade e louvável procedimento da família dela, especialmente daquelas criadas que, pela sua qualidade e representação devem servir de exemplo (grande farsista!) Na pureza dos costumes e gravidade de todas as suas ações: mas também conservar ilesas a memória e nobreza das famílias ilustres que não podem ser representadas por pessoas (e essa pessoa ele havia amado!) Indignada, as quais envilecendo por fatos torpes, abjetos e escandalosos a distinção com que nasceram se deserdam por eles da grande representação dos seus maiores e das prerrogativas e privilégios que os mesmos lhes transmitiram por virtudes assinaladas, feitos heroicos e sacrifícios gloriosos...”
E não é tudo. Tudo isso ele afirma desassombradamente para mandar que dona Eugenia riscada do título de dama, privada de todas as mercês e honras, e excluída da sucessão dos bens e ordens a que tenha ou possa ter algum direito.
Mas isso não é nada ainda em comparação ao resto. Nem mesmo diante do fruto de seus amores, nem mesmo para o filho iminente que ele sabia ser seu, d. João, com toda a sua clemencia, vacila e recua. O alvará termina com estas sentenças horrendas: “ordeno que seja degredada (d. Eugenia) da família e casa em que nasceu e de ficará estranha (é necessário grifar) por si e seus descendentes, se os tiver por todos os atos feitos e de direito sem poder suceder em herança “ab inststato”, nem em vínculos e prazos familiares, como se houvesse nascido de ínfima plebe, extintos todos os direitos de sangue”.
Havia nas Ordenações dispositivos que contrariavam aquele rigor. Mas ele os derroga com este final: “pois assim é minha vontade, e o determino definitivamente de motu próprio, certa ciência, poder pleno e supremo, para que mais não possa vir em dúvida em juízo ou fora dele”.
Ainda não é tudo. D. João está empenhado em convencer o reino da sua pureza de costumes. E manda perseguir, mas perseguir a valer, o casal de fugitivos. D. Eugenia é presa em Cadiz; o médico, esse teve tempo de escapulir e embarcar para a Inglaterra, passando-se depois para os Estados Unidos.
Desiludida, amargurada, a moça recolhe-se ao Convento das Monjas de Cister, em Tavira. Meses depois dá à luz Eugenia Maria de Menezes o fruto da sua união com o regente. Daí por diante a sua vida é a página comovedora de um coração sangrado. Volta-se para a religião, volta-se para a ternura e para o amor de sua filha. Frei Thomé de Castello de Vide é o seu grande amigo, a quem ela confessa toda a imensa amargura que lhe vai na alma. Tempos depois, em 1814, o frade é transferido para o Convento de S. Bernardo de Portalegre. Ela não pôde mais viver sem a consolação suave daquele velho, e para lá se transporta também. Aos quarenta e sete anos parece uma velha centenária, sem um fio de cabelo preto, sem um traço que não seja uma ruga. E, em 1818, morre ao peso da imensa dor que a “clemencia” de d. João lhe pôs sobre a vida.
Mas não é tudo ainda. O processo contra o dr. João Francisco de Oliveira segue toda a sua marcha até a sentença final. O médico é condenado “pelo torpíssimo e abominável atentado com que prevaricou no exercício do seu emprego e por ter a usa o faculdade e entrada que por ele (o emprego) se lhe permitia na pousada de d. Eugenia, aliciando-a até ao ponto de a raptar”.
É condenado a que? Apenas a forca. A forca na qual, diz a sentença, “morrerá morte natural para sempre”.
E, como estivesse foragido, a sentença o considerava banido e mandava às “justiças que apelidassem contra ele toda a terra para ser preso ou para que cada um do povo o pudesse matar não sendo seu inimigo”,
Atada mais. O dr. João Francisco foi castigado com a “confiscação e o perdimento de seus bens para o fisco”.
Ele e d. João se equivaliam. Muitos anos mais tarde o médico, vindo dos Estados Unidos, desembarca no Rio de Janeiro, El-rei recebe-o bem e em 1821 está nas cortes gerais como deputado da ilha da Madeira.
A menina Eugenia, a filha do monarca, conserva-se no Convento de S. Bernardo até 1826. Depois aparece casada com Guilherme Smith, consul geral da Inglaterra em Portugal. Em 1849, com D. Maria II no trono, o cônsul intervém e consegue que se revogue o alvará de 2 de julho de 1803, reconquistando assim a filha de d. João todos os direitos e honras de sua mãe desgraçada.
E aí está a excelsa clemencia de el-rei. Nem mesmo diante do amor ela teve existência e grandeza.
A história da Inconfidência Mineira vive até hoje atravancada de dúvidas e obscuridades. Muita coisa está ainda em pleno nevoeiro, sem uma explicação razoável.
Aquela história do rebuçado é um ponto de interrogação que perdurará por muito tempo.
Nos primeiros anos do malogro da conjuração corria em Minas que, numa certa noite, depois do visconde de Barbacena suspender o lançamento da “derrama”, um vulto misterioso, que se não sabia se era homem ou mulher, andou de casa em casa dos conspiradores, avisando-os da grande desgraça que ia arrebentar, e aconselhando-os a que fugissem e a que queimassem os papéis que os comprometessem.
À primeira vista a coisa toma um aspecto da lenda. Um vulto misterioso de rebuçado que tarde da noite vem bater à porta para prevenir de uma desgraça, sem que de maneira alguma se revele, mesmo no sec. XVIII, tem uma feição de fábula.
Mas, no fundo de toda mentira, há pelo menos uma migalha de verdade a pescar. Estudando-se, com certo interesse, a história do encapotado fabuloso, fica-se arrastado a acreditar que alguma coisa existiu.
Se hoje muita gente não a leva a sério, a verdade é que, na época, todo mundo nela acreditou. O próprio visconde de Barbacena preocupou-se infinitamente com a tal aparição misteriosa, e preocupou-se tanto que, em pessoa, procedeu a diligencias particulares e ainda oito meses depois dos primeiros boatos, ordenava inquirições de testemunhas para apurar a verdade.
Quem conhece a figura de Barbacena, bisonho, sinistro, de poucas palavras e de muito ouvido, tendo tanto que fazer no processo da Inconfidência, não pode acreditar que ele perdesse tempo com o tal encapotado noturno, se isso não tomasse aos seus olhos um aspecto de gravidade.
E, como se conta a história, o rebuçado devia ter produzido, na época, um grande abalo nos homens de Villa Rica. Era em maio de 1789. Tiradentes havia já partido para o Rio, a mando dos conjurados, para levantar o povo carioca. Barbacena, avisado por Joaquim Silvério de que se conspirava, tinha inesperadamente feito a suspensão da “derrama”. A medida do governador da capitania deixara os conspiradores com a pulga na orelha. A atmosfera era de chumbo, o ambiente de dúvidas e receios. Do Rio nenhuma notícia se sabe de Tiradentes. Só Barbacena, sempre calado, escondido no seu retiro de Cachoeira do Campo, sabia de tudo. Os boatos zuniam, cortando o ar. Na noite de 18 para 19 de maio (Tiradentes havia sido preso a 10, no Rio, por Luiz de Vasconcellos) o vulto disfarçado aparece de porta em porta, contando do desastre no Rio e aconselhando cautelas.
Era para impressionar. Pelo menos o ambiente estava preparado para uma aparição daquela ordem.
Diante dela Barbacena escandalizou-se. Chega mensagens a ficar apreensivo e tonto. Como o povo antes dele, sabia do que se estava passando na capital do vice-reino? Quem teria trazido, a notícia; quem era o tal encapotado?
Não conseguiu saber. Não se sabe até hoje.
Que ele existiu, parece que só uma documentação posterior poderá apagá-lo da história.
Percorrendo-se a papelada da Inconfidência lá se encontra, no Appenso II da Devassa de Minas, os rastros da sua passagem.
Apenas há discordâncias quanto a data da aparição e quanto às minúcias desta.
O tenente-coronel Antônio Xavier de ajudante de ordens do governador, diz que embuçado apareceu em casa de Cláudio Mancel da Costa na noite de 18 para 19 de maio (Atestado datado de Vila Rica a 13 de janeiro de 1790 — Appenso II — Devassa de Minas). As outras pessoas afirmam que foi depois de 23 de maio, após a prisão de Thomaz Antônio Gonzaga.
Consta do Appenso que, na manhã de 19 de maio de 1789, o desembargador Gonzaga, em viagem a Vila Rica a Marianna, contou ao tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade que o Bacharel Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, indo ao amanhecer daquele dia à sua casa, lhe narrara capotado na porta de Cláudio Manoel da Costa, na noite de 18. Ao voltar a Villa Rica, Francisco de Paula levou a novidade a Barbacena.
Todas as outras testemunhas referem-se a datas posteriores. Uma delas é Antônia da Costa, preta forra, de nação Mina, maior de cinquenta anos. É serviçal de Thomaz Antônio Gonzaga e mora na casa desembargador conjurado. Conta que, uma noite (já o desembargador havia sido preso) ouviu bater à porta do magistrado. Vindo atender, viu a certa distância da porta um vulto que não pôde distinguir se era masculino ou feminino. O vulto procurava por Ruiz Antônio de Freitas, afilhado do pai de Gonzaga e que se criara na própria casa do desembargador. Luiz de Freitas não estava; tinha ido à residência de José Veríssimo da Fonseca, escrivão da ouvidoria.
— Corre, disse o encapotado, vai dizer-lhe que se acautele, que fuja, que já não durma hoje á noite em casa, pois que o querem também prender.
E dizendo isto desapareceu. A negra foi dar conta da missão. Nunca, porém, soube ou quis dizer quem era o embuçado. Só contou que parecia mulher e mulher de fora da terra, talvez alguma moradora do arraiai dos Paulistas, nos arredores de Villa Rica.
Outro testemunho é o de José Veríssimo da Fonseca, o escrivão da ouvidoria. A casa do escrivão ficava contigua à do poeta Cláudio Manoel da Costa. Conta ele que, logo após a prisão de Gonzaga, estando em sua residência a conversar com Manoel Fernandes Costa e Luiz Antônio de Freitas, bateram à porta. Era a negra Antônia que queria falar a Luiz. Este foi atende-la e, quando voltou, voltou assombrado, narrando que a negra vinha avisá-lo da aparição de um vulto misterioso, naquele instante, em casa do desembargador, vulto que lhe mandava aconselhar a fuga para evitar a prisão.
Estavam eles a comentar o caso (é ainda o escrivão quem narra) quando José Verissimo foi chamado à casa de Claudio Manoel da Costa. Claudio estava preocupadíssimo e narrou-lhe que um desconhecido lhe havia batido a porta para o avisar que fugisse e queimasse todos os papéis comprometedores.
Conversaram longamente sobre o fato. Claudio interrogado pelo escrivão, confessou não ter reconhecido o vulto.
— Deve ser algum dos meus inimigos, disse. Quer que eu fuja para que, aos olhos das autoridades pareça culpado de crimes que não tenho.
Manoel Fernandes Coelho, tesoureiro da Intendência, a quem José Veríssimo se referia no seu depoimento, foi também ouvido pelas autoridades. A sua narrativa é aquela mesma história da ouvidora. Apenas acrescentou que o dr. Cláudio estava bastante assustado e temeroso com a aparição e que ele, escrivão, o animara, procurando persuadi-lo de que o aviso devia ser fábula e que não desse crédito a coisa tão insignificante.
Cotejando-se esses depoimentos, pode-se ter impressão de que é fabuloso o aparecimento do rebuçado. A única testemunha de vista é a preta Antônia, já velha e certamente dada a acreditar em mistérios. O atestado do tenente-coronel Xavier de Rezende refere-se apenas à narrativa de Freire de Andrade. Nenhuma das outras testemunhas diz ter visto o vulto desconhecido.
Mas essa impressão parece desmanchar-se diante do depoimento de Cláudio Manoel da Costa. O poeta conspirador foi chamado ao palácio de Barbacena para esclarecer o caso. As suas palavras dissipam a nevoa de fábula. Confirmam a aparição da figura enigmática. Apenas há erros quanto à forma e quanto ao tempo dela. Não foi, como se diz, na noite de 18 para 19 de maio, e sim depois da prisão do desembargador Gonzaga.
E corrige também a forma. Uma noite saiu ele do seu escritório para acompanhar uma visita até a porta da rua. Ao desaparecer a visita, um vulto disfarçado parou na sua frente. A noite estava escura e não pôde distinguir se era mulher ou homem, ou homem disfarçado em mulher. Pediu-lhe o rebuçado que o ouvisse; tinha assunto importante a tratar.
— Entremos, convidou o poeta.
— Não.
Não houve meio do desconhecido entrar. Ali mesmo a porta, protegido pela escuridão, deu-lhe aqueles conselhos de fuga e destruição de papéis comprometedores.
Com tudo isso a tal história do rebuçado continua a ser uma interrogação, no cenário da Inconfidência. Um dia aparecera certamente alguém de paciência minuciosa que a ponha à luz.
O cenário social e político do Brasil não portaria nunca os reis ostentosos, rígidos, autocratas, quase sobrenaturais, quase divinos que a gente encontra na história dos velhos povos.
É que isto foi sempre um país original desde os seus primeiros dias. O respeito a autoridade foi a coisa que nunca pôde existir no Brasil.
E o fenômeno explica-se. É que, ao ser desvendado o continente brasileiro, a natureza, pela sua imensa força e pela sua virgindade potente, tinha papel maior que o homem. Quem aqui chegava era dominado e absorvido por ela. Calcetas e fraldes, fidalgos, piratas e donatários, ao pisar a terra de Santa Cruz sofriam a ação niveladora da natureza barbara. As dificuldades eram as mesmas para os pequenos como os para os grandes, e as virtudes e os defeitos quase os mesmos para os bons como para os maus, os perigos iguais para os fortes como para os fracos.
Esse nivelamento físico tinha que produziu o nivelamento moral. Desde o alvorecer da história pátria que os homens têm o mesmo plano. O nível é um só. As autoridades não têm força para impor o princípio de hierarquia numa terra em que ele próprio periga, os homens acostumam-se a não conhecer o valor das leis, e estas, pelas necessidades da terra a povoar, têm de ser benignas na forma e quase nulas na execução. A autoridade real foi-se dissipando, dissipando, até que se apagou da memória do povo.
E quando Portugal abriu os olhos, quando pôde organizar um mecanismo administrativo para o Brasil, era tarde. Já o elemento nacional se havia formado ao leu, desorganizado, com caráter próprio, tendo por alicerces o nivelamento de início. E, por mais que o mecanismo do governo português se tornasse rigoroso e perro, não era mais possível dominar os impulsos da rebeldia brasileira.
Havia já um povo senhor do seu nariz e que tinha o habito de levantar o nariz bem alto. E quando mais ásperas eram as exigências de Portugal, no tempo de D. João V e no governo pombalino, tinha-se de certa maneira a ilusão de que o princípio de autoridade escava implantado no Brasil. Apenas ilusão. No fundo a realeza, com a sua alta proa e o seu poder, não passava, para nós, de uma caricatura a que ninguém levava a sério. Burlavam-se as leis nas barbas das autoridades, lograva-se o fisco pelo gostinho e o lograr.
Num país, com um povo assim, não se podiam compreender reis ostentosos, rígidos, quase sobrenaturais, quase divinos.
Houve, em certo momento histórico, oportunidade para se impor à nossa gente a imponência da realeza e firma-la no nosso espírito como coisa séria, impressionante, augusta, deslumbradora. Foi quando, para o Brasil, se mudou a corte de Portugal.
O espírito público parecia estar preparado para venerar a majestade de cabeças coroadas. Mas, o que nos chegou a bordo das galeras portuguesas tinha aparência de opera bufa. Era uma corte esbodegada pelos azares da fuga, uma espécie de bando de saltimbancos à procura de um pedaço de terra para armar a barraca .
Faltava-lhe grandeza, faltava-lhe magnitude rancho compunha-se de uma multidão e fidalgos empobrecidos, sem distinção, sem linha, devorados pela gula de enriquecer; de uma rainha velha que gesticulava e gritava plebeiamente em crises de loucura — a infeliz D. Maria I; de outra rainha e essa escandalosamente adultera e escandalosamente debochada e plebeia - D. Carlota Joaquina; - de um pobre rei molengo, de queixo bambo, medroso, glutão — o sr. D. João VI.
Se, até aquele momento, tínhamos no nosso animo pouca disposição para compreender e venerar a magnificência da realeza, daí por diante a disposição se anulou completamente.
A realeza era aquilo? Aquela multidão de gente foragida e brutalizada pelo medo das legiões de Junot? Um rei que cochilava, arrotando? Uma rainha que dizia palavrões como as negras das senzalas e uma rainha velha que desvairava, estrebuchando como qualquer histérica?
Num outro momento foi também possível impor ao povo a dignidade real. É na eclosão da independência, quando se funda o império.
Mas o destino parecia não encontrar no cenário social e político do Brasil grandeza suficiente para a figura de um grande rei que se impusesse pela majestade de seu título.
O monarca que os fados nos deram foi o sr. D. Pedro I, um estourado, um estrabulegas, um epiléptico, sem educação política, sem educação familiar, um homem que vivia nos mais estrondosos escândalos de saias e que, em plena vigência da atividade imperial, apanhava, por culpa dos seus amores, tremendas sovas de pão que lhe quebravam as costelas.
O povo acostumou-se a vê-lo como a um seu igual acostumou-se a encontra-lo tarde da noite em serenatas com a Miquelina, em “farras” com tudo quanto era “farrista”, agarrado às saias de todas as mulheres capazes de despi-las.
Não o respeitou, nem podia respeitá-lo. E no Brasil ninguém mais pôde compreender um monarca senão como um homem igual aos outros homens.
Pedro II não podia ser senão um rei democrata. Quisesse ter outro tom, encontraria no país todas as hostilidades de tradições e de ambientes.
Mas foi o próprio destino que o preparou para ser o suave, o extraordinário, o encantador monarca que encheu mais de meio século de nossa história. Deu lhe aquele pai avoado que foi Pedro I, mas em compensação lhe deu aquela mãe dulcíssima e sofredora, a pobre D. Leopoldina, que, no fausto do palácio imperial era, pelos desmandos do marido, mais infeliz que a mais desgraçada de suas súbditas. E quando, em tenra idade, lhe tirou o aconchego materno, entregou-lhe o regaço vigilante e protetor daquela mulher admirável que se chamou D. Maria Carlota Verne de Abreu.
Tudo a sorte lhe trouxe para dulcificar-lhe o cora e amolda-lo ao contato do coração do povo, tudo, até o sofrimento. Fê-lo órfão de mãe mal começava a andar, levou-lhe o pai para a Europa quando tinha a apenas seis anos.
Desde menino que teve todos os elementos a mostrar-lhe que um príncipe, mesmo com um trono aos pés, é um homem como qualquer outro. Não havia ainda aberto os olhos do entendimento, estava no temporal do 7 de abril e, horas depois, na longa e sangrenta borrasca da Regência. Chegavam-lhe aos ouvidos alarmados dos o ulular do povo em revolta; durante nove anos em que o seu espírito infantil ia acordando, só ouviu, sofrendo certamente, gritos de lutas, agonias, dissenções, combates.
Ao vir a Maioridade tinha a alma nivelada a alma das ruas.
E todo o seu longo reinado foi de absoluta felicidade, de absoluta intimidade com o elemento popular. Talvez tivesse sido o mais simples, o mais suave, o mais doce, o mais liberal, o mais democrata dos monarcas que tenham passado pelo planeta.
Acusam-no de ser cioso das suas prerrogativas, rigoroso nas exigências dos protocolos, exigente nas regras da pragmática, quando se apresentava na Corte. É possível. Era isso a feição ingênua, a feição infantil do seu caráter. E nada mais explicável na vida. A bondade de Pedro II era tão alta e tão larga que lhe prejudicava, de certo modo, a energia. Era o Pedro Banana no bom humor trocista dos brasileiros.
Ele sabia disso e queria fingir que era enérgico, que tinha vontade potente. E, como não possuía, no fundo, energia real, procurava fingi-la, mostrá-la nas exterioridades. É a maneira usual dos fracos. Fingia que sabia mandar e que mandava.
Conta Ernesto Mattoso que, no Paraná, na inauguração da Compagnie Imperiale des Chémins de Fer du Brésil, pelo simples fato do programa das festas ter sido organizado à revelia do imperador, D. Pedro desorganizou-o completamente mudando para três dias depois, um grande banquete que já estava posto à mesa e que custara mais de trinta contos.
Capricho? Perversidade? Não. Intenção infantil de mostrar que o monarcha era ele, que se não despia das prerrogativas imperiais, que quem mandava era ele, ele, o chefe da Nação.
Mas, no fundo, era a mais encantadora das criaturas. Desde que não estivesse em foco a sua qualidade de imperante, desde que entrasse no ambiente da intimidade, era a doçura, a simplicidade, como nunca foi nenhuma outra cabeça coroada. Misturava-se com o povo; andava na rua como qualquer mortal, com a sua sobrecasaca e o seu guarda-chuva debaixo do braço; dava em casa alheia à presidência da mesa ao dono da casa; chamava inferiores para a sua mesa, ia até o fundo da cozinha do Colégio Pedro II provar as panelas, para verificar se forneciam boa comida aos estudantes; ia aos mercados comer frutas, como muita vez fez em Lisboa, etc., etc.
Teve os seus pecados, teve, mas muito menores que os dos outros soberanos, e nunca o pecado de se julgar superior aos homens que governava.
No pequeno espaço de meio século os franceses concorreram para a história do Brasil com o mais vivo contraste que hoje se pôde encontrar na nossa história — a França Antarctica de Villegagnon e a França Ártica de La Ravardière.
E tão forte é esse contraste, tão acentuadas são as diferenças entre aquelas duas tentativas colonizadoras, tais as diversidades do gênio dos dois homens que produziram os dois factos históricos, que a gente se surpreende de ver um só país e um só povo, revelando, em tão curto tempo, diferenciações tão flagrantes.
A França Antarctica nas terras da Guanabara e a França Ártica nas plagas do Maranhão são tão diversas, que só povos opostos em caráter podiam produzi-las. Villegagnon e Ravardière são figuras tão dessemelhantes, como um chinês é de um italiano, como um suíço é de um esquimao.
O contraste é pasmoso entre as duas obras e entre os dois vultos.
Na colônia de Villegagnon predomina a intriga, o ódio surdo, a desordem, a opressão. Na colônia do Maranhão o que existe é a harmonia, a unidade de vista, a grandeza d’alma. Naquela ferve o rancor, o desespero, a ânsia insatisfeita da liberdade; nesta a ordem é um facto, a justiça é um direito. Villegagnon é a prepotência; La Ravardière o cavalheirismo.
No Rio de Janeiro a liberdade de consciência andou ao sabor das vacilações religiosas de Villegagnon; no Maranhão, La Ravardière deu aos ministros católicos, a mais larga liberdade de ação e, apesar de calvinista, assistia-lhes às cerimônias públicas.
No Rio, o chefe da colônia, huguenote vermelho, persegue os protestantes dentro dos muros de sua fortaleza; o criador da França do Norte, protestante consciente, exige que se respeitem os missionários católicos no exercício da religião.
Na colônia do Sul o índio é um animal inferior, na colônia do Maranhão o índio vale tanto, que há leis determinando que não se exponham moças selvagens ao ridículo.
Nas mãos do diretor da França Antarctica mais de uma vez foram os índios escravizados e mortos; na França Ártica eram rigorosíssimas as leis contra quem injuriasse ou sacrificasse os gentios.
Para os franceses da Guanabara o selvagem é um animal de carga, obrigado a fornecer aos colonizadores tudo que a terra possa dar; lá no Norte, La Ravardière castigava tranquilamente todo aquele que pretendesse apoderar-se das roças ou de qualquer outro bem dos índios.
Nunca houve dois homens de visão tão oposta.
Diante de um continente maravilhoso como o nosso, diante de uma paisagem tão alucinante como a da Guanabara, que despertam-na gente a ânsia de conhecê-la nas suas minúcias, Villegagnon teima em enjaular-se na pequenez de uma ilhota árida, dela não sai durante cinco anos e não dá passo algum para a conquista da terra de que é senhor. Aportando à ilha de S. Luiz, La Ravardière estende imediatamente os braços para o continente e, no curto espaço de três anos e quatro meses, o tempo que durou a sua missão, conquista um sem número de aldeias, percorre trezentas léguas de costa, explora a foz do Gurupy, avança até o Pará e afunda até as regiões inóspitas do Mearim e do Grajahú.
Entre o fundador da França do Sul e o fundador da França equinocial só havia um ponto de contato — é que ambos eram franceses. E é isso mesmo que mais avulta o contraste.
Quando aqui pisou, em meados do século XVI, Villegagnon trazia uma reputação brilhante: homem de guerra, escritor, latinista, caráter integro e independente, além dos seus títulos de fidalgo, cavalheiro da Ordem de Malta e vice-almirante da Bretanha. Mas, ao partir do seu país para a conquista do Brasil, já devia estar minado do vírus da moléstia que o fez, na nossa história, um dos maiores doentes da sua época.
Ao começar a organização da França Antarctica que vinha fundar no território brasileiro, Villegagnon se mostra um homem incompreensível. Não se sabe se é um comediante ou se é um louco. Ao rei da França, Henrique II, que é católico, diz-se católico; ao ministro Goligny, que é protestante, propõe criar na América um asilo para os huguenotes perseguidos na Europa. Quer no primeiro momento que a sua expedição se componha da gente mais educada e limpa; mas, ao surgir a primeira dificuldade, pede ao rei que lhe dê colonos das cadeias de Ruão e Paris. Aventurando-se a colonização de um país selvagem, sem base familiar, esquece ou repele a organização da família — não quer mulheres nos seus navios.
Mas a sua alucinação doentia só explode visivelmente diante da natureza do Brasil. É já um desequilibrado em pleno delírio. Chegando ao Rio de Janeiro com uma esquadra na qual havia homens inteligentíssimos, torna-se o algoz desses homens, levando-os ao cárcere e a morte. Recebido de braços abertos pelos índios, explora-os, castiga-os e trata-os como bestas-feras.
Partindo da Europa com a intenção de conquistar um país, muda de ideia ao chegar em frente ao esplendor da natureza desse país. Em Vez de pôr-se em contato com a natureza e o povo, isola-se e quer isolar a sua gente. Tranca-se no pequenino espaço da ilha que hoje tem o seu nome, transforma-a numa praça d’armas, torna-se o tirano de um grupo de desterrados, não vai à terra, nem permite que os seus companheiros com ela se comuniquem. Vindo para formar uma nação, tem, no entanto, preconceitos de raça os mais extravagantes — não quer que os seus subordinados se maculem na união ilícita com os naturais. Em vez de trabalhar, em vez de encher a terra virgem da atividade inteligente dos seus homens, em vez de tirar do solo riquezas novas, recebe dos indígenas até a própria alimentação.
Ele, que veio para organizar uma nacionalidade, organiza, no fim de contas, um presidio para os seus companheiros e para ele próprio, que de lá nunca se afasta.
Nem o cenário resplendente da paisagem guanabarina o seduz. Nem a curiosidade de conhecer de perto a beleza do país toca a sua alma seca de bretão.
Não sai um instante dos muros da fortaleza. Os dias decorrem-lhe áridos, ociosos, vazios, intermináveis. A sua vida e a vida dos seus comandados são um inferno. Estabelece uma disciplina despótica, que a ferro e fogo quer conservar, e conserva. É um tigre cercado de vários tigres que a sua prepotência criou.
Diante de um continente onde havia tantas coisas a fazer, gasta os dias em discussões estéreis sobre doutrina religiosa. Em vez de mandar os homens a conquista da terra que veio colonizar, tem a louca fantasia de enviar, daqui a Genebra, emissários a Calvino, para esclarecer-se.de umas tantas dúvidas sobre tricas de religião.
Devia ser uma alma estranha, a desse homem. Tendo diante dos olhos a mais bela baia do mundo, a amplitude da mais vasta região da América, escolhe para si a prisão de um rochedo. É que, entre o rochedo e a sua alma devia haver uma profunda afinidade: a ilha de Villegagnon era áspera, acanhada, escabrosa e dura. Foi a melhor fôrma que encontrou para o seu, coração de pedra.
Passeando pelas amuradas da cidadela, sempre carrancudo, sempre enfezado, nunca teve tentações de estender os braços para a natureza tropical que o sol maravilhoso do Brasil iluminava.
Só uma feição da vida o seduzia — a crueldade.
O isolamento devia-lhe ter aumentado a marcha funesta da loucura. Ha um período em que as suas mãos se ensopam miseravelmente de sangue. Os amigos mais - chegados, as figuras mais respeitáveis da expedição, são por ele insultados, martirizados e mortos. Manda matar pelo gosto de ver morrer. A um índio que comete uma falta insignificante, amarra-o a um canhão e despeja-lhe gordura quente em cima.
Ora persegue e castiga os católicos da sua ilha, ora escorraça e flagela os protestantes. De Genebra manda buscar ministros e praticantes do protestantismo, para ensinar a nova seita na sua fortaleza; e, quando estes chegam, é o primeiro a hostiliza-los. Esquece compromissos, esquece tudo e expulsa-os. Aos que ficam, manda matar, atirando-os dos muros da cidadela para as águas.
Era um demente e, nos momentos lúcidos, um bandido. Quando sabe que Mem de Sá se prepara, na Bahia, para vir expulsá-lo, arruma apressadamente- as malas e parte para a França, deixando aos companheiros a empresa da luta com os portugueses.
A história glorificou-o com uma mancha. Villegagnon é conhecido através dos séculos sob a denominação de “Caim da América”.
A figura de La Ravardière é inteiramente outra.
É o cavalheirismo, a dignidade, a tolerância em tudo.
Há nele, às vezes, traços que revelam uma envergadura admirável de colonizador. O índio vale aos seus olhos mais que os seus próprios compatriotas. Na França equinocial os selvagens tinham direitos excepcionais, garantias maiores que quaisquer outros homens.
Uma vez, chegando à fortaleza de S. Luiz uma tribo do Grajahu, mandou-a distribuir pelas aldeias vizinhas. Mas a tribo recusou-se a viver entre as outras tribos, receando choques. La Ravardière desaloja uma aldeia de franceses, hospeda os selvagens recém-chegados e, por eles, distribui as roças que os seus homens tinham feito.
O seu prestigio entre os gentios era tamanho que até para declarar guerra entre si vinham eles ouvi-lo.
Chega a ser espantoso que, naquela época, houvesse um espírito de tão larga liberalidade. Os rancores que existiam entre católicos e huguenotes estavam no seu período mais aceso. La Ravardière chefia um punhado de homens de ambas as seitas, e nunca houve uma revolta, uma queixa, ao menos, contra a sua conduta.
A dignidade de homem de guerra, tem-na ele como é raro encontrar. Derrotado na baia de Guaxenduba pelas tropas de Jerônimo de Albuquerque e Diogo, Campos, tem gestos de fidalguia arrebatadora. Ao saber que os vencedores estavam à mingua de remédios para curar as feridas, manda-lhes o seu médico e a sua Pharmacia, e não quer recompensa alguma. Sabendo que o forte de Santa Maria, onde se aquartelavam as forças portuguesas que o acabavam de vencer, sofria pela penúria de viveres, envia grande porção de milho, favas, feijões, não só para o alimento de seus inimigos como para o, plantio das roças. .
A bordo do seu navio, no dia seguinte à sua derrota, recebe Diogo Campos com honras excepcionais.
Vencido, é leal e gentil até ao último momento, até mesmo depois que os portugueses praticam deslealmente a ruptura do armistício da batalha de Guaxenduba.
É espantoso: a mesma França que deu o “Caim da América”, em menos de cinquenta anos, nos mandou o espírito admirável do fundador do Maranhão.
A arte mais complexa talvez não seja a de viver, mas a da escolha do momento, do cenário e da oportunidade em que se deve transpor a morte.
Até para morrer precisa a gente ter estrela.
Se Libero Badaró tivesse ficado no país natal, a própria Itália, a estas horas, não se lembraria mais do seu nome.
A felicidade depende, às vezes, de um gesto ou de uma doidice. A partida de Badaró para o Brasil foi classificada de doidice, pela sua família. E, desse pequeno gesto irrefletido, nasceu toda a felicidade gloriosa do italiano que São Paulo eterniza no rol dos mártires da Liberdade.
Na Itália Badaró morreria como um médico vulgar, apagado, como muitos médicos que lá morreram.
O cenário da velha pátria de Dante não tinha, no momento, as convulsões necessárias para as expansões rutilantes de um espírito liberal.
O cenário do Brasil era o daquele período curioso e fremente dos últimos anos do governo de Pedro I, em que a nação inteira amontoava a lenha para a fogueira que clareou no 7 de abril
Não tivesse ele mudado de terra e não tivesse escolhido o Brasil, e a sua morte talvez não fosse o esplendor que foi.
Não se podem negar a Badaró virtudes e relevos de inteligência e cultura. Era um médico habilíssimo e um botânico apaixonado. Antes mesmo de pensar no Brasil, dizem as crônicas da sua vida, tinha uma certa reputação profissional na terra natal, a Liguria, e convivia com vultos da estatura intelectual de Bertoloni, Viviani, Moreti, etc. mas isso era pouco para prever se uma posteridade radiosa.
A felicidade de Badaró foi o Brasil. Aqui teve ele a grande ventura de encontrar o cenário e a oportunidade para morrer. Teve, nos acontecimentos políticos, a rara sorte de ser assassinado em defesa das ideais liberais.
Libero Badaró chegou ao Rio de Janeiro em 1826. Não tinha mais que 28 anos.
Ao certo não se sabe o que o trouxe até cá. Querem uns que tivesse sido o próprio aspecto político do país. Uma alma avançada como a de Badaró devia seduzir-se, pelo tom revolucionário que o novo império apresentava desde o golpe de Estado de Pedro I. Não acreditamos nisso. Os acontecimentos do Brasil não teriam uma repercussão tão viva na Europa.
Outros afirmam que ele para aqui veio tangido pela curiosidade cientifica. Essa é que deve ser a verdade. Região tropical como a nossa, com uma flora que atraia tantos sábios, era natural que despertasse tentações no espírito apaixonado de um botânico juvenil.
No Rio a sua vida foi quase apagada. Clinicava e, nas horas vagas, subia os morros para estudar os fetos e as trepadeiras.
A situação política era já o preparo daquela tempestade que teve o seu epilogo com o 7 de abril. D. Pedro metia os pés pelas mãos. Os partidos agadanhavam-se numa luta que dia a dia se tornava mais intensa. O imperador já tinha perdido a confiança do povo. Os escândalos com a marquesa de Santos; a visão errada que ele, monarca constitucional, tinha da Constituição; as execuções dos revolucionários da Republica do Equador, a solicitude que agora mostrava pelos portugueses, preterindo os nacionais: tudo, tudo tinha concorrido para que o proclamador da independência cada vez mais se afastasse do coração do país.
Badaró aqui viveu dois anos. Não se conhece um gesto seu para mover-se, como liberal, dentro dos acontecimentos. Era natural, não conhecia a língua, não conhecia a terra e palpava-as primeiro.
Em S. Paulo inaugura-se o curso jurídico que depois se transformou em Faculdade de Direito. Em 1828 Badaró passa-se para S. Paulo. No curso jurídico há uma cadeira de geometria e o professor nomeado não tem pressa em mudar-se do Rio para a capital paulista. Ele oferece-se para lecionar gratuitamente a cadeira desprezada. Começa então a sua grande vida de agitador.
Alto, magro, de larga testa inteligente, era, apesar da gravidade das suíças e dos óculos, uma criatura simpaticamente impressionante. A alma, tinha-a suave e comunicativa. Era de esperar que espalhasse em derredor da sua figura um ralo de simpatias. E assim foi. Desde os primeiros dias os estudantes lhe dedicaram uma ternura cega. Solteiro, sem outra preocupação a não serem preocupações intelectuais, Badaró reúne em sua casa, a rua Nova de S. José, todos os moços do curso de direito. A rapaziada entra e sai ali como numa “republica”.
O nome de Badaró torna-se querido em toda a cidade. A sua clínica aumenta. Em pouco tempo é o operador e o parteiro de mais conceito. Em toda parte se contam os seus rasgos de desinteresse e de caridade.
De 1828 em diante os partidos políticos acirram-se mais na luta. A ascensão de José Clemente Pereira ao governo, a oposição tremenda que os liberais lhe fazem, a hostilidade furiosa que há em todo o país aos colunistas, acendem em toda a imprensa um furor de combate incontido. — Os clementistas têm tendências absolutistas! Grita-se de norte a sul.
S. Paulo é governado pelo bispo d. Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade. É um politiqueiro e nada mais. A. segunda autoridade é o celebre ouvidor Cândido Ladisláo Japiassú, uma das criaturas mais desassisadas, mais violentas e mais arbitrarias que tem tido a justiça paulista. A atmosfera política é horrível. Há necessidade de um freio contra a politicalha do governador e contra os desmandos de Japiassú.
E em 1829 aparece o Observador Constitucional, com Badaró a frente.
O novo jornal, provoca um rumor imediato. A linguagem, embora desataviada, transparecendo um mau escritor, é limpa e ao mesmo tempo enérgica. Os ataques visam diretamente as duas maiores autoridades da província.
O bispo sobe às nuvens, mas procura deter-se dentro da compostura do cargo. O ouvidor perde completamente as estribeiras. Por toda parte ameaça o jornalista, dando a entender aos íntimos que preparava a vingança.
O Observador Constitucional é recebido no Rio com grande estrondo. Os jornais contrários às ideias do governo louvam-lhe os princípios liberais e exageram-lhe a ação combativa. Badaró torna-se a única preocupação dos ódios das altas autoridades paulistas.
E é esse ódio que o vem matar. Até hoje não se sabe ao certo quem o assassinou. Mas, quem passar os olhos pelos acontecimentos da época, não terá dúvida alguma em afirmar que o mandante não podia ter sido senão o ouvidor Japiassú.
Pedro I foi longamente acusado como o bispo e como o ouvidor. Paixão política, exploração partidária do momento. O imperador nada teve com o crime. A morte de Badaró só o fez sofrer. O ruído produzido em roda dele abalou profundamente o préstimo e a alma do monarca. Quando d. Pedro fez aquela segunda viagem a Minas, as populações, a passagem da comitiva imperial, mandavam tanger os sinos e recolhiam-se às igrejas, assistindo missas por alma do jornalista assassinado.
Badaró teve a morte no momento preciso e em situações precisas para ser glorioso, morrendo.
Foi na noite de 20 de novembro de 1830. Ao que dizem as crônicas, fazia um luar alucinante. Era um sábado. As ruas da capital paulista estavam cheias de moças e rapazes que gozavam a brancura admirável do plenilúnio de seda.
Badaró jogava na intimidade de um amigo. Na sua casa um grupo de estudantes toca flauta, violões e cavaquinhos.
As dez horas da noite, Badaró deixa a casa do amigo e dirige-se a sua. Na esquina há dois vultos embuçados. Um deles é o alemão Stock, ao passar o jornalista, o alemão aproxima-se:
— Doutor...
Badaró estaca despreocupadamente.
— Que há?
— Era um artigo que eu queria que o doutor me publicasse no seu jornal.
— É tarde para tratarmos disso. Apareça amanhã.
— O artigo é contra o dr. Japiassú.
— Está bem. Leve-o amanhã.
O outro vulto chega-se. Badaró quase que não o vê. Ouve apenas a frase sinistra:
— O artigo é este...
E um tiro de pistola estronda. O jornalista, ferido no baixo ventre, tomba nas pedras.
No dia seguinte o desenlace. A cidade está como num incêndio. O povo revolucionado cerca a residência do ouvidor. Os assassinos são presos pelo povo no quintal de Japiassú.
Na sua casinha da rua de São José, Badaró, cercado de estudantes e de amigos, agoniza. Os médicos procuram anima-lo. Num certo momento a cabeça pende-lhe. Correm rapazes a ampara-la.
Ele os detém com um gesto:
— Não há necessidade, é a morte.
E com um lampejo de entusiasmo nos olhos suaves:
— Morre um liberal, mas não morre a liberdade! Pende de novo a cabeça, a boca escancara-se, quer falar e não pode. Estava morto.
Tinha tido a felicidade de morrer no momento exato. Tinha tido a sorte de pronunciar uma grande frase.
Folheando-se os jornais da época, tem-se a impressão deliciosa de um dia de festa, aquele em que vinha ao mundo um fruto augusto da augusta família imperial que nos governava.
A cidade naquele dia alvoroçava-se. Pela manhã, no alto do Castello, por meio de sinais, davam-se os avisos de que a Imperatriz estava sentindo as dores naturais da maternidade. As ruas agitavam-se; percebia-se no semblante do povo essa expressão indefinível que se lhe nota nos grandes dias.
O aviso do Castello já era esperado ansiosamente. Havia uma semana que os jornais vinham noticiando o estado de saúde de Dona Thereza Christina, a iminência de ter o Império um novo pimpolho principesco.
Às damas do paço, fidalgos e fidalgas, toda a gente ligada a intimidade imperial, corriam pressurosos para a Boa Vista.
A Imperatriz era querida, o povo amava-a respeitosamente: as vizinhanças da Quinta ficavam apinhadas de populares, a espera que viesse lá de dentro a notícia do bom, sucesso da grande senhora.
As duas da tarde, na rua do Ouvidor, a multidão era maior que nos outros dias. Os bancos fecharam mais cedo, a Câmara e o Senado não tiveram número para funcionar. A perfumaria do Bernardo, onde de tudo se falava e de tudo se sabia, está acunhada de senadores, deputados, banqueiros, literatos.
— Príncipe ou princesa?
Não se sabe. O Castello ainda não assinalou.
— Deve ser príncipe.
Porque é de príncipes que precisamos.
Na loja de modas do Masset, a Wallerstein dos tempos do primeiro Império, os caixeiros andam esfogueados. Parecia que todo o mundo elegante combinara fazer compras naquele dia. À porta do Desmarais, o cabelereiro e perfumista de mais fama da época, os elegantes, os filhos-família desocupados, os “almofadinhas” de hoje, enchem de pernas o passeio estreito, dizendo amabilidades às mocinhas que passam. Da casa de Mme. Finot saem braçadas de rosas frescas e de cravos rutilantes.
Mas onde a multidão é mais numerosa e mais densa é a porta do Jornal do Comercio. O povo espera que seja colocado à parede o boletim avisando o bom sucesso da Imperatriz.
Afinal, ao entardecer, sobe no Castello o sinal avisador.
A cidade inteira vibra como tocada por uma pilha elétrica. Aqui, além, em toda a extensão da cidade estalam foguetes.
Nas confeitarias, nos restaurantes, principalmente no hotel de Europa, onde se reunia a melhor gente, estoiram garrafas de champanhe. Bandas de música vêm para as ruas, batendo dobrados festivos, com o povo à frente e atrás vivando as Majestades. A rua do Ouvidor a do Cano, a da Valia, a da Quitanda, o largo de S. Francisco, transformam-se num formigueiro alvoroçado.
Aparecem nas sacadas as primeiras lanterninhas e, ao fechar da noite, a cidade cintila ao fulgor das luminárias.
Na Quinta da Boa Vista a cena era outra.
No pátio rodam carruagens. Lá dentro, no palácio, as salas estão cheias do grande mundo. São os ministros, os secretários de Estado, os conselheiros, os grandes do Império, os presidentes do Senado e da Câmara, o mordomo-mor, o veador, o médico, o guarda-roupa, semanais do serviço dos soberanos, os altos políticos, as altas damas, as amigas da família imperial, tudo em silêncio, pisando nos bicos dos sapatos, ou aos cochichos nas vastas varandas abertas para os arvoredos frondosos!
As horas vão passando. A cada pessoa que vem lá de dentro a pergunta é infalível:
— Nada?
— Nada.
Afinal o médico da imperial câmara, saindo dos aposentos da Imperatriz, surge com uma expressão de alegria nos olhos.
— Príncipe ou princesa?
— Príncipe.
— Robusto?
— Um latagão.
Aclaram-se as fisionomias. Mais alguns minutos, aparece o mordomo-mor. O Imperador manda convidar as pessoas presentes a passarem a antecâmara da alcova da Imperatriz para a cerimônia da apresentação do príncipe recém-nascido.
O cerimonial, é simplíssimo. Corre-se o reposteiro dos aposentos imperiais e o monarca aparece com o pimpolho nas mãos.
Aproximam-se todos respeitosamente, com uma amabilidade:
— Que lindo!
— Que forte!
— Que gracinha!
O secretário de Estado dos Negócios do Império, ali mesmo, lavra três autos, que todos os homens assinam — um que é entregue aos monarcas, outro que vai para o Arquivo Público e o ultimo que se envia ao Reino das Duas Sicília, a terra de D. Thereza Christina. Nos autos relatam-se a cerimônia, o dia e a hora do nascimento, o sexo e o estado de saúde da criança.
No dia seguinte é a recepção de gala. O Jornal do Comercio na parte oficial, assinado pelo Ministro do Império, traz o seguinte aviso: “Havendo a Divina Providencia felicitado este Império com o nascimento que ontem teve lugar, de um príncipe: por ordem de Sua Majestade o Imperador se faz público que o mesmo Augusto Senhor se digna receber hoje, pela uma hora da tarde, em grande gala, no Paço de S. Cristóvão, por tão faustoso motivo, o cortejo de pessoas que a este ato costumam ser admitidas, etc., etc.”
A uma hora da tarde o paço de S. Cristóvão resplende. Todas as dignidades do Império, o Conselho de Estado, os titulares, as Casas Legislativas, o corpo diplomático, os membros dos Tribunais, o Clero, as grandes corporações trazem a presença de D. Pedro as melhores expressões de cumprimentos.
E o dia dos discursos. Em primeiro lugar falia o orador do Conselho de Estado. A saudação é curta, simples, cinco ou seis períodos de parabéns aos monarcas e de parabéns ao país, por aquele novo rebento, que vem certamente aumentar a grandeza do Império.
A resposta do soberano ainda é mais simples e mais curta: “Muito agradáveis me são as expressões do Conselho de Estado e nem outra coisa podia esperar de sua constante lealdade”.
Falam em seguida o representante do Senado, o da Câmara dos Deputados e fio Corpo Diplomático.
Esse dia é ainda de festa na cidade. Iluminam-se as fachadas, bandas de música tocam nos coretos dos jardins, há alegria maior nas ruas.
São os bairros todos, o povo inteiro festejando a imperial criança que acaba de vir ao mundo, não se sabe com que sorte, se boa ou má, mas que deve ser radiosa e bela, para a felicidade da dinastia e para a suprema felicidade da Pátria.
No agitado desdobramento daquele drama político que foi o Sete de Abril; o espectador que tiver serenidade para se não empolgar pelos vultos do primeiro plano, divisará no fundo da cena, como figura secundaria, uma figura fortemente teatral — Francisco Villela Barbosa, o Marques de Paranaguá.
O que com ele se passou, nos ásperos dias da abdicação de Pedro I, mostra que o aulicismo também se arranha em espinhos agudos e que os cortezões, que todo o mundo aqui fora inveja pela irradiação de favores que recebem, talvez engulam mais sapos e bebam talvez mais fel que qualquer de nós, simples mortais.
Para chegar-se ao desenho exato do Marques de Paranaguá tem a gente que andar caminhos curvos. E que ele foi durante a vida uma criatura tortuosa.
Nascido no Rio de Janeiro em 1769, tocou-se bem moço para Coimbra e lá se formou e em Portugal se fez professor da Academia Real de Marinha, sem nunca mais pensar no Brasil.
Quando foi da reunião das cortes reais, em 1821, elegemo-lo deputado pela província do Rio de Janeiro. Quanto ao seu papel como representante brasileiro, há biógrafos que afirmam que foi brilhante de patriotismo.
Mas o conselheiro Drummond, nas Memórias, zurze-o sem dó nem piedade.
Ao que ele conta, Villela Barbosa, em Portugal, no tempo das cortes, só se distinguiu pela oposição que fez a todos os projetos da independência brasileira e pela defesa de tudo que se propunha para garrotear o Brasil. Certa ocasião, num surto infeliz de eloquência (é o mesmo conselheiro quem conta) o futuro Marques de Paranaguá, insurgindo-se contra a propaganda que aqui se fazia de separação, teve a coragem arrepiante de dizer que se sentia envergonhado de ter nascido em terra brasileira! E mais: que a sua raiva era tanta que, apesar dos seus 52 anos de idade, tinha força para marchar, ainda que fosse a nado, com a espada presa aos dentes, para castigar os degenerados brasileiros que queriam a independência.
Mas, depois de feita a separação, Villela Barbosa arrumou as malas e veio dar com os costados aqui.
Há quem veja nisso um gesto admirável de abnegação patriótica. Villela deixava os seus excelentes empregos em Portugal e vinha correndo para prestar serviços à pátria nativa, tão necessitada, naquele momento, de filhos abnegados.
Mas o conselheiro Drummond põe a descoberto as intenções dessa cartada.
Villela não veio para o Brasil de alma aberta e a pátria na alma. Veio contra a própria pátria. Veio ao Brasil em missão secreta do governo português para torcer o ânimo de Pedro I.
. João VI nunca se conformou em perder o país em que viveu tão doces e longos anos, em que gozou tão fartas e tranquilas digestões. E depois de “Villafrancada”, quando conseguiu restabelecer em Portugal o seu domínio absoluto, seus primeiros cuidados foram para o Brasil. Não estava perdido de todo! Quem sabia lá se o doido de seu filho, que tinha levado a doidice até o grito do Ipiranga, não seria capaz de amansar, de criar juízo e entrar num acordo para a reunião dos dois países numa só coroa?!
E emissários aqui vieram tentar a reconciliação. Um deles foi Villela Barbosa.
José Bonifácio, que era mordaz, que tinha a veia do epigrama e um jeitinho liquidante de arrasar os inimigos, dizia que achava isso improvável, porque não via no embaixador nenhuma qualidade necessária para missão tão delicada. Antônio Carlos pensava de outra maneira: com aquela duplicidade de caractere, repetia, Villela era capaz de desempenhar as embaixadas mais antipáticas.
Mas Drummond conclui pela veracidade do facto. E conclui porque, em Lisboa, Manoel José Maria da Costa mostrou-lhe confidencialmente as provas mais irrefutáveis — cartas do próprio Villela Barbosa, datadas do Rio, contando das entrevistas: com o Imperador.
Antônio Carlos, ao que parece, tinha razão: o Marques de Paranaguá devia ser um caráter volátil, cambiante, de torcicolos. Devia ser uma dessas criaturas nascidas com a visão do interesse próprio e que sabem palmilhar, com segurança, os terrenos oscilantes", com a intuição perfeita das oportunidades.
Aqui chegando para tentar a união do Brasil e Portugal numa só coroa, teve lucidez para perceber que a independência brasileira era coisa definitiva e solida. Um príncipe moço e inexperiente é muito mais prodigo em favores que um príncipe da sovinaria clamorosa de D. João VI. Os horizontes aqui eram mais róseos e mais promissores que os de lá. Ficou aqui. Os acontecimentos ou o seu jeito, ou ambos ao mesmo tempo, fizeram com que D. Pedro lhe abrisse os braços.
Não se fez rogado em cair nos braços do monarca.
Começaram-lhe as vantagens. Em Portugal tinha ele o posto de major de engenheiros: deram-lhe aqui um posto acima.
Em 1823 já Villela Barbosa é ministro e mais tarde visconde, marques, conselheiro de Estado, senador do Império. Foi naqueles tempos, quem maior número de vezes sobraçou a pasta da marinha.
Era áulico por índole, por feitio inato.
Quanto ao valor, é duvidoso. Para Silvio Romero é apenas um medalhão do primeiro reinado, professor mediano, político medíocre, poeta secundário, “imitador das banalidades retóricas do classicismo português”.
A veia sarcástica, o repente na réplica navalhante, foram-lhe, com certeza, maiores que o estro poético aquela anedota narrada por Alberto Pimentel é deliciosa. Uma senhora discutia com Villela e, as coisas tinham-se tornado tão azedas que, de parte a parte, fuzilavam os desaforos.
O senhor não pôde negar, diz a dama, que é um homem cujo apelido começa por vil.
Ele recua, espantado.
— Vil, eu? Não! Vil ela!
Nas cenas de mais intensa vibração do Sete de Abril lá está Villela Barbosa dentro do drama, como figura do segundo plano, mas com um cunho de palpitante teatralidade.
Lá está ele de novo no governo, de novo na pasta da marinha, como membro do celebre “ministério dos marqueses”, que foi a causa deflagradora do grande golpe revolucionário.
E, no palácio de S. Cristóvão na noite emocionante de seis de abril, que precedeu a madrugada histórica da abdicação de Pedro I. Lá fora, nas ruas, estronda a procela da revolução. De quando em quando chegam ao palácio os relâmpagos assustadores da tempestade: ora a notícia de maior fúria popular no Campo de Santana, ora a nova adesão de mais outro batalhão, ora o boato mentiroso de que a tropa marchava contra o palácio. O imperador já havia recebido a representação dos juízes de paz que lhe vieram dizer, em nome do povo, que reintegrasse o ministério liberal demitido na véspera; já havia recebido do próprio General Lima e Silva a certeza de que não podia contar com as tropas.
As minúcias daquela noite angustiosa são descritas com intensidade por Eduardo Pontois, encarregado dos negócios da França, e que assistiu, lá dentro do palácio, ao desenrolar granguinolesco das cenas.
É muito mais de meia noite. Já deve ter começado a madrugada de sete de abril.
Nos salões da Boa Vista, aquela hera, há pouca gente: o imperador, a imperatriz, o ministério, dois ou três diplomatas estrangeiros, alguns áulicos, os fâmulos. Na antessala está o major Miguel de Frias, que veio, em nome da revolução, insistir com D. Pedro que reintegre o ministério. Espera inquieto a resposta imperial.
Num salão próximo, Pedro I, ao lado da imperatriz, cercado do ministério e dos diplomatas, expõe a delicadeza da situação. Nunca e nunca se sujeitará às violentas imposições populares. A constituição confere-lhe o direito de organizar livremente o ministério. Não cederá. Aquilo não é apenas um capricho do povo, é uma revolução nacional. Está incompatibilizado com a nação. Pois bem, abdicará.
Pela primeira vez a palavra abdicação lhe sai da boca. O ministério estremece, a imperatriz sacode-se.
O Marques de Paranaguá vem colocar-se perto do ministro da França, falando-lhe baixinho.
É preciso evitar que o imperador efetive aquela desnorteante resolução. Não há motivo para tanto, não há!
E ei-lo aos ouvidos de Pontois, a pedir, a suplicar que o diplomata remova a intenção do monarca. Pontois acede.
E são os dois, ele e o marques, a ponderar ao imperador. Não! Abdicar naquele momento, não! Sua Majestade que mandasse novamente lembrar ao povo, pelo emissário que estava na antessala, as prerrogativas que lhe conferia a constituição para formar livremente o gabinete. E que mandasse dizer também que, se continuasse a insistência, abdicaria e sairia do país com toda a família imperial. A ameaça de retirar-se do país com a família imperial talvez fosse um grande remédio para serenar os ânimos.
D. Pedro ouve-os. Os olhos de Paranaguá fuzilam á espera de que o conselho vingue. O imperador baixa a cabeça, meditando. Vai ceder, vai ceder! O marques tem a alma constrangida de ansiedade.
Mas essa ameaça de levar toda a família fará o povo correr para atacar o palácio, diz Sua Majestade, de cabeça baixa. Eu disponho de minha pessoa, mas não posso dispor do herdeiro do trono.
E, de súbito, ergue a fronte num gesto brusco:
Não. Já sei o que devo fazer!
E entra para o gabinete próximo.
Ficam todos de coração travado. Que iria sair dali?
Paranaguá passeia mudamente, pelo salão, de alma abatida e tonta. D, Pedro volta, agitando uma folha de papel. É a abdicação.
Ninguém espera aquilo, assim de improviso. Por pouco há desmaios no salão. Ninguém diz palavra, ninguém tem forças para falar.
O imperador vai entregar o papel a Miguel de Frias. E, como se aquela resolução lhe tangesse todos os nervos, D. Pedro fica numa excitação incrível.
Quer, naquele próprio instante, deixar o palácio, sair do Brasil.
No fundo da cena aparece de novo a figura de Paranaguá. É o cortezão da desgraça, na frase de Escragnolle Doria, mas tem ainda esperança de encontrar uma taboa salvadora para aquele naufrágio. Lá está ele aos ouvidos de Pontois, pedindo, insistindo que novamente o diplomata volte a falar ao imperador. A partida àquela hora é inconveniente e anti-politica! Devia-se esperar! Nas revoluções, às vezes no último minuto, no último instante, surgem reviravoltas. Quem podia garantir que o povo aceitasse a abdicação?!
Pontois vai falar a D. Pedro. A partida precipitada podia dar ideia de que era uma fuga.
D. Pedro cede.
Espera-se até depois das nove da manhã a tal reviravolta suspirada pelo Marques. As esperanças fenecem. A revolução aceitara com surpresa, mas gostosamente, a abdicação.
O monarca segue para bordo da Warspite com a esposa, os Marquezes de Loulé e Cantagallo e o Conde de Sabugal.
Villela Barbosa, sem pasta, sem rei para cortejar, sem apoio de espécie alguma, fica em terra, entre inimigos triunfantes.
Os dias tornam-se-lhe amargos. O povo, inflamado pela vitória, desenfreia-se pelas ruas, depredando. O ódio contra os ministros da abdicação explode nas ruas. A massa popular vai insulta-los nas próprias casas, ameaçadoramente.
Os bens e a vida de Paranaguá correm perigo. Que fazer, naquela horrível situação de sustos inquietadores?
Ainda não partiram para a Europa os navios que vão levar à Inglaterra a família imperial. Villela Barbosa lembra-se de ir colocar-se de novo aos serviços do ex-integrante. O único refúgio é aquele, o da proteção consoladora do imperador destronado ali adiante, a poucas braças, no mar. Um simples escaler lhe daria sossego a vida.
E o Marques de Paranaguá não vacilou. Tinha direito a refrigerar-se à sombra protetora de D. Pedro. Durante dez anos dedicara-lhe a fidelidade mais incorruptível, e, se agora os inimigos eram tantos, fizera-os por aquele excesso de dedicação ao príncipe. E, além do mais, D. Pedro sempre lhe votará uma amizade excepcional, distinguindo-o em tudo, prestigiando-o nos momentos mais difíceis, indo busca-lo para seu braço direito nas horas mais agitadas.
A cena da apresentação de Villela Barbosa e Pedro I é contristadora.
Descreve-a o Barão de Daiser, ministro da Áustria no Brasil, que assistiu, a ela.
O Marques de Paranaguá chega a bordo da fragata Warspite, indo imediatamente a presença do ex-monarca.
— Que veio fazer? Pergunta-lhe D. Pedro, grosseiramente.
— Pôr-me a disposição de Vossa Majestade para servi-lo no que me ordenar.
— Mas eu não preciso de quem me preste serviços. Não posso carregar com o senhor. Já tenho muita gente às costas.
Paranaguá não esperava engolir aquele sapo. E procura engoli-lo com a mais santa resignação.
— Nesse caso, diz, vou para Portugal, onde tenho direito a uma pequena aposentadoria como lente da Academia Real de Marinha.
D. Pedro desencadeia uma tempestade de palavrões.
— Não admito, não admito! Proíbo-lhe de ir a Portugal antes que eu tenha restabelecido o trono de minha filha.
— Mas, meu senhor, que quer que eu faça? Sou pobre. Não tenho fortuna, só tenho o meu subsidio.
Pedro I encara-o.
— Faça o que quiser. Não é de minha conta. É pobre? Por que não roubou? Roubasse! Por que não roubou como o Barbacena?
Os homens daquele tempo ou tinham traços de santidade ou eram de um caráter horrível.
Tempos depois vamos encontrar o Marques de Paranaguá como um dos chefes do partido “caramuru”, o partido que trabalhava pela volta de Pedro I ao trono.
Quando dona Leopoldina aqui chegou...
A 5 de novembro de 1817 estavam os nossos avós em festa. Chegava ao Rio aquela que foi mais tarde a nossa primeira imperatriz, a boa e sofredora dona Maria Leopoldina, princesa e arquiduquesa d’Áustria.
O casamento do príncipe d. Pedro foi uma das festas mais brilhantes daquele período curioso do governo de d. João VI. A missão diplomática do enlace do neto da rainha louca com a filha de Francisco II foi entregue ao tino e a elegância fidalga do marques de Marialva.
O trabalho de Marialva não foi dos maiores. A fama da grandeza do Brasil, os fulgores do Ouro e dos diamantes que ofuscaram o século XVIII, eram títulos suficientes para que qualquer corte se quisesse unir ao remo maravilhoso da América do Sul.
Quando o marques entrou em Viena em fevereiro de 1817 fê-lo apenas para pedir oficialmente a mão de dona Maria Leopoldina para o mais velho dos filhos varões do rei americano. Já estava tudo aplainado, tudo cedido.
D. João VI, que passou a vida como um dos monarcas mais forretas e mais inimigos de ostentação, concordou em dar, ao pedido da mão da noiva de seu filho, uma pompa excepcional.
A embaixada do marques de Marialva tinha um aparato que surpreendeu a própria corte aparatosa de Viena.
Em joias, em barras de oiro que se ofereceram a noiva e às figuras principais da aristocracia vienense, a soma subiu a mais de milhão e meio de francos.
E isso sem contar o preço dos diamantes que foram todos do Brasil, e gratuitamente, gastando-se apenas a insignificância de os montar.
O próprio Marialva confessa que Viena nunca tinha visto uma embaixada de tanto fausto e magnificência. Ele próprio gastou do seu bolsinho cento e seis contos a mais, porque quis ou porque o dinheiro era pouco.
A festa que deu no jardim imperial de Augarten ficou celebre em toda a Áustria. Para o grande baile e para a ceia mandou construir um vasto salão de tão rara elegância e beleza, que a corte de Francisco embasbacou. O número de talheres da ceia subia a quatrocentos.
Mas, o que mais deixou Viena em pasmo devia ter sido o presente que o marques, em nome de d. Pedro, ofereceu a dona Leopoldina. Era o retrato do príncipe num medalhão cercado dos mais finos e dos mais puros diamantes do Brasil.
Marialva descreve a impressão do presente principesco. A noiva, ao vê-lo, teve um espanto que não pode esconder, confessando a sua alta felicidade por um casamento tão acertado...”
E, tal era a magnificência da cercadura de brilhantes e tão puros e belos eram estes, que o marques com uma ponta de ironia cortezão conta que a filha do imperador da Áustria gostou muito da “imagem do seu real esposo”, mas também gostou “do riquíssimo ornato que o adornava”.
O próprio príncipe de Metternich tão fino, tão educado, não se conteve para dizer que daquilo só conhecia nas fabulosas crônicas orientais”.
O casamento de d. Pedro com a princesa Maria Leopoldina idealizou-se a 13 de maio daquele ano de 1817.
O noivo que aqui estava teve de ser representado pelo arquiduque Carlos, irmão do imperador Francisco.
Dona Leopoldina era um coração de ternura encantadora. Logo que começaram as primeiras negociações para o seu casamento, toda ela se voltou para a nova pátria de que veio a ser imperatriz. Quando chegou ao Brasil sabia alguma coisa da língua portuguesa e falava correntemente da nossa história e da nossa geografia.
Quais um mês se demorou ela em Viena, antes de tomar o rumo do porto em que devia embarcar para o Brasil.
Só no segundo dia de junho seguiu com a sua comitiva para Florença e daí para Liorne, onde aguardou a esquadra que a transportou ao Rio.
A demora não na atribuem apenas aos arranjos de viagem, mas também a política inglesa. A Inglaterra, naquela data, tinha o mais vivo interesse em que d. João VI se transferisse do Brasil para Portugal.
O filho de dona Maria I dava-se maravilhosamente na tranquilidade e no calor preguiçosos do seu reino americano e fazia ouvidos de mercador às insinuações inglesas. Quando se fez o casamento de d. Pedro com a princesa Leopoldina, a diplomacia britânica mexeu-se para conseguir que a jovem consorte do príncipe brasileiro se conservasse na Áustria ou se passasse a Lisboa para esperar o regresso da família real portuguesa. Era um meio de forçar a mudança de d. João. E, para isso, tudo foi empregado. Todas as injurias possíveis atiraram-se ao pobre clima do Brasil. Até a epilepsia de d. Pedro foi explorada como uma consequência do nosso clima injuriado.
Mas o imperador da Áustria soube contornar a questão. A sua filha, depois de casada, passara a ser filha do rei de Portugal; a este cabia designar-lhe a residência.
Em Liorne, aos 15 de agosto, foi dona Maria Leopoldina, pelo príncipe Meternich, entregue oficialmente ao marques de Castello Melhor, comissário especial de d. João VI.
Nesse mesmo dia partiu para o Brasil. A esquadra que lá fora buscar a noiva e a sua comitiva compunha-se apenas de dois navios: o D. João VI e o São Sebastião. No estreito de Gibraltar acresceu um terceiro — a fragata Augusta. A nossa futura imperatriz trazia comitiva de princesa: a condessa Kunburg, sua camareira-mór; condessas Ledron e Sarenthein, damas de honor; um capelão, um bibliotecário; açafatas; damas de serviço particular; retretas, criadas, serviçais de libré e um chefe de cozinha, austríaco, isso porque, ao que confessa Marialva no seu memorial, os cozinheiros portugueses lhe fizeram “algumas vergonhas”. Vieram mais os condes de Louzã e Penafiel, este veador da princesa e aquele mordomo-mór, e ainda os médicos portugueses Francisco de Mello Franco e Bernardino Antônio Gomes.
Uniu-se a comitiva o conde de Eltz, que trazia do imperador dos austríacos, a embaixada especial de saudar d. João VI pela sua elevação ao trono do Brasil.
A 5 de novembro apareceu ali na barra os primeiros sinais da esquadra. A cidade estava preparada para a festa.
Às 5 horas da tarde entraram os navios na Guanabara, fundeando entre a ilha das Cobras e o morro de S. Bento. No cais, nos montes, nos barcos, nos escaleres que vogavam festivamente no mar, a multidão fervia.
Ao fundearem os navios, a galeota real, com o rei, a rainha, o príncipe consorte, as princesas e toda a família do monarca português, encostou no D. João VI. O marques de Castello Melhor, dando o braço a dona Leopoldina, trouxe-a até a galeota para os cumprimentos.
Todos subiram depois ao navio, menos o rei, que ainda não estava sarado da perna que um carrapato, na fazenda de Santa Cruz, lhe picara, fazendo-o enfermar gravemente.
O desembarque estava anunciado para aquele dia, mas a esquadra entrou muito tarde. A família real voltou então á galeota e o desembarque se transferiu para o dia seguinte.
A noite a cidade iluminou-se magnificamente. As ruas forma cobertas de camadas de areia e folhas de canela.
Em frente do Arsenal de Marinha, da igreja da Cruz dos Militares e da rua do Sabão, erguiam-se arcos pomposos.
No dia seguinte, pela manhã, a tropa formou para o desembarque da princesa.
Eram duas horas da tarde, quando esta chegou a terra na galeota, pela mão de d. Pedro, saltando no Arsenal de Marinha, onde a esperava toda a família real.
O préstito desfilou pela rua Direita até a real capela, ao repique dos sinos, ao som de músicas, enquanto os canhões das fortalezas e dos navios troavam. Em toda a extensão da rua a futura imperatriz só pisou em flores que o povo lhe atirava.
A porta da capela, para a recepção dos consortes, estavam, o Senado da Câmara, o Cabido inteiro, e o capelão-mor; os bispos de Pernambuco, de Goiás, de Angola, de S. Thomé e Moçambique.
Dentro do templo o Cabido formou em quadratura.
D. Pedro, e dona Leopoldina foram, pelo rei e pela rainha, apresentados ao bispo capelão-mór. Os esposos ajoelharam-se e a benção nupcial lhes foi lançada. Logo após o Te-Deum Laudamus, cantado pelos músicos da real capela, sob a batuta de Marcos Portugal, salvaram as fortalezas e os navios. Eram quase cinco horas da tarde.
A família real seguiu para o paço e, das janelas, assistiu ao desfilar das tropas.
Mais tarde o jantar com toda a pompa da corte.
O que estava assentado era, após o banquete, partirem os consortes, á noite, para a Quinta da Boa Vista.
Ao que conta o padre Luiz Gonçalves dos Santos, os moradores da rua do Ouvidor, do largo do Rocio, do Caminho Novo, do largo da Sentinela, de Mata-Porcos, etc., tiveram avisos para enfeitar as fachadas e as ruas. Mas perderam o tempo e o trabalho. A perna de d. João VI estragou todo o programa. Sua majestade não se sentiu com coragem de á noite, com a perna machucada, aventurar-se a viagem, aos abalos do coche real pelas ruas mal calçadas do Rio daquele tempo.
Resolveu-se que o préstito seguisse por mar até S. Cristóvão. E, às nove e meia da noite, deu-se o embarque no Arsenal de Marinha.
As onze horas da noite chegava-se a Quinta da Boa Vista.
Ao que dizem os cronistas, a alegria de dona Leopoldina era imensa e imperturbável.
Talvez que, na manhã seguinte, já ele tivesse a consciência da boa bisca que a má sorte lhe dera como marido, para lhe tornar tão amarga a vida.
A pobre filha de Francisco II vinha de uma família em que havia mulheres desgraçadas: Maria Antonieta, sua tia, que morreu no cadafalso, e Maria Luiza, sua irmã, humilhada nos braços de Napoleão.
E dona Leopoldina teve também a infelicidade de aqui chegar num ano funesto. Em 1817 morriam os sonhadores republicanos de Pernambuco...
Ao prefaciar a História da Revolução de Pernambuco em 1817, de Muniz Tavares, Oliveira Lima, o grande psicólogo dos nossos homens e das nossas épocas, tem esta sentença profunda: — foi naquele momento “que a nação verdadeiramente aprendeu a combater e a morrer pela liberdade”.
A frase é admirável. Dá-nos, num golpe, a clara visão do que foram os assomos de liberdade anteriores ao movimento emancipador que Domingos José Martins chefiou em Pernambuco.
Até 1817, em verdade não se sabia; no Brasil; morrer em prol dos ideais. Sabia-o uma ou outra alma inflamada de sentimentalismo patriótico — um Felipe dos Santos, um Bequimão, um Tiradentes.
A nação não conhecia ainda o heroísmo do sacrifício da vida.
A inconfidência mineira é um exemplo doloroso da verdade profunda da frase de Oliveira Lima. Conspiram as mais iluminadas mentalidades daquela quadra tormentosa de noite colonial. São os homens mais culminantes de Minas, os poetas, os padres, os militares, os magistrados, os fazendeiros, o que há de mais fino e culto, de mais atuante, e mais eficiente.
Mas, no momento extremo do drama, no momento em que cada conspirador deve mostrar quanto preza o ideal que os levou ao cárcere, no momento de morrer, falham todos. Falham todos e da maneira mais triste, dando vivas a rainha que era o símbolo da tirania que os agrupou em conjura.
Só um teve a grandeza de ser nobre, só um teve a nobreza de afrontar a morte, a dignidade de subir os degraus do patíbulo sobraçando o ideal que os companheiros repudiavam, um único, e justamente o mais humilde de todos, aquele que, pelas maneiras açodadas, pela cultura medíocre, pelo prestigio quase nulo, era o que menos podia dar — Tiradentes.
Até 1792, não se sabia, no Brasil, morrer pela liberdade. Só se vai aprender vinte e cinco anos depois, na revolução chefiada, em Pernambuco, por Domingos José Martins. Ai, a nação está inteiramente integrada do seu papel, da sua expressão idealista. Os patriotas têm outra figura, outra significação histórica. Morre-se com a consciência de que um grande sonho vale mais que a vida. Morre-se sabendo-se que não há ideia, sem mártires, nem mártires sem conquista. Morre-se sabendo-se que, do sangue derramado, alguma coisa o futuro aproveitará.
A evolução é rápida. Esse mesmo povo que, em 1792, ainda não sabia morrer pela liberdade, que em 1817 apenas havia aprendido, sete anos depois, na Confederação do Equador, tem a verdadeira volúpia da morte.
Basta um golpe de vista sobre as figuras máximas do movimento.
Têm todos o orgulho do ideal que os agita. Parece que há entre eles a porfia de ver qual o que transpõe mais risonhamente e mais gloriosamente a posteridade pela escada do patíbulo.
Não parece uma revolução de homens normais, parece um transporte de fanáticos. O exemplo de Tiradentes inflama todas as cabeças. É a porfia da abnegação patriótica, a ânsia de morte gloriosa.
Tem-se a impressão de que o fim não é realizar, mas unicamente morrer.
A forca não apavora ninguém; caminham para ela como se caminha para uma festa cívica, de cabeça alevantada, fronte altaneira, como quem cumpre um dever. Cada patriota ufana-se do papel de mártir e antegoza a volúpia de morrer por uma ideia.
Enquanto pelo país inteiro correm arrepios de emoção a cada conspirador que morre e o povo suplica aos pés do Imperador o perdão para os que vão ser sacrificados, eles, os que vão morrer, estão serenos, nada pedem, a não ser que os levem o mais cedo possível aos degraus do cadafalso.
E essa estranha e maravilhosa volúpia da morte culmina naquelas três belas figuras da revolução: Frei Caneca, o padre Moróró e Agostinho Bezerra Cavalcanti.
Esses morreram porque quiseram morrer. Tiveram a salvação ao alcance do braço. Recusaram-na.
Com Frei Caneca o episódio se deu quando, já preso, pelas forças imperiais, caminhava da fazenda do Juiz para Recife. O comandante das tropas vem oferecer-lhe a fuga. Não, não quer! Não lhe ficava bem. Já que havia começado aquilo queria ir até o fim. O fim era a morte se, á morte, o tribunal o condenasse.
Com o padre Mororó a passagem é quase a mesma. Já está preso nos cárceres de Fortaleza. A comissão militar, presidida pelo Major Conrado Niemeyer, age horrendamente. O comandante de um navio ancorado no porto manda oferecer asilo ao padre revolucionário. Mororó recusa. Não quer comprometer ninguém, não quer criar complicações a inocentes.
Com Agostinho Bezerra o episódio é ainda mais interessante. A sentença militar já está lançada — pagará com a vida o crime de insurgir-se contra a coroa e o crime maior de se bater pela República.
É uma figura querida do comércio do Recife. Como comandante dos pardos, uma vez salvou as casas comerciais da fúria do povo que as queria queimar.
O comércio, unido, manda uma representação ao Imperador suplicando o perdão. A suplica (todo o Recife espera) vai ser atendida. O próprio comandante Lima e Silva encaminhou-a com as suas melhores simpatias. Mas, a resposta imperial, chega à capital de Pernambuco, abalando as almas mais indiferentes. O Imperador nega o perdão. E mais: censura a comissão militar por lhe fazer chegar às mãos pedidos daquela ordem. E mais ainda: recomenda presteza, a máxima urgência na execução dos condenados à pena última.
É na semana santa. A comissão não mais quer sofrer censuras e marca o sacrifício de Agostinho para a própria semana da Paixão de Cristo.
O comércio inteiro está empenhado em salvar de qualquer maneira a vida do revolucionário que um dia o salvou.
Já que falhou a piedade imperial, que se apele para o recurso da fuga. Os guardas da prisão são peitados.
E na véspera do sacrifício. Alta noite, os encarregados da fuga, penetram no cárcere.
— Depressa! Vamos! Não há um minuto a perder!
Agostinho recebe-os com uma tranquilidade de estarrecer.
— Ir? Para onde?
— Lá para fora! Para a liberdade! Para a vida!
— Não quero.
— Mas está tudo preparado para a fuga. Todos dormem na prisão, os guardas estão peitados.
— Não vou. Não vou.
— Por que?
Porque um patriota não foge.
— Mas é um sacrifício inútil.
Embora! Mas um patriota nunca deve temer a morte.
E não saiu do cárcere. Mais tarde, quando os sinos dobravam para a procissão dos Passos, dobravam também pela sua alma.
Na Confederação do Equador, ao que parecia, a finalidade não era realizar uma ideia, era morrer por ela. Não foi uma revolução de homens normais, foi uma exaltação de voluptuários da morte.
Diante da-feição moderna do mundo e da vida, neste apagar de foros de nobreza e de orgulho de sangue, é quase impossível a nós outros, homens da atualidade, compreender a áspera figura daquele fidalgo, o coronel Antônio de Oliveira Leitão, que morreu no cadafalso em 1721, por ter assassinado miseravelmente a própria filha.
O episódio que narram as crônicas só se pode enquadrar no recuo de duzentos anos. Na época atual, no estado atual da humanidade, seria inteiramente incrível uma figura daquelas, com aqueles moldes, aquela estrutura, aqueles brios extravagantes de orgulho aristocrático.
Não é o crime que faz o coronel Antônio de Oliveira Leitão um vulto singular na história brasileira do século dezoito. Crimes bárbaros tantos e tantos fidalgos praticaram naqueles e noutros tempos. É o arrogante orgulho de nobreza, rude, brutal, cabeçudo, alucinado que, se não chocou a época em que se deu porque a época o comportava, escandaliza a nós que vivemos numa quadra inteiramente diversa, radicalmente transformada.
Sob o peso da infâmia de réu confesso do assassino de sua própria filha, curtindo os cárceres da Bahia, condenado à morte ignominiosa, só desta coisa, para nós hoje frívola, o coronel se preocupou — de morrer como fidalgo, com todas as prerrogativas da nobreza de seu sangue.
Nos primeiros dias da história paulista encontramos um Antônio de Oliveira, feitor do almoxarifado real, na donataria de S. Vicente. Em 1853, Martim Affonso de Souza retira-se da sua capitania, deixando à sua esposa, d. Anna Pimentel, todos os poderes que lhe doou el-rei. D. Anna, por sua vez, transmite-os ao vigário Gonçalo Monteiro, com a reserva de superintender, ela própria, os atos do procurador. Em outubro de 1538, a mulher de Martim Affonso nomeava Antônio de Oliveira para suceder ao vigário, com os títulos de capitão-mor, governador, ouvidor e loco-tenente do donatário. Ao que rezam os papéis, Antônio de Oliveira governou a capitania com moderação e inteligência. Era um homem circunspecto, limpo. Por aquele tempo, nos arredores da ilha de S. Vicente, os moradores faziam em comum as plantações. Mas, por ocasião das colheitas, havia sempre duvidas e brigas. Antônio de Oliveira consegue regularizar o trabalho agrícola da ilha, dividindo com justiça as terras. É no período de sua gestão que o povoado de. S. Vicente se muda mais para o interior da ilha, porque, nas grandes ressacas, o mar invadia as casas. Até 1553 o nome de Oliveira aparece no governo da capitania, revezando-se com o de Braz Cubas. Além dos altos cargos que ocupou, tinha foro de cavaleiro fidalgo, e sua mulher, d. Genebra Leitão de Vasconcellos, pertencia á “qualificada nobreza” de Portugal.
O coronel Antônio de Oliveira Leitão era descendente legitimo e direto do loco-tenente de d. Anna Pimentel. Nobreza clara, próxima, autentica. Era filho de Domingos de Oliveira Leitão, natural de Santos, que morreu em S. Paulo em 1691, e de d. Anna da Cunha, irmã direita de R. Domingos da Cunha, conforme as informações minuciosas de Pedro Taques. O ramo dos Oliveiras ainda hoje existe em São Paulo, na família Alcântara Machado, com o mesmo traço de retidão e limpeza que realçou o governador de S. Vidente.
Não há dados iconográficos para estudar-se a figura remota do coronel Oliveira Leitão. Mas, ao que se calcula, pelos seus gestos e pelas suas maneiras, devia ser um tipo alto, barbado, cabeludo, brusco, secarão, uma dessas criaturas de cara amarrada, que mais parecem ursos do que seres humanos. Era a feição normal dos potentados de dois séculos atrás, misto de bárbaros e cortezões, envergaduras de arrieiros em roupagens de cetim.
O coronel Oliveira Leitão teve certamente uma mocidade rude e profundamente agreste. Era um Hercules na força, um gamo na agilidade. A primeira vez que aparece nas crônicas é em 8 de abril de 1712, quando a vila de S. Paulo festeja a sua elevação a cidade, e aparece num redondel de touradas, aplaudido pelo povo, por ter decepado, de um só golpe, a cabeça de um touro! Devia ter mais acentuados os traços físicos de um bárbaro que as linhas suaves de um fidalgo.
Vamos, depois encontra-lo em Villa Rica, em Minas. Já é homem maduro, de família formada. Parece que já se não atira mais às aventuras com os garrotes. É o substituto imediato do ouvidor geral e corregedor, ocupando os cargos quando o titular se afasta da comarca. Acatam-no, respeitam-no. Ele faz-se respeitar ou pela força do braço ou pelo prestigio da moralidade.
Está casado com Branca da Silva, senhora de linhagem ilustre como a sua, e tem uma filha, a linda e desgraçada Martha, que os historiadores pintam como um tipo de doçura e de beleza.
No lar do coronel a vida é aquela mesma vida perramente austera, ríspida, inclemente de todos os lares ricos do passado. O riso é um crime, a alegria uma profanação, o amor uma calamidade.
É realmente uma tortura d’alma a história dos casarões abastados de antigamente. É a solidão, a tristeza a monotonia embrutecedora, a severidade implacável que desorganiza a disciplina, o melindre de rigidez familiar aniquilando a ternura e a liberdade. Debaixo daqueles imensos telhados ricos sofria-se mais que num cárcere ou num tumulo. Ser virgem era mais um baldão que uma virtude amável. Tudo e tudo conspirava para tornar infeliz a donzela. Espiavam-na como se espia a um ladrão, vigiavam-lhe os passos como os de um criminoso, fechavam-lhe o coração como se, fecha o portão de uma chácara, à noite, para que os gatunos não entrem. As janelas dos casarões não se abriam para que as moças virgens não tivessem ensejo de ver os homens que passassem lá fora; deixavam-se analfabetas, por toda a vida, as donzelas, para que nunca soubessem decifrar as cartas dos namorados.
Impulsos d’alma, amor, eram os delitos supremos da época. O coração das filhas era propriedade exclusiva dos pais, que dele dispunham como do gado dos seus currais ou das bestas de seus campos.
E, quanto mais opulenta a casa, mais miserável a vida das donzelas. E quanto mais cioso de nobreza o pai, mais despótico o seu poder no coração das filhas.
Ninguém mais que o coronel Oliveira Leitão zelava pelas regalias e privilégios de fidalgo. Devia ser um inferno o seu lar.
E foi.
A tragédia que lá dentro estalou em 1720 não é somente uma prova do gênio tempestuoso do coronel, mas, principalmente, dos seus alucinados e escaldantes brios de nobreza.
O caso é horrível. Martha, a filha do coronel, encerrada no vasto casarão paterno, sem licença de abrir uma fresta de janela para não manchar a sua pureza aos olhares dos homens, teve a infelicidade de sair uma manhã, com a mãe, d. Branca da Silva, para ouvir a missa, na igreja dá vila. Lá os seus olhos cruzaram com os olhos de um tal Luiz de Gusmão, moço de parecer distinto.
Aí começa o drama. Martha está apaixonada, Luiz Gusmão também. Mas entre os dois havia a vigilância do coronel, zelando pelos melindres da honra da família, pelos foros de nobreza dos ancestrais ilustres.
Luiz de Gusmão não vinha de estirpe “qualificada” e, se vinha, a qualificação não podia equivaler aos descendentes do capitão-mor de S. Vicente.
O coronel Oliveira Leitão repele os projetos de casamento, hostiliza-os, persegue-os.
Naquele tempo só havia um remédio às donzelas perseguidas nos seus planos de amor — abalar de casa, alta madrugada, á garupa de um cavalo, abraçada ao noivo.
Martha, porém, era um temperamento dócil, suavíssimo, resignado. Sofria as torturas da contrariedade, enclausurada no seu quarto, a chorar.
O coronel dobrou de vigilância; ele próprio praticou-a como um cão de fila.
Uma tarde, Martha, que chorava no seu quarto, veio até ao quintal estender na corda um lenço ensopado.
O pai estava nos fundos da casa, entre a fresta de uma janela, olho agudo, devorador, como o de um falcão de caça. O que lhe passa pela cabeça é um desvairamento. Aquele lenço, estendido ao sol, deve ser um sinal a Luiz de Gusmão, um aviso de amor, uma combinação, uma patifaria. Está manchada a honra de sua casa, está manchada a dignidade de seu nome!
Desce numa fúria, num ímpeto; de punhal em punho, trepidando.
A interpelação é uma borrasca. A moça titubeia ao inesperado da cena. Ele vê na vacilação a prova real da culpa da filha. Devia-lhe ter passado pela mente o episódio das festas de S. Paulo em 1712, quando de uma cutilada decepou o pescoço de um touro. Enlaça o corpo da filha e enterra-lhe o punhal, inteirinho, no coração. O sangue espirrou, esguichando pela parede e, ao que dizem as crônicas, já certamente douradas pela lenda, lá na parede ficou por muitos anos, límpido, vermelho, brilhante, por ser sangue inocente.
Oliveira Leitão, podendo fugir, não foge. É uma indignidade para um nobre. Deixando o cadáver da filha numa poça de sangue, corre a entregar-se ao governador da capitania, o conde de Assumar.
A justiça remete-o para a Bahia. Corre o processo. O coronel é condenado à forca.
E é justamente nesse ponto que ele deixa de ser um criminoso vulgar, comum, para apresentar-se aos olhos da atualidade como um tipo espantosamente original.
Nos tempos modernos, o homem que tivesse sobre a cabeça o pavor de uma sentença de morte, só teria a preocupação de livrar-se dela. Apresentada a impossibilidade, o único remédio seria morrer com resignação ou desespero. E, quando se vai morrer, tanto faz ser desta maneira como daquela. Quando se tem que perder o pescoço, tanto faz por uma cutilada, como pelo laço de uma corda. A eliminação é a mesma eliminação.
Não há hoje ninguém que tenha a calma e o requinte de indagar o gênero de morte de uma sentença, desde que esteja irremediavelmente condenado a morrer,
Teve-os o coronel Oliveira Leitão. Quando às mãos lhe chegou a sentença que o condenava à forca levantou bem alto o seu protesto. Forca! Não! Na forca não morreria! A corda da forca era para os vilões e ele era nobre, de nobreza qualificada e antiga! Homens da sua estirpe, da distinção, da sua linhagem, só em cadafalso e em cadafalso alto podiam morrer!
Para nos outros da atualidade um gesto desses é quase inacreditável. Não compreendemos, na época moderna, um homem da estrutura antiga do coronel Antônio de Oliveira Leitão.
Eram realmente muito diferentes de nós os tipos do passado! Tinham, na realidade, outra alma que, felizmente, hoje não temos!
Ao peso da ignomínia de assassino, amargurado pela morte da filha que ele já sabia inocente, com certeza roído de remorsos e de arrependimento, metido em cárceres, desprezado e repelido, com uma sentença de morte sobre a cabeça, o coronel Oliveira Leitão tem sangue frio para insistir, protestar e questionar, afim de que lhe sejam dadas as regalias condigas a sua nobreza criminosa está triste, esta miserável, esta desprezível regalia — a troca da plebeia corda da forca pela lamina afiada do cadafalso alto.
Eram sinistros no seu orgulho os homens de antigamente!
O protesto do coronel subiu até el-rei de Portugal.
O que ele pedia era um direito. El-rei lhe deu,
Os reis ouviam sempre os apelos justos dos nobres, mesmo quando os mandavam matar...